A Noite das Estrelas está, esteve e sempre estará aqui

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

A Noite das Estrelas está, esteve e sempre estará aqui


Figura 01: Valquiria num show no Brizolão Samora Machel, na Nova Holanda. Fonte: Arquivos do Conexão G cedido ao Entidade Maré

Marcela Soares: Aí começou aqui, quem fez a primeira vez foi o Nem, né. Que tinha a caipira, aí ele organizou aí fez ali na quadra da Rubens Vaz, que quis homenagear as amigas dele que ajudava a fazer os figurinos da festa junina. Aí dali foi indo, foi indo pra frente, foi pro Parque União, Nova Holanda, aí começou, aí minha filha virou uma febre. Lá pra mil e caralhada. Quê?! Oitenta e pouco eu acho. Se eu não me engano. Eu comecei a fazer show eu tinha, eu acho que era dezessete. O primeiro show gay que eu fiz eu acho que tinha dezessete/dezoito anos, que foi na Vila. Hoje eu tô com cinquenta e dois.





Figura 02: Moranguinho num show da rua Flávia Farnese, na Nova Holanda.

Fonte: Arquivo do Conexão G, cedido ao Entidade Maré.


Érika Ravache: Teve a Ney e a Menga, a falecida Menga continuou isso, como Noite das Estrelas. E isso foi expandindo, porque isso depois parando de boca em boca Os donos de outras comunidades começaram a pedir Pinheiro, Vila do João, Baixa do Sapateiro, Corações Unidos, né Expandiu pra cá “Ah mais tem show gay aqui na Principal” lotava“Tem show gay no Rubens Vaz” lotava “Tem show gay no Morro do Timbau” lotava, porque não tinha aquela guerra antigamente, então todo mundo poderia passar. Era muito gratificante fazer, porque a gente estava mostrando o nosso trabalho pras pessoas que não tinham esse conceito, essa visão. Era um modo também da gente, como é que eu posso dizer, se posicionar como ser humano, independente que seja gay, ou trans, ou travesti. Não pode deixar morrer essa coisa, porque isso é como se fosse um grito nosso, um grito de sobrevivência.


Figura 03- Carlota Num show na quadra das corações unidos, localizada na favela no Morro do Timbau

Fonte: Arquivos do Conexão G cedido ao Entidade Maré

Era festa junina e um homem no microfone anunciava repetidamente que às 23h começaria o show gay, a "Noite das Estrelas. A rua estava lotada, estávamos mais pra trás da multidão. Perguntei à minha tia Dila o que era show gay, ao que me respondeu que se tratava de um show de “viado”, de “homem que gosta de homem”. Ela foi a loucura quando Erika Ravache subiu no palco. Na performance, ela se movia e dublava a música agitando a plateia, de todas as idades, gêneros e raças distintas. Essas imagens tecidas pela presença do espetáculo, dos gestos estabelecidos da performance abre um universo novo testemunhado pelos meus olhos escrevendo a Noite das Estrelas na minha pele, numa operacionalização limítrofe ao que Beatriz Nascimento no filme “Orí” se refere quando diz que “é preciso a imagem para poder recuperar a identidade. Tem que tornar-se visível.”

A Maré é um bairro da zona norte do Rio de Janeiro composto por 16 favelas, uma terra negra boca que se faz o mundo de uma constelação de milhões de vozes da Noite das Estrelas, e o universo dessas e de múltiplas encruzilhadas. Assim que ela permanece infinita, como fluxos do impossível, de vidas insujeitas.
Quando a pandemia da Covid-19 se tornou a coabitação dos dias, fui passar um tempo na casa da minha irmã. Lá traçamos uma nova rota para escapar da terrível realidade daquele tempo. Passamos dias conversando sobre como a morte era um desenho arquitetado nas conspirações coloniais e contemporâneas para as corpas LGBTQIA+ negras faveladas. Em um país onde o racismo, a LGBTQIA+fobia, as políticas públicas para a cultura ainda não são estruturadas, as rasuras das nossas existências nas pesquisas, nos CENSOs, escritos e documentos da memória de construção e formação da Maré são apenas somas e materiais do pacto social que nos mata. As não audiências não são frutos do acaso: é o traço fundador da colonização, que persiste no contemporâneo comprometida em nos desmaterializar. Fugimos em bonde,  uma multidão que corria conosco como um arrastão “[...] Pois construir uma fuga não significa ser posto para  correr. Pelo contrário, é fazer o real escapar, operar nele variações sem fim para contornar qualquer tentativa de captura. (BONA, 2020, p. 47) 

Essa ideia escapar está constituído em nossas veias, pois a fuga é o que permite a projeção de novos quilombos, na semeadura de outros mundos, é assim que o projeto continua produzindo suas obras que, consequentemente, vai agregando outras narrativas, composições e registros e alguns segredos que envolvem os processos que atravessam esta escrita contando com colaboradores para criar o Entidade Maré em 2020, projeto de pesquisa, comunicação e produção artística de narrativas, arquivos e memórias LGBTQIA+ da Maré. Lembro que quando criamos o projeto, um dos consultores que colaboraram com sua estruturação, Rodrigo Reduzindo, nos disse: “Vocês precisam ser canais desta história, registrar que ela está viva, a covid tá levando os nossos mais velhos, não podemos nos tornar órfãos desta memória”. A criação desse projeto é o que permitiu a estruturação, expansão e desenvolvimento da pesquisa de dados, imagens informações e narrativas LGBTQIA+ da Maré. O Entidade Maré produziu com o material levantado na pesquisa 07 produções artísticas, sendo elas: o curta Entidade, 2020; o Experimento 10 anos de Parada da Maré, uma declaração de amor ao LGBTQIA+ da Maré 2020, o filme performático Noite das Panteras, 2021; o documentário Antes da Noite, 2021; o álbum visual documental performático, Noite das Estrelas, 2021; o curta Meu Universo Corpa 2023 e atualmente estamos vivendo o impossível sonho da Ocupação Noite das Estrelas.

Nesse mote da insistência, de não lidar com a realidade a partir de um aprisionamento, suas vozes fotos e video são as brechas, para espiar e sonhar novas possibilidades artísticas, estéticas, arquitetônicas, metodológica e estilística de se produzir. Este mote do qual os antigos shows da Noite das Estrelas estavam rasgados, à parte dessas específicas articulações da arte habitar o conjunto do cotidiano, realidade e fazer artístico que assenta a encruzilhada como episteme das articulações vozes e pensamentos para afirmar que a Noite das Estrelas está aqui, como também uma iluminação desta imaginação radical, semelhante ao que a Jota Mombaça fala sobre o estilhaçamento, ou melhor o movimento do estilhaço… Pois suas vidas  movimentos que estilhaçam espaços irrespiráveis, nos quais a quebra  junta uma na outra

[...]afinal é uma modo de estar juntas na quebra e de encontrar entre os cacos de uma vidraça estilhaçada, um liame impossível. Tem a ver com habitar espaços irrespiráveis, avançar sobre caminhos instáveis e estar a sós com o desconforto de existir em bando, o desconforto de uma vez juntas, tocarmos a quebra uma das outras. (Mombaça, 2021, p. 26)

No início do artigo "Discursos racializados e epistemologia étnicas”, Billings (2010) vai apresentar duas perspectivas epistemológicas. Nessa relação, ela ilustra as visões posicionadas a partir de seus princípios estruturantes. A visão, que aborda uma noção de conhecimento a partir das relações Africanas, a construção de conhecimento e existência está constituída na relação com o outro, “[...] onde o ditado africano ‘Ubuntu’, traduzido para ‘existo porque nós existimos’ afirma que a existência (e o conhecimento) do indivíduo é dependente das relações com os outros (Billings, 2010, p. 259)”. Esse lugar ético onde olhar pros outros é um dos fatores e elemento designante (e fundante) das irmandades alimentadas pelo ubuntu, só é possível a partir de uma percepção com o mundo na qual o outro te afeta. O fator diferença é reconhecido através da relação de inclusão do outro. Uma inclusão que não está atrelada a retornos ou ganhos de uma relação, mas articulado pela percepção social de indivíduo enquanto elemento transparente de uma dinâmica social, que não está encerrada em si ou numa visão de mundo constitutivo da solidão. As corpas encontram nas expressões culturais da Maré os buracos para atravessarem as paredes das casas e estabelecerem seus e gestos, closes e dublagens nas ruas e becos da Maré. Existir como LGBTQIA+ nesse território é rebeldia descarada. Este legado torna a Noite das Estrelas uma explosão de amor que estilhaçam e debocham a normatividade. É um parar do tempo fruto do movimento feito por muitas mãos, mãos carnais e invisíveis. Na tessitura habitada no dia a dia, nos sonhos, estrelas e do se fazer junto, pois estão vivas nas fugas que ubuntu possibilita ser feito nos movimentos de irmãs uma magia negra que nos abriga nos planos e fugas onde a pretitude não para de amar pra renascer. Por isso não se pode resgatar esta memória pois ela não se pode resgatar o que está vivo. miniaturadaimagem