Marielle Franco

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Marielle Franco

Marielle Franco, Marielle Francisco da Silva, vereadora da cidade do Rio de Janeiro, mundialmente conhecida após ter sido assassinada, junto com seu motorista Anderson Gomes, em 14 de Março de 2018. Mais de um ano após esse crime brutal, a sociedade, sua família e suas eleitoras e eleitores ainda continuam sem saber quem mandou matá-la e porquê.  Entre as poucas certezas, sabemos que foi um crime político.  Eleita com 46.502 votos em 2016, aos 37 anos, foi a quinta parlamentar mais votada da cidade e a segunda mulher com mais votos, mas não pode concluir o seu mandato de quatro anos. A incidência política de Marielle não começou na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, nem se encerrou após sua morte.

Mari, como era conhecida entre suas amigas, amigos e colegas de trabalho, apresentava-se recorrentemente como mulher, negra, mãe, socióloga e cria da Maré! Agora, Marielle Franco passa a ser também símbolo das lutas de todas as mulheres que desejam um mundo livre de opressões. Não à toa, a frase “Marielle é semente” tomou conta do mundo.

Autoria: Mandata Marielle Franco | Por Iara Amora e Mariana Gomes

Cria da Maré[editar | editar código-fonte]

Cria, gíria que, nas favelas do Rio de Janeiro, se refere a quem nasceu e cresceu - foi criado - em determinado território. Maré nome popular do Conjunto de Favelas da Maré, localizado na zona norte do Rio de Janeiro. A Maré abriga 16 favelas (Baixa do Sapateiro, Morro do Timbau, Parque Maré, Nova Maré, Nova Holanda, Rubens Vaz, Parque União, Conjunto Esperança, Conjunto Pinheiros, Vila do Pinheiro, Vila do João, 'Salsa e Merengue', Marcílio Dias, Roquete Pinto, Praia de Ramos, Bento Ribeiro Dantas e Mandacaru) e 129 mil moradores segundo o Censo Maré 2010. Ao se apresentar como Cria da Maré, Marielle reivindicava a sua identidade de favelada e a importância deste lugar em sua trajetória e também formação.

Como grande partes das favelas cariocas, a Maré é composta por uma maioria negra, nordestina, ou descendente de nordestinos. A família de Marielle não é diferente. Marinete da Silva e Antônio Francisco da Silva Neto (Seu Toinho), seus pais, são descendentes de paraibanos. Seu avô paterno foi um dos primeiros moradores da Maré, ainda na época em que a maioria das casas eram palafitas. Parte de sua “tendinha” encontra-se exposto no Museu da Maré. A primeira filha do casal, Marielle Francisco da Silva, nasceu em 27 de julho de 1979. A menina comunicativa e serelepe cresceu na  Maré, morando em diferentes localidades ao longo da vida, Conjunto Esperança, Timbau, Baixa do Sapateiro e Conjunto Manoel Nóbrega. Ainda criança, Marielle ganha uma irmã, Anielle, por quem muitas vezes enfrentou garotos encrenqueiros e a quem já ensinava a não baixar a cabeça para ninguém. Marielle ressaltava que foi uma adolescente favelada, que estudou em escolas públicas, frequentou o grupo jovem da Igreja Católica, brincava na rua e fugia para ir ao baile funk.

Mãe[editar | editar código-fonte]

Como a mesma repetia, em um primeiro momento, Marielle não fugiu das estatísticas. Aos 19 anos, tornou-se mãe de sua única filha, Luyara Santos. “Ser mãe na favela não é fácil”, contava Marielle, sempre narrando histórias de quando Luyara era bebê. Empurrar o carrinho pelos becos e vielas esburacados, sem saneamento básico e, principalmente, debaixo de muito tiro, eram alguns dos maiores desafios da Marielle-mãe. Luyara nasceu em uma maternidade pública, estudava em creche pública e viveu seus primeiros anos de vida na Maré. Aos poucos, com muito trabalho e algumas oportunidades, Marielle foi reescrevendo essa história, acessando novos caminhos e proporcionando à sua filha uma vida menos atribulada. Quando Luyara tinha por volta de 8 anos, Marielle conseguiu se formar em Ciências Sociais, passou a trabalhar diretamente com Direitos Humanos, algo que já era parte de sua vida através da militância. Assim, conseguiu pagar os estudos da filha, que se formou no Ensino Médio e, atualmente, estuda na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

Muitas pessoas acreditavam que Luyara era irmã de Marielle, devido à semelhança e à relação de amizade das duas. Faziam muitas atividades juntas, mas uma das que mais gostavam eram os ensaios do Bloco Apafunk, em que Luyara tocava caixa, cantava e estava aprendendo a reger; e Marielle tocava tamborim e agogô. Mesmo com pouco tempo e uma vida muito corrida, ela não deixava de ir aos encontros semanais, ressaltando sempre que era o lugar de se divertir com a filha.

Socióloga[editar | editar código-fonte]

Em 2000, ainda com a filha pequena, Marielle consegue retomar os estudos e o plano  de ingressar em uma faculdade. A jovem, então, retorna ao  pré-vestibular comunitário no Centro de Ações Solidárias da Maré (CEASM), o qual já tinha frequentado a primeira turma e saído por conta da maternidade. Foi neste pré-vestibular que Marielle depositou suas esperanças em conquistar uma vaga na universidade e após 2 anos ingressou na universidade. Foi também no CEASM que a jovem conseguiu um de seus primeiros empregos, na secretaria da ONG.

A partir de então, Marielle começa a ocupar espaços pouco acessíveis para a maioria das/os moradores de favelas e periferias da cidade. Em 2002, ingressou na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), onde cursou Ciências Sociais com uma bolsa integral obtida pelo Programa Universidade para Todos (Prouni). Enfrentou a dupla e tripla jornada de trabalho como grande parte das mulheres, não foi fácil conciliar os estudos com o trabalho e a maternidade. As dificuldades eram enormes, para além das questões financeiras, bem comuns ao cotidiano das classes mais baixas, sobretudo a juventude negra e periférica. Havia também a distância entre sua casa e a universidade, a precariedade e o alto preço do transporte público, a falta de políticas públicas para as mulheres mães, além do racismo cotidiano.

Alguns anos após se formar na graduação, Marielle queria continuar os estudos e fazer mestrado. Incentivada à época por seu companheiro, Eduardo Alves, pela família e amigas, decidiu ingressar no programa de mestrado em Administração Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF). Em 2014, tornou-se mestra defendendo a dissertação intitulada "UPP - A redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro". Após o assassinato de Marielle, sua família e amigas decidiram transformar sua dissertação em um livro de mesmo título.

A dissertação de mestrado de Marielle é fruto de uma intensa pesquisa, mas também de muita militância e experiência pessoal. O tema não foi escolhido por acaso, era resultado de sua personalidade: não se permitia viver em zona de conforto, queria se provocar o tempo todo, sem se acomodar em caminhos fáceis. Uma brilhante análise sobre a política de segurança pública implementada no estado do Rio de Janeiro entre 2008 e 2013, as Unidades de Polícia Pacificadora, alvo de tantas críticas por parte dos movimentos sociais, e ao mesmo tempo defendida com afinco por algumas parcelas da sociedade civil e representantes do Estado brasileiro.

Para Marielle Franco, o objetivo da dissertação foi demonstrar que “enquanto política de segurança pública adotada no estado do Rio de Janeiro, [as UPPs] reforçam o modelo de Estado Penal”, além de tentar “identificar se as UPPs representam uma alteração nas políticas de segurança ou se estas se confirmam como maquiagem dessas políticas”. A análise de Marielle Franco compreende os anos entre 2008 e 2013, com foco na perspectiva das favelas, em especial a Favela da Maré, onde o Estado Penal, influenciado pelo acirramento do neoliberalismo, ainda segundo a autora, usa o discurso da ‘insegurança social’ e “aplica uma política voltada para repressão e controle dos pobres”.

Ainda segundo Marielle, “o cerco militarista nas favelas e o processo crescente de encarceramento, no seu sentido mais amplo” eram representativos do contexto de implementação das UPPs. Elas, portanto, se apresentam como uma política que fortalece o Estado Penal para “conter os insatisfeitos ou ‘excluídos’ do processo, formados por uma quantidade significativa de pobres, cada vez mais colocados nos guetos das cidades e nas prisões”.

Enquanto pesquisava e escrevia este trabalho, Marielle Franco seguia atuando como militante defensora de Direitos Humanos. Luta a qual foi se reconhecendo a partir de sua vivência pessoal de mulher, negra e favelada. Em 2005, sua amiga Jaqueline da época do pré-vestibular,  estudante de economia na UERJ, foi assassinada durante um tiroteio na favela. O crime aconteceu na mesma localidade onde também já havia sido morto, o menino Matheus, de apenas 7 anos, que havia saído para comprar pão. Este momento doloroso a aproximou ainda mais do debate sobre o direito à vida na favela e da segurança pública, mais tarde aprofundado em sua trajetória de militância e acadêmica, em especial no mestrado, e da construção da campanha contra o caveirão, no mesmo ano.

Marielle tinha a consciência da importância da ocupação de cada um dos espaços até onde chegou em sua trajetória, ela costumava dizer que ocupar a política é fundamental para reduzir as desigualdades que nos cercam e foi o que ela fez de diferentes formas em toda a sua trajetória.

Em 2006, participou da campanha que elegeu Marcelo Freixo à deputado estadual do Rio de Janeiro. Desde o primeiro mandato de Freixo, Marielle atuou como assessora parlamentar. Entre as ações desenvolvidas por ela, estava a constante articulação com diversos movimentos sociais, desde o movimento feminista, aos movimentos de favelas e de cultura. Um exemplo foi sua atuação durante o processo de aprovação da Lei 5543/2009, conhecida como Lei Funk é Cultura, que define o funk como movimento cultural e musical de caráter popular. Atuou também  como coordenadora da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (CDDHC/Alerj), presidida por Marcelo Freixo. Marielle se tornou referência no atendimento às violações aos direitos humanos no Rio de Janeiro e seu telefone um dos mais acionados nestas situações. O que não deixou de acontecer quando se tornou vereadora.

Na CDDHC/Alerj, Marielle passou a deixar sua marca e imprimir uma nova estratégia diante dos desafios colocados para a esquerda do Rio de Janeiro. Seu olhar para a favela era nítido e uma característica evidente de sua atuação, mas ela não aceitava ficar nesta “zona de conforto”. Foi então que ela passou a dar uma atenção especial não somente às vítimas de violações de Direitos Humanos, mas também às mães e familiares de vítimas de violência do Estado e, posteriormente, aos policiais e agentes de segurança pública vítimas de violações.

Mulher[editar | editar código-fonte]

Em sua vida de jovem favelada, como a mesma gostava de reivindicar, Marielle já questionava a limitação de acesso das mulheres aos espaços, quando por exemplo, pegou a bola de garotos que não queriam deixar sua irmã Anielle jogar porque era mulher. Tinha consciência de que podemos ocupar os lugares que quisermos, de “garota furacão” ao “corredor dos bailes", exemplos que citava a partir de sua própria vivência.

No entanto, é a partir da maternidade, que sua consciência sobre o que é ser mulher em nossa sociedade aumenta, seja pela vivência da negação ao direito da licença maternidade, uma vez que a mesma retorna ao trabalho como recreadora de uma creche infantil da prefeitura do Rio de Janeiro, quando sua filha ainda tinha apenas três meses de vida; a sobrecarga materna, por ser praticamente a única responsável pelos cuidados com sua filha e casa; e, posteriormente, a vivência da criação da filha sem a presença do pai.

A vivência de sua sexualidade, também a levou  a questionar os padrões heteronormativos impostos às mulheres, ao se apaixonar por Mônica Benício, mulher com quem se relacionou durante vários momentos da vida. Mônica e Marielle se conheceram ainda na juventude, na Maré, e enfrentaram diversas  barreiras e  muitas mudanças em suas vidas, até vivenciarem seu relacionamento publicamente. Momento que coincidiu com o processo eleitoral e que posteriormente refletiu em sua atuação parlamentar, com grande atuação na pauta LGBT.

Em sua trajetória de militância, Marielle também se aproximou de diferentes formas e momentos dos movimentos feministas. Participando de atividades em instituições como CRIOLA e Casa da Mulher Trabalhadora (CAMTRA), de articulações como o Fórum Estadual de Enfrentamento à violência contra as Mulheres (FEM) e da Organização Mulheres de Atitude de Manguinhos. Como assessora parlamentar, Marielle atuava como articuladora entre o movimento feminista e o mandatos, ajudando a garantir a participação das mulheres nos debates sobre projetos de lei que envolviam os direitos das mulheres ou os ameaçavam.

Já em sua atuação como vereadora, Marielle ressaltava a importância da articulação dos diversos movimentos feministas, como constantemente afirmava “das feministas históricas às feministas das hashtags”, o que não se limitou a mera retórica. Durante seu mandato, todas as ações parlamentares referentes aos direitos das mulheres foram realizadas em articulação e/ou consulta aos mais diversos movimentos feministas, de mulheres lésbicas, negras, jovens, instituições e militantes históricas com atuação nas pautas do enfrentamento à violência contra as mulheres, saúde sexual e saúde reprodutiva, entre outros.

Algumas das construções mais emblemáticas foram a construção do Projeto de Lei pela garantia do atendimento aos casos de aborto legal na cidade do Rio de Janeiro, construído em articulação e consultas com diversas organizações e referências do movimento feminista e de saúde do Rio de Janeiro, apresentado no primeiro dia de sua legislatura; e do Projeto de Lei que tornava o Dia da Visibilidade Lésbica (29 de agosto) uma data oficial do calendário municipal. Mesmo não aprovado, as articulações em torno do PL impulsionaram a construção da Frente Lésbica do Rio de Janeiro. Reprovado por apenas dois votos de diferença, foi o projeto com temática LGBT que chegou mais perto de ser aprovado na Câmara municipal do Rio de Janeiro.

Negra[editar | editar código-fonte]

Marielle afirmava que antes de se reconhecer como mulher negra, ela tinha já tinha a identidade de favelada. É assim que ela chega a PUC, e como toda uma geração de juventude negra que acessou à universidade nas últimas décadas, nesse espaço que se aprofunda o reconhecimento e auto-afirmação de sua negritude e identidade de mulher negra. Sendo determinantes nesse processo, os debates sobre a invisibilidade das trajetórias negras. A mesma afirmava o quanto tinha sido importante para ela descobrir que Lélia Gonzalez havia sido diretora do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, no qual ela estudava.

Esse lugar da referência de mulheres negras passa a ser uma constante em sua trajetória, estando várias delas entre suas preferências de leitura. Angela Davis, a qual ela tinha tanta vontade de conhecer e Conceição Evaristo, a quem teve a oportunidade de homenagear com a Medalha Pedro Ernesto, a maior honraria da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, eram algumas de suas escritoras favoritas. Com a execução política de Marielle, ela que passa a ser referência para as suas referências e para gerações de mulheres negras, mais velhas e mais jovens que ela.

Antes, Marielle já inspirava muitas mulheres negras, em especial as jovens, que desde sua campanha não perdiam a oportunidade de abordar Marielle nas ruas, em atos, manifestações ou mesmo no dia a dia, para pedir fotos e falar o quanto se sentiam representadas por ela. Não foram poucas as que, ao serem atendidas por Marielle na Comissão de Defesa da Mulher da Câmara Municipal, tinham um olhar de identificação.

Esse processo de auto-afirmação de sua identidade negra passa a ser também visualmente identificado em seu corpo, através de seu cabelo (em que ela parou de aplicar químicas conhecidas como “relaxamento” em 2015), roupas e turbantes. A referência à ancestralidade e a representatividade também se torna central e ficam cada vez mais presentes em seu discurso e prática. Marielle reiterava constantemente que não se poderia esperar mais 10 anos para a eleição de outra mulher negra na Câmara do Rio de Janeiro com pautas progressistas, fazendo referência ao período entre as eleições de Benedita da Silva (1982), Jurema Batista (1992) e sua própria eleição (2016).

Vereadora[editar | editar código-fonte]

A decisão de se candidatar a vereadora nas eleições de 2016 refletia o acúmulo político da trajetória pessoal e de militância de Marielle. Sua campanha foi realizada de forma reconhecidamente ousada e coletiva. Mulher na rua, na luta e na raça, #MulheRaça, foi o slogan de sua pré-campanha. Já durante a campanha, através do lema “Eu sou porque nós somos”, inspirado no provérbio africano “Ubuntu” anunciava sua candidatura como uma construção coletiva e suas posições como defensora de direitos humanos, feminista, favelada e negra. Já colocava em prática sua preocupação com a participação das mulheres nos espaços de decisão, viabilizando espaços infantis/recreativos em todas as atividades de campanha e posteriormente, de seu mandato. Esta experiência foi transformada em um panfleto orientador sobre espaços infantis para outros mandatos, partidos e coletivos. O material foi lançado durante o evento Mulheres na Política, realizado em 30 de novembro de 2017 pelo mandato, marcando a imensa importância das vozes das mães para a construção das políticas implementadas por Marielle Franco.

Como resultado dessa potente campanha, Marielle foi eleita eleita com 46.502 votos, a quinta parlamentar mais votada da cidade do Rio de Janeiro e a segunda mulher com mais votos. Gostava de sempre salientar que, de todas as urnas computadas na cidade do Rio de Janeiro, em 100% delas foram computados votos no 50777, seu número durante a campanha eleitoral de 2016.

Marielle chegou na  Câmara com o “pé na porta” expressão recorrentemente usada por ela. Já no primeiro dia de legislatura, apresentou projetos de lei, realizou pronunciamentos marcantes e usou massivamente as redes sociais para divulgar seu trabalho coletivo e convocar a população à participação política. Entendendo a importância da internet como principal forma de comunicação nos dias de hoje, o mandato organizou dois encontros com ativistas transmitidos online através das redes sociais. O primeiro deles foi sobre feminismo nas ruas e nas redes, abordando toda a diversidade das mulheres feministas; o segundo foi sobre maternidade, mais uma vez demonstrando a importância do tema para a trajetória e atuação de Marielle.

Em um ano e três meses de uma “mandata”, que deveria ter durado pelo menos quatro, concretizou uma política feminista, em defesa da população negra, LGBT e de favelas. Apresentou 16 projetos de lei, presidiu a Comissão de Defesa da Mulher e foi nomeada relatora  da Comissão Especial de acompanhamento da Intervenção Federal. Para isso, não chegou à Câmara sozinha, constituiu uma equipe majoritariamente feminina (mais de 80% eram mulheres), negra, com moradoras/es de favela, LGBTs e mães. Nomeou Lana de Holanda, mulher trans, primeira assessora na história da Câmara do Rio de Janeiro a conseguir o direito ao nome social em seu crachá funcional. Corpos que assim como o seu não eram reconhecidos como habituais naquele espaço e que ainda abriram as portas para outros. Jovens mulheres negras entraram pela primeira vez na Câmara para participar do “rolezinho” pelo palácio repleto de imagens coloniais; povos de religiões de matriz africana ocuparam o plenário para assistir o debate público “Awre aos nossos ancestrais - Reexistir na Fé!”; mulheres negras constituíram integralmente a mesa da entrega da Medalha Pedro Ernesto à Conceição Evaristo, numa noite emocionante com plenário e galerias cheias.

Mas não era só a Câmara municipal que Marielle e sua mandata ocuparam. Também estiveram nas ruas, por vários territórios da cidade. Realizaram o Seminário Direito à Favela, que aconteceu no Museu da Maré; o OcupaDH no Salgueiro, junto com a Comissão de Direitos Humanos na Alerj e a Associação de Moradores; visitou maternidades públicas do Rio de Janeiro; distribuiu pelos blocos de carnaval espalhados por todas as regiões da cidade mais de 200 mil leques da campanha “Não é Não! #carnavalsemassédio”, pela Comissão da Mulher.

Não ocupar a política sozinha era um compromisso político de Marielle Franco. Mulheres na política, evento realizado em novembro de 2017, foi o maior de seu mandato reunindo mais de 600 pessoas no auditório da ABI. O evento foi construído em articulação com mulheres que pretendiam se candidatar nas eleições seguintes.

Já no primeiro ano de mandato aprovou o projeto de lei que previa a criação de Casas de Partos no município. Na data em que completaram-se cinco meses de seu assassinato, fruto da incidência da bancada do PSOL, das e dos  integrantes de sua “mandata” foram aprovados mais cinco dos projetos apresentados por Marielle. Assim, tornaram-se leis na cidade do Rio de Janeiro: o Programa de Espaço Infantil Noturno (Espaço Coruja), a criação da campanha de enfrentamento ao assédio e violência sexual nos transportes (Assédio não é passageiro), o Dia Municipal de Luta contra o encarceramento da Juventude Negra (20 de junho, marcando a data da prisão de Rafael Braga, jovem negro preso durante as manifestações de 2013), o Dia de Tereza de Benguela e da Mulher Negra (25 de julho), o Programa de Efetivação de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto e a criação do Dossiê Mulher Carioca (que pretende reunir anualmente números sobre as mulheres atendidas por políticas públicas no município).

A frente da presidência da Comissão da Mulher, Marielle inovou ao trazer sua experiência anterior e torná-la também um espaço de atendimento às mulheres e não só um espaço burocrático. Neste período a comissão da mulher atuou no acolhimento, orientação e acompanhamento de 45 casos relacionados aos direitos das mulheres, desde casos de assédio na rua, assédio no ambiente de trabalho, agressão física, violência sexual e até feminicídios

Grande parte desta experiência está registrada no relatório da Comissão da Mulher, que já estava sendo produzido com os dados de trabalho do primeiro ano de trabalho. Após a noite de 14 de Março, o material foi finalizado pela equipe da Mandata Marielle Franco, revisado e ampliado para incorporar tudo que foi construído até o dia 14 de Março de 2018.

A curta e intensa experiência da Mandata Marielle Franco repercutiu o feminismo que acreditamos, construído de gerações em gerações, traçando a política no coletivo, sem suprimir nossa diversidade. “Diversas mas não dispersas’! Não podemos deixar de apontar, no entanto, que seu término violento reflete a ausência de uma democracia plena em nosso país, negada a milhares de pessoas, que se sentiam representadas por Marielle Franco.

Semente[editar | editar código-fonte]

Marielle Franco teve sua vida interrompida na noite de 14 de março de 2018, quando voltava para sua casa com seu motorista, Anderson Gomes, e sua amiga e assessora, Fernanda Chaves, única sobrevivente do atentado. Naquele dia, Marielle e outras mulheres negras realizaram a que seria a última atividade de Marielle “Jovens negras movendo as estruturas”, esta foi a última roda de conversa em que mulheres e toda a cidade puderam dialogar com Marielle. Na mesma noite, ainda atônitos com a notícia que parecia não fazer sentido, alguns militantes do PSOL, amigas e amigos próximos e assessoras de Marielle se reuniram para se abraçar. Enquanto isso, alguns eventos nas redes chamavam para uma mobilização na Cinelândia, em frente à Câmara Municipal, local que nitidamente nunca mais foi o mesmo após a passagem de Marielle.

E foi o que aconteceu. Logo pela manhã, enquanto acontecia o velório na parte interna da Câmara Municipal, a praça já estava tomada de pessoas, em sua maioria mulheres, exigindo respostas sobre o crime. Outras cidades brasileiras também realizaram protestos e vigílias em memória de Marielle. Ao longo do dia, as ruas do centro da cidade, entre a Cinelândia e a Praça XV, estavam tomadas. Era possível perceber uma grande maioria de mulheres, em especial jovens e negras, chorando e se abraçando pela perda de uma representante que há muito a esquerda sonhava eleger. Durante todo o dia, o noticiário brasileiro e internacional repercutiu as poucas informações que existiam sobre o crime. Artistas, intelectuais e políticos manifestaram indignação e tristeza pelas redes sociais.

No dia 18 de março, outra emocionante manifestação marcou os quatro dias do assassinato de Marielle no local que tanto fez parte de sua vida. Cerca de cinco mil pessoas se reuniram na Maré em uma marcha que ecoava “Marielle e Anderson Presentes”. Sete dias depois, outra manifestação tomou as ruas do centro, da Candelária à Cinelândia, terminando com um enorme ato inter religioso. No dia em que se completou um mês do crime, milhares de pessoas refizeram seu último trajeto e de Anderson, caminhando da Lapa ao Estácio.

Desde o dia 14 de março, mensalmente há mobilizações pelo Brasil e pelo mundo em memória de Marielle Franco. Uma das mais marcantes aconteceu quando políticos de extrema-direita, do partido do presidente Jair Bolsonaro, quebraram uma placa de sinalização com o nome Rua Marielle Franco. Uma mobilização realizada na internet arrecadou dinheiro para confecção de milhares de novas placas para que as pessoas pudessem guardar de lembrança e multiplicar a placa quebrada. Foram mais de 1700 placas distribuídas no dia, outras placas foram confeccionadas depois.

Marielle hoje é um símbolo da luta internacional feminista e negra. Foi a principal homenageada de 8 de Março (Dia Internacional de Luta das Mulheres) de 2019. O dia 14 de Março agora também faz parte do calendário de lutas dos movimentos feministas, LGBTs, negros e outros. Após mais de um ano de seu assassinato, seu rosto, nome e frases continuam estampados em grafites, cartazes, placas e intervenções urbanas espalhados pelo mundo. Nomeia coletivos feministas, negros, LGBTs, universitários, pré-vestibulares, assentamentos e ocupações por moradia, e a Tribuna da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Esta última, local onde por tantas vezes Marielle subiu para denunciar violações aos direitos humanos das mulheres, LGBTs, do povo negro e de favelas.

A frase que diz que Marielle virou semente se mostrou muito forte também durante o período eleitoral de 2018. Houve um considerável aumento de candidaturas de mulheres negras, refletindo também na eleição de algumas parlamentares negras, sobretudo nos partidos de esquerda. Em especial, três mulheres negras que compunham o mandato de Marielle Franco se candidataram e foram eleitas deputadas estaduais no Rio de Janeiro: Dani Monteiro, Mônica Francisco e Renata Souza.

Hoje, sua família e companheira são incansáveis na tarefa de representá-la mundo afora. As e os integrantes de sua mandata, suas amigas e amigos, companheiras e companheiros de partido e militância propagam a sua história e luta através de inúmeras iniciativas e registros dessa memória. Assim como estamos fazendo neste dicionário que leva seu nome.

Como ela disse em seu discurso de 8 de Março de 2018 “Não serei interrompida, não calarão a voz de uma mulher eleita”. Interromperam a sua vida, mas a trajetória de Marielle Franco, mulher negra, bissexual, em um relacionamento lésbico com o amor de sua vida, como ela mesma dizia, feminista e cria da favela, pautas que carregava em seu corpo e impressas na sua atuação política, continuará ecoando pelo mundo inteiro. Marielle, presente!

Ver também[editar | editar código-fonte]