Wikifavelas no Outras Palavras

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Este verbete reúne as publicações feitas pela equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco no Blog Outras Palavras.

Sobre

A partir de Janeiro de 2022, a Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco passou a publicar textos no Blog Outras Palavras como forma de divulgar os conteúdos presentes na wikifavelas e também de fomentar discussões junto aos veículos de comunicação. No presente verbete, reunimos os materiais publicados no Blog, para acesso público.

Rio: o que esperar das UPPs recauchutadas

Por Sonia Fleury e Juliana Kabad, em 24 de janeiro de 2022

Ocupação policial do Jacarezinho e Muzema repete erros velhos e graves: tentativa de controle, disciplinamento e subalternização da periferia. No Dicionário de Favelas Marielle Franco das Favelas, verbetes para compreender o desastre.

Foram muitos os erros que levaram ao fracasso do programa de pacificação das UPP nas favelas do Rio de Janeiro. Destacam-se a falta de planejamento da política pública, que levou a um grau exacerbado de improvisação, falta de treinamento adequado e de recursos que garantissem sua sustentabilidade, além de sua subordinação aos objetivos eleitoreiros dos políticos e aos interesses de lucratividade do mercado. A ocupação militar representou a instauração do estado de exceção nestes territórios, tendo sido identificada como pacificação apenas pela mídia e pelas classes médias e altas, ignorando os complexos problemas na raiz do crescimento da violência urbana.

Sem dúvida, o maior erro foi ter procurado mobilizar a população, organização e lideranças das favelas com o intuito de controlá-las, discipliná-las, subalternizá-las, fragilizá-las frente às ameaças de desforra pelos traficantes e milicianos. O começo de um novo programa que repete os mesmos erros mostra que os políticos não aprendem com os erros das políticas públicas. Mas o mesmo não se pode dizer da população das favelas, cuja frustração com os pífios resultados das UPPs tem sido um combustível para aumentar a consciência em relação às suas demandas.

Para acessar o texto na íntegra, clique aqui.

Rio: violência policial, UPPs e racismo

Por Lia Rocha, publicado em 02 de fevereiro de 2022

Uma pessoa negra é morta pela polícia a cada 4 horas no Brasil. E o Rio de Janeiro é o estado que possui o maior número de pessoas negras mortas pela polícia. É o que o relatório da Rede de Observatórios da Segurança traz de dados através do estudo “Pele alvo: a cor da violência policial”, de dezembro de 2021. A violência é uma realidade das sociedades contemporâneas marcadas por processos de opressão e aprofundamento de desigualdades. A violência policial, porém, reforça ainda mais as opressões e o racismo que estruturam a ordem social brasileira. Políticas públicas que promovem a militarização dos territórios de favelas e periferias são responsáveis pelos altos índices de letalidade produzidos por ações de agentes estatais, justificados pela impunidade e pela difusão de uma cultura racista e preconceituosa. No momento em que o país se prepara para um processo de intenso debate eleitoral visando passar a limpo a desastrosa experiência recente na política de segurança e formular propostas para reinventar o  Brasil, precisamos encarar e discutir amplamente o racismo e a sua relação com a alta letalidade provocada pela ação policial.

O Dicionário de Favelas Marielle Franco pretende dar mais alcance a este debate, pois, a produção e divulgação de narrativas sobre as cotidianas violações e violências provocadas pelo Estado é também um instrumento para garantia de direitos de cidadania aos corpos e às vivências das populações negras. Na plataforma wikiFAVELAS, podem ser encontrados algumas dessas contranarrativas, disputadas por moradores(as) de favelas, defensores(as) de direitos humanos e pesquisadores(as) em verbetes como “Parem de nos matar!” e “Elemento suspeito”, da série de lives Favelas em Movimento. Em torno da palavra-chave “violência policial”, você também encontra cerca de 20 verbetes e outros debates relacionados.

As mortes cometidas por policiais muitas vezes são justificadas pela ideia de que vivemos “em guerra” nas cidades. Com essa mesma justificativa, intensifica-se cada vez mais, no Rio de Janeiro, um processo de militarização que inclui o uso de armas e equipamentos considerados “de guerra” na repressão ao crime, além de tecnologias de vigilância e controle para capturar elementos suspeitos. Tal militarização é apresentada como justificativa moral e ideológica que permite transformar todos os espaços em “campos de batalha”. Aqui, destacamos uma discussão sobre este debate, trazendo o verbete “Militarização”, publicado pela pesquisadora Lia Rocha.

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O WikiFavelas e a luta popular contra a covid

Por Victória Henrique, em 10 de fevereiro de 2022

No Dicionário de Favelas Marielle Franco, pistas para compreender um fenômeno social que marcou os últimos dois anos: a mobilização das comunidades, que resistiu à sabotagem do governo e organizou a prevenção e o cuidado na pandemia

Mais de 25.000 novos casos de Covid surgiram em favelas no Rio de Janeiro nas últimas duas semanas segundo levantamento realizado pelo Painel Unificador Covid-19 nas Favelas, em parceria com a Fiocruz e outras 23 organizações comunitárias.  As favelas já somam mais de 159.992 casos e 7.978 óbitos desde julho de 2020. O rápido crescimento dos números do nas últimas semanas revela como a nova onda da pandemia vem atingindo moradores desses territórios da cidade.

As favelas no Brasil foram linha de frente no combate ao coronavírus desde o começo da pandemia. Em 2020, quando os primeiros casos de covid-19 foram diagnosticados no país, o Dicionário de Favelas Marielle Franco – wikifavelas.com.br – acompanhou a movimentações de instituições da sociedade civil e movimentos sociais para enfrentar a pandemia nos territórios onde os direitos fundamentais foram negados – inclusive o de se proteger contra a disseminação do vírus.

Criamos uma página especial sobre o coronavirus nas favelas, na qual mapeamos centenas de ações de solidariedade que foram organizadas para levar comida à casa de tantas famílias, além de iniciativas de comunicação comunitária que ajudaram a disseminar informações sobre o vírus, medidas de proteção e gestão do território. Reunimos também notícias sobre a pandemia nas favelas publicadas tanto pela mídia comercial como por mídias comunitárias. E divulgamos reflexões publicadas por moradores e pesquisadores sobre como o coronavírus afetou a vida nas periferias, além de cartas e documentos elaborados coletivamente para cobrar que o poder público produzisse algum plano para lidar com impactos da pandemia nas favelas e painéis com dados epidemiológicos sobre a incidência da doença e mortes, já que os dados oficiais subestimam a ocorrência nestes territórios. Veja os links para todas as páginas no final do artigo.

Em 2021, diferentes organizações reunidas no Painel Unificador que acompanha os casos de Covid-19 nas favelas subscreveram, por exemplo, uma carta ao poder público no Estado do Rio de Janeiro indicando medidas para conter a pandemia e estimular a vacinação nestes territórios. Um ano depois, poucas ações foram efetivamente implementadas pelos governantes nesse campo. Isso se refletiu no aumento da fome, da miséria, das taxas de desemprego e do acirramento da desigualdade no estado.

Algumas instituições, como a Fiocruz, lançaram iniciativas importantes de vacinação em massa (como o caso da Maré, feito em parceria com a Redes da Maré) e recentemente a testagem em massa nas favelas de Manguinhos e da Maré. Apesar de seu caráter restrito, puderam demonstrar que é possível desenvolver políticas públicas para vacinar e testar toda a população nas favelas e periferias. Mas, em 2022, começamos o ano com o preocupante aumento de casos, em razão da variante ômicron. Um novo ciclo de desafios se apresenta às favelas e periferias; agora sem apoio do auxílio emergencial e com uma baixa considerável nas doações realizadas às campanhas de solidariedade.

No Dicionário de Favelas Marielle Franco, podemos acompanhar um pouco dos rastros que a pandemia tem deixado pelas favelas do Brasil, como por exemplo no verbete que reproduz o artigo de Victória Henrique. O texto publicado originalmente pelo nosso parceiro RioOnWatch trata da importância do trabalho de organizações comunitárias diante do apagão de dados e do aumento de casos de Covid-19 causados pela ômicron.

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WikiFavelas: Radiografia do poder miliciano

Por Rede Fluminense de Pesquisas sobre Violência, Segurança Pública e Direitos, em 16 de fevereiro de 2022

Moïse Kabagambe, refugiado africano, trabalhador precarizado, negro, foi assassinado à luz do dia e aos olhos de muitos em um quiosque na orla da Barra Tijuca, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Seu assassinato, pelas mãos de homens brancos a marretadas, nos conta um tanto sobre como o racismo estrutural deste país impede qualquer tipo de interação social do corpo negro sem ser criminalizado ou estigmatizado. Além disso, nos conta sobre os ilegalismos e suas territorialidades na cidade do Rio de Janeiro, diante do fato que de tal crime carrega como marca ter sido realizado (e naturalizado) em área de controle territorial das milícias.

As reações das autoridades governamentais foram esclarecedoras: por um lado, a demora da polícia em tomar providências para abertura do inquérito, o que só veio a ocorrer quando houve mobilização da família e da sociedade e, por outro lado, a tentativa do Prefeito Eduardo Paes de fazer do limão uma limonada, entregando os quiosques onde houve o linchamento aos familiares e outros membros da comunidade de imigrantes africanos. Ou seja, ao invés de banir a milícia do controle do território público das areias da praia, fazer proselitismo político colocando os imigrantes congoleses, anteriormente intimidados por membros da PM, em situação de maior vulnerabilidade diante da truculência dos milicianos. Tudo isso já seria suficiente para compreendermos como o poder se exerce sobre os corpos negros neste país, não fora a catastrófica intervenção do governo federal, através do presidente da Fundação Cultural Palmares, guardiã do legado da raça negra à sociedade brasileira, que culpabilizou a vítima ao dizer que se tratava apenas de um vagabundo morto por vagabundos mais fortes.

Um fenômeno particular às formas de gestão da sociabilidade violenta e dos ilegalismos no Rio de Janeiro, as milícias, como aponta José Cláudio Souza Alves no Dicionário de Favelas Marielle Franco, são grupos criminosos formados e chefiados por agentes de segurança do Estado. Estes grupos estabelecem o controle e o monopólio de serviços e bens a partir do controle armado de favelas, comunidades, bairros e cidades. Sua origem remonta ao surgimento, no final dos anos 1960, em plena ditadura empresarial-militar de 1964, dos Esquadrões da Morte, posteriormente denominados Grupos de Extermínio, que cometiam execuções sumárias, assassinando supostos “bandidos” e cobravam taxas de segurança na Baixada Fluminense. Atualmente, se expandem em novas áreas, novos negócios e novas práticas político-gerenciais.

Segundo nota técnica da Rede Fluminense de Pesquisas sobre Violência, Segurança Pública e Direitos, publicada na plataforma wikiFAVELAS – a qual destacamos abaixo – a expansão das milícias por diferentes territórios populares do Rio de Janeiro nos últimos 20 anos:

alterou profundamente as relações de força antes caracterizadas pelas disputas territoriais entre as organizações rivais do tráfico do varejo de drogas, e pelos conflitos entre elas e a polícia. Com presença crescente em favelas e bairros suburbanos, bem como nas cidades do Grande Rio, a expansão das milícias foi redefinindo os termos da própria metáfora da “guerra”, tão presente no debate público do Rio de Janeiro entre nos anos de 1980 e 2000. Desde sua origem, os grupos milicianos procuraram se posicionar junto às populações dos territórios onde atuavam com um discurso de escudo em face do jugo do tráfico. Nesse sentido, construíram sua identidade originária como a de antagonistas do tráfico, valendo-se, para tanto, do fato de que a lógica da guerra, entre polícia e traficantes, era uma fonte permanente de insegurança e de infortúnio para os moradores das favelas. Desse modo, as operações policiais e as ostensivas guerras entre traficantes retroalimentavam o acúmulo de legitimidade da milícia. A evolução dessa dinâmica fez com que a milícia ganhasse uma velocidade endêmica no Rio de Janeiro, em pouco tempo se tornando uma fonte de acumulação de poder político e social e de riqueza econômica.

Falar em militarização é também falar em “milicianização”. A participação de policiais militares em ações de extermínio e extorsão e o controle territorial de áreas cada vez mais extensas, como a orla da Barra da Tijuca e outros bairros nobres da cidade, só reforçam a urgência em tratar deste fenômeno e suas consequências para a sociabilidade e a vida política da região metropolitana do Rio de Janeiro.

Para acessar o texto na íntegra, clique aqui.

Direito à Moradia, à Terra e à Cidade

Por Movimentos Sociais Populares de Jacarepaguá e Fiocruz-Mata Atlântica, publicado em 23 de fevereiro de 2022

Mais de 300 entidades de todo o país estão organizando coletivamente a Conferência Popular pelo Direito à Cidade, que acontecerá nos dias 03, 04 e 05 de junho de 2022, em São Paulo. A conferência tem o objetivo de construir democraticamente uma plataforma de lutas urbanas voltada para o combate à desigualdade social e à predação ambiental. As entidades envolvidas na construção da conferência defendem a ideia de que não é possível se pensar na redemocratização do país sem que ocorra uma articulação nacional de agentes, atores e entidades vinculados à vida urbana e produção das cidades. Como é dito na carta que apresenta o Encontro Nacional pelo Direito à cidade:

Nesse momento de sobreposição de crises e regressões, é nosso papel recolocar horizontes e desbloquear o futuro que hoje se encontra interditado. É preciso fortalecer a luta pela democracia desde as cidades: nos bairros, nas escolas, nas igrejas e também nas universidades (…) É preciso disseminar a informação e travar a batalha de ideias, resgatar a utopia das cidades como lugar do viver juntos, como o espaço da vida em comum, onde todas e todos podem ser socialmente iguais, humanamente diferentes e livres de opressões, explorações e discriminações. Este horizonte de cidades justas é utópico, mas também realista e necessário”. Leia na íntegra a carta clicando aqui.

O tema das cidades no projeto nacional precisa ser debatido com urgência, especialmente, neste ano, por ocasião das eleições de 2022. E para subsidiar esse debate é fundamental lembrarmos de experiências antigas e recentes, acertos e erros, novos caminhos e formas de luta e organização da vida urbana.

No Dicionário de Favelas Marielle Franco reunimos várias experiências de lutas pela moradia como a organização de moradores da Região de Jacarepaguá no Rio de Janeiro que foram ouvidos pela equipe do projeto “Histórias, Memórias, Oralidades e Cartografia da Luta Social por Terra e Moradia na Região de Jacarepaguá“, realizado pelo PDCFMA – Programa de Desenvolvimento do Campus Fiocruz Mata Atlântica.

O projeto reuniu depoimentos de lideranças e protagonistas que estão na resistência das tensões dos interesses dos grandes investidores, do desenvolvimento especulativo e predatório. Esses depoimentos mostram como “o lugar dos pobres agora é o lugar dos ricos. E os ricos contam com a ação da polícia e de grupos armados para garantir seus negócios. Como também a grilagem e a milícia invadem e negociam terras públicas ou áreas de preservação ambiental, para especular e explorar os moradores”. Mais informações podem ser encontradas no verbete, disponível na íntegra na wikifavelas.

Em um desses depoimentos João Marco, diretor do CPJABA – Centro de Formação Profissionalizante do Jardim Boiúna e Adjacências conta que a luta dos moradores da região de Jacarepaguá por moradia envolveu a organização de diversas ocupações desde os anos 1970 até os anos 1990. Uma série de pressões e conflitos ocorreram tanto no momento da realização como no processo de manutenção das ocupações. Mas os moradores seguiram se organizando na região pois queriam (e muitos ainda querem) não apenas ficar no local, como também conquistar a documentação para regularizar a situação em que vivem. Como narra João:

No final de 1987 havia muitas pessoas pagando aluguel. Havia uma necessidade real, e pessoas do bairro eram contra. Muitas reuniões eram feitas na minha casa. Eram reuniões secretas e meu pai dava aprovação dele. As reuniões secretas tinham o objetivo de não vazar informações. Me lembro que a ultima reunião foi onze dias antes do meu casamento. E fechou-se que a ocupação no Boiúna seria naquele dia 13 de outubro de 1988, e aconteceu. E foi tratada toda estratégia de como ocupar, com resistir, tudo planejado. Não foi uma ocupação fácil. Teve polícia, com pessoas do bairro tentando comprar. Na época chegaram para mim perguntando por que eu estava andando à pé – “eu tenho um carro lá em casa que é sua cara”. Já naquela época, tentava-se comprar as pessoas, tudo para evitar pobres na Boiúna. Mas conseguimos consolidar. Hoje lá tem dez travessas – todas as dez travessas levam o nome de dez moradores, e já está registrada na SMTU (Secretaria Municipal de Transporte Urbano), que participaram ativamente. Uma delas teve o nome do Vavá, que era eletricista. Hoje nosso processo esta no urbanismo. Estamos sempre tentando reunião, mas nunca marca. (…) Naquela época eram trabalhadores que construíram suas casas, algumas ainda vivem no embrião. Acertamos com o secretário Jorge Bittar e estamos aguardando a escritura. Só depois de conseguir o RGI deixaremos de ser ocupação e nos tornamos parte da cidade como bairro.

As falas de João Marco e de outras lideranças como Maria Zélia Carneiro Dazzi, Presidente Associação de Moradores e Pescadores do Arroio Pavuna, evidenciam como parcelas mais pobres da população criam habitação, criam cidade diante da ausência de políticas públicas. No entanto, o poder público, por sua vez, ao invés de criar políticas de habitação, muitas vezes destrói habitações criadas com anos de suor e organização coletiva, torna ilegal a situação desses moradores e cria diversos ilegalismos com os quais eles têm que lidar. Como narra Maria Zélia a resistência se desdobra no tempo, envolvendo formas diversas de organização e politização:

O primeiro embate foi com o DNER (Departamento Nacional de Estradas e Rodagem). Depois veio em 1982, quando surgiu a primeira empreiteira que construiu o (Condomínio) Rio 2, demonstrando que nós incomodávamos. Como na época, ainda tinham muitos barracos, e muitos pescadores velhinhos, começaram os conflitos. Naquela época a gente não tinha conhecimento de que havia Defensoria Pública ou Ministério Público, a gente recorria aos políticos. Eles vinham, faziam reuniões, aí depois eles sumiam. A gente se acalmava. Em 92, um pouco antes da ECO, outro embate com as empreiteiras – ainda não era a prefeitura. Nós recorremos ao Saturnino Braga. E depois se acalma e a gente segue a vida. Quando foi em 2006, o embate foi mais forte. Retiraram parte da comunidade. Embora as pessoas falassem que foi por causa do PAN (Jogos Panamericanos), não teve nada a ver com o PAN: retiraram parte da comunidade, para fazer o acesso para o condomínio Rio 2 e para o que estão construindo agora, o Cidade Jardim. A comunidade, embora não fosse mais barracos e com casas até com piscinas, eles tiraram. As terras – antes eram da aeronáutica – nesta época já existia o ITERJ, mas a prefeitura veio derrubar e o ITERJ não fez nada. Saíram 68 casas. A comunidade foi sendo dividida aos poucos, com o ponto de madeira, concreto, depois outra. Em 2006, lá então foi demolido.

Todas as idas e vindas nesse processo de luta pela habitação, embora gere uma acumulação de saberes, gera também um enorme desgaste nos moradores que precisam viver com pressões, ameaças e uma constante indeterminação. Os processos de criminalização da luta marcam profundamente as experiências subjetivas dessas mulheres e homens como narra Maria Zélia:

Meu marido era um homem politizado desde a ditadura. Eu participava das lutas com ele. Em 2007, quando a prefeitura veio fazer o mesmo que fez do outro lado – porque sempre foi o desejo lá do outro lado que a gente saísse – eu já estava prevenida. Primeiro passo, depois que vieram fotografar, foi tirar medidas das casas, e a assistente social fazendo cadastro. Eu perguntei pra quê, ela não respondeu. Enquanto isto um funcionário da prefeitura entrou na casa, fotografando tudo. Eram 8 horas da manhã, meu marido ainda estava na cama. Entrou sem falar nada. Aquilo me deu uma revolta tão grande! E do meu lado, enquanto eu respondia as perguntas, estava um guarda municipal, com os braços cruzados pra traz, me olhava o tempo todo, como se eu fora uma criminosa. Choro até hoje, isto me marca profundamente.

Todas essas experiências fazem esses moradores sentirem que não tem direito à cidade. Como sintetizou Maria Zélia: “é como se a gente não pertencesse à cidade, como se nosso direito fosse só o de trabalhar pra eles. Mas nós estamos aqui prontos para enfrentar toda guerra para ficar aqui”. Apresentamos abaixo, a entrevista completa de José Jorge dos Santos de Oliveira, membro do MUP (Movimento de União Popular). O depoimento nos convida a repensar o modo como o direito à cidade pode e deve ser trabalhado a partir de práticas e conflitos cotidianos que permeiam a vida daqueles que precisam lutar para ter onde morar. Como bem sintetiza José Jorge:

“Eu costumo dizer que existem movimentos sociais por causa da ineficiência, da irresponsabilidade e da falta de caráter de quem tinha que cuidar daquilo que ele foi eleito para fazer mas não fazem, e ganham muito bem pra isto, com dinheiro dos outros. Então existem os movimentos sociais, onde não se tem tempo pra nada, tem que trabalhar desesperadamente pra comer e pra beber, mas tem que arrumar tempo para conversar sobre seus direitos.”

Para acessar o texto na íntegra, clique aqui.

WikiFavelas: para quem o Estado mostra os dentes

Por Silvia Ramos, Itamar Silva, Diego Francisco e Pedro Paulo da Silva, publicado em 16 de março de 2022

Somente nos últimos sete dias, dois casos de injúria racial cometidos no Rio de Janeiro ganharam espaço na mídia e nas redes sociais. Igor Palhano, dentista, de 30 anos, foi impedido de sair de um shopping da zona oeste antes de comprovar com documentos a propriedade de sua moto. Quatro dias depois, a empresária Sarah Fonseca, de 28 anos, foi interceptada por um segurança “da associação de lojistas do bairro” ao abordar seu próprio namorado e sua sogra, que tomavam café numa padaria de Ipanema, na zona sul do Rio, sob a alegação de que estaria “pedindo dinheiro ou importunando”. Talvez os casos não tivessem tanta repercussão se não envolvessem vítimas com alguma visibilidade: Igor é filho do sambista e humorista Mussum, e Sarah – que é influencer digital com mais de 600 mil seguidores no Instagram – mesmo muito abalada conseguiu reunir forças para denunciar o episódio racista em tempo real nas suas redes. Os dois casos foram registrados na Delegacia de Combate a Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), mas, conforme apontam os resultados da pesquisa Elemento Suspeito, realizada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), eles engrossam uma realidade comum e muito pouco notificada, pela qual os jovens negros passam diariamente ao ir e vir pela cidade.

Achille Mbembe (2014, p.197) explica que a raça é uma moeda icônica, que aparece por ocasião de um comércio dos olhares. “É uma moeda cuja função é converter o que se vê (ou o que prefere não ver) em uma espécie ou um símbolo no interior de uma economia geral dos signos e das imagens que se trocam, que circulam, às quais se atribui ou não valor e que autorizam uma série de juízos e de atitudes práticas”.

O verbete do Dicionário de Favelas Marielle Franco, sobre a pesquisa Elemento Suspeito destaca a dimensão do trauma coletivo que representam as abordagens infundadas e violentas a jovens negros no Rio de Janeiro, que só nos dias atuais vêm sendo explicitamente relacionadas à questão do racismo estrutural da sociedade brasileira. A incidência do indicador de Idade, Gênero, Classe, Cor e Território (IGCCT), criado pelos pesquisadores do CESeC, reforça essa dura realidade: apesar dos casos que ganharam espaço na mídia serem de jovens de classe média/alta, os “elementos suspeitos” de antemão, são mais homens do que mulheres, mais negros do que brancos, mais pobres, mais jovens e mais moradores de favelas e bairros de periferia do que a média da cidade.

Todo esse conjunto de evidências deveria ser mais do que suficiente para tornar inegável que o Estado brasileiro tem no racismo um pilar fundamental de sua lógica de funcionamento. A abordagem da polícia ou das forças de segurança privada é apenas uma ponta desse sistema, que se consolida no encarceramento em massa da população negra. Segundo Juliana Borges (2019), dois em cada três presos são negros, a maioria na condição de presos provisórios – ou seja, ainda aguardando julgamento. No outro extremo dessa engrenagem, por sua vez, encontramos a desmobilização e desconsideração da legislação antirracista por parte de promotores e juízes. Em 2016, pesquisadoras do Afro Cebrap analisaram os bancos de dados de decisões de tribunais de justiça de nove estados brasileiros, e identificaram que a maioria dos casos que envolviam o proferimento de insultos raciais acabavam classificados como “injúria simples” ou “ofensa à dignidade ou decoro de alguém”. Em geral os magistrados alegam ausência de provas sobre a intenção deliberada de discriminar racialmente para que esses casos fossem enquadrados como “injúria racial”.

Se uma das grandes vitórias dos movimentos negros brasileiros é o fato de que racismo aparece como crime inafiançável e imprescritível na Constituição Federal, a realidade nos mostra que ainda estamos muito longe de fazer valer a letra da lei. Em artigo de opinião magistral, Conrado Hubner argumenta que existe uma “Constituição não escrita da brutalidade brasileira” onde “todos são iguais perante a lei, exceto pretos, etc.”; e onde “preto se presume suspeito até prova robusta em contrário”. A pesquisa Elemento Suspeito se debruça exatamente sobre as manifestações dessa norma “oculta” que organiza os comportamentos das forças do Estado brasileiro, retroalimentando desigualdades a partir da discriminação racial.

Introdução elaborada pelo Dicionário de Favelas.

Para acessar o texto na íntegra, clique aqui.

WikiFavelas: O avanço do racismo algorítmico no Brasil

Em diferentes cidades do Brasil, avançam propostas de utilização de mecanismos de reconhecimento facial nas políticas públicas de segurança. Em Vitória, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e vários outros locais, com preocupação vemos o sistema de reconhecimento facial servir como uma ferramenta de impulsionamento do encarceramento em massa.

Pesquisadores e ativistas apontam que tais mecanismos têm um problema estrutural: são alimentados por bases de dados que reproduzem desigualdades raciais, fazendo com que mais pessoas negras sejam identificadas como suspeitas, descortinando uma discussão em torno do “racismo algorítmico”.

Um breve retorno à história da criminologia no Brasil nos revela que não é nova a constituição de um perfil que seria considerado criminoso apenas por existir; um arquétipo suspeito. E, com um olhar cuidadoso aos atores mobilizados pelas políticas contemporâneas de segurança pública, podemos notar que Lombroso, Garófalo e Ferri [pensadores da Escola Positiva Italiana] não morreram; pelo contrário: se fazem presentes nos bancos de dados que alimentam os sistemas de reconhecimento facial, se fazem presentes nos operadores das políticas públicas de segurança e se fazem presente na estrutura de Estado. Em 2019, mais de 90% dos presos por reconhecimento facial no Brasil eram pessoas negras. O combo racismo + proibicionsimo segue tornando a liberdade um horizonte distante da vida de jovens negros e pobres no nosso país.

No Dicionário de Favelas Marielle Franco, podemos entender alguns dos efeitos do encarceramento na vida da população pobre, negra e moradora de favelas e periferias. Um dos exemplos é o verbete “Lutar não é Crime”, onde fica explicitado como a estrutura de estado, por meio de sistema de justiça e sistema prisional, age nas favelas e periferias em um horizonte de violação de direitos e inviabilização da existência digna de determinadas populações, notadamente negros e negras. Nem sempre tais ações foram arquitetadas a partir das tecnologias de reconhecimento facial, mas, sem dúvidas, os receios tornam-se ainda maiores com o desenvolvimento tecnológico do aparato de repressão.

Cabe-nos ampliar a discussão, deslocando os olhares que pensam que, a priori, a tecnologia de reconhecimento facial é boa ou ruim, convocando todos e todas a discutirem do que é constituída tal tecnologia, descortinando jogos de interesse, entendendo quem as controla e quais objetivos diferentes tecnologias podem assumir numa sociedade estruturada pelo racismo. Muitas discussões tentam abrir caminhos para o tema, seja pensando uma moratória no reconhecimento facial, seja pelas acusações de tecnoautoritarismo. Talvez, para o começo de uma conversa franca sobre o assunto, a gente tenha que assumir duas bandeiras como comuns: não podemos aceitar reedições da ideia de “perigosos natos” nem podemos aceitar movimentações no campo da segurança pública que aprofundem desigualdades e injustiças sociais.

Para acessar o texto na íntegra, clique aqui.

Ver também

Publicações sobre o Dicionário de Favelas Marielle Franco