Ninguém solta a mão de ninguém (depoimento)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Depoimento da Anielle Franco, irmã da vereadora Marielle Franco, sobre a solidariedade - e a falta dela - com sua família no processo pós-assassinato de Marielle.

Autora: Anielle Franco[1].

Depoimento[editar | editar código-fonte]

“Eles combinaram de nos matar. E nós combinamos de não morrer.” Conceição Evaristo.

Quando nos deparamos com tempos tão difíceis, cruéis, sombrios como os atuais, qual a nossa primeira reação? Quando lemos uma frase como a do título desse livro, quais mãos você seguraria primeiro e não soltaria mais? Você aceitaria segurar a mão de alguém que não conhece ou nunca viu, só por empatia? Até que ponto esse frase faz sentido em sua vida?

Penso nisso e aí me vem mais questionamentos...

Quem irá segurar a mão da minha família? Quem não vai soltar a nossa mão? Quem está do nosso lado de verdade e não por uma oportunidade?

Essas são algumas das perguntas que nos fazemos desde o dia 14 de Março de 2018. Um dia fatídico pra nossa família. Um dia no qual nós conhecemos a dor, a luta, o luto, a crueldade, os oportunismos da vida, mas também muito amor. Ainda bem, que também conhecemos muito amor.

Ao matarem minha irmã, uma mulher negra e favelada que foi democraticamente eleita com mais de quarenta e seis mil votos, mataram também nossa família. Um crime político bem arquitetado, provavelmente muito bem pago, que influenciou e mudou nossas vidas de maneira brusca. Arrancaram de nós a nossa líder, nossa primogênita, nossa voz, nossa força e nossa política mais confiável. Nós fomos pra rua fazer campanha pra ela, usamos nossos salários para ajudar, gritamos, nos esforçamos, voltamos até a acreditar na política novamente com a entrada dela. Mas tudo isso foi interrompido em apenas 1 ano e 3 meses.

Quem mandou matar Marielle? Quem matou Marielle? Essas perguntas fazem parte de nossos pensamentos e nos assombram há meses sem respostas.

Hoje a família de sangue da Marielle, é taxada muitas vezes como a família “daquela vereadora morta que defendia bandido”. Ora, quem em sã consciência sabe o que significado de DEFENSORA DOS DIREITOS HUMANOS? No Brasil, pelo o que vemos, nem todos os cidadãos sabem sobre o que se trata. Digo isso com propriedade, pois assim que mataram minha irmã a tiros, tentaram também matar a reputação, a história, e os valores dela. Foram diversas fake news sobre o caso, a vida, a reputação e os trabalhos desenvolvidos ao longo de anos com muita luta e suor. Fizemos de tudo pra combater essas maldades. Não nos calamos, não nos intimidamos, e por isso também sofremos todo tipo de agressão, sendo online ou pessoalmente. Lembro-me do dia que fui cuspida com minha filha no colo por pessoas que se diziam de bem e de direita, me xingando de “feminista de merda de esquerda irmã da vereadora bandida”.

Momentos como esse apenas nos provam que nem todo mundo está do nosso lado. E que nem todo mundo pensa e segura nossa mão. Não deveria ser assim, afinal, independente de credo e ideologia, estamos falando de uma vida humana que foi tirada de maneira arrebatadora.

Nossa família tem se apoiado em pessoas que nos trouxeram algum tipo de esperança após esse ato. Não tem sido fácil. Não tem dado pra viver normalmente depois de toda essa maldade. Mas precisamos nos segurar uns nos outros e tocar esse barco de maneira sábia.

Hoje, como mulher negra, favelada, mãe, professora, jornalista, palestrante, escritora, e eterna estudante, eu tento retomar minha vida (que nunca foi fácil) e dar continuidade a projetos nossos profissionais e pessoais. Minha vida hoje se divide em tomar conta de uma mãe e um pai que perderam sua filha e de uma sobrinha afilhada que perdeu sua mãe.

Como se não bastasse, precisamos dar conta de toda essa maldade humana, e ainda assim precisamos tocar nossos próprios sonhos que não podem morrer nunca. E é aí que nos encontramos com outras pessoas e realidades buscando afago e empatia.

Não sei se você leitor/leitora já perdeu algum parente querido e bem próximo. Mas retomar a vida diante de tudo isso não é nada fácil. Quando cheguei ao local do crime e vi no chão o sangue de minha irmã derramado, que pingava por suas mãos, a primeira coisa que me veio a minha cabeça foi uma leitura que fiz de um livro sobre Abdias Nascimento no qual ele citava e recitava a importância de vingar um sangue que uma vez fora derramado, sendo esse sangue nosso também. Não estamos nos referindo a vingança violenta, mas a vingança de honra. Honrar um sangue derramado é honrar a vida e historia de uma pessoa que significou e significa muito pra nós. É honrar seu sangue.

Ao chegar naquela rua no dia do crime, minha primeira imagem foi exatamente a mão de minha irmã pendurada pra fora do carro com seu sangue escorrendo e pingando. Uma imagem forte, uma imagem que eu jamais esquecerei. Uma imagem na qual eu pude somente gravar e lembrar, pois infelizmente naquele momento eu fui proibida de segurar a mão dela. Tudo que eu queria era segurar e tocar, embora que simbolicamente eu soubesse que seria a última vez. E eu não pude. E gritava: “me deixa segurar a mão dela”.

Eu não consegui!

Mas hoje, sigo segurando as mãos dos meus.

Seguro firme as mãos de todas as mulheres vítimas de violência domestica ou qualquer outro tipo de violência; principalmente as mulheres negras como eu, que continuam sendo a carne mais barata do mercado. Por aqui, seguiremos honrando o sangue de Marielle Franco, e lutando por igualdade, respeito, e representatividade.

Ninguém solta a mão de ninguém

Mas eu também não seguro a mão de quem vai contra os direitos humanos e liberdade de escolha. Sigamos!

Ver também[editar | editar código-fonte]

  1. Conteúdo reproduzido pela equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco. Fonte: BISPO, Tainã (org.). Ninguém solta a mão de ninguém: manifesto afetivo de resistência e pelas liberdades. São Paulo: Claraboia, 2019.