A Reforma Pereira Passos e a formação da(s) Favella(s)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Durante a década de 1970 e 1980, muitas pesquisas foram realizadas principalmente nos departamentos de História Social da UFF e no departamento de Planejamento Urbano da UFRJ, visando contribuir na apresentação de uma narrativa historiográfica sobre o processo de construção da cidade e de gestão da pobreza urbana no Rio de Janeiro. Essas pesquisas foram amplamente realizadas a partir da análise de documentos disponibilizados no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, e em comum possuem uma perspectiva baseada na análise de Engels (2008) para pensar a produção do espaço e a relação entre as classes nesse meio. Através da teoria engeliana (2008), os autores da década de 1980 buscaram refazer a dramaturgia da pobreza urbana carioca durante a passagem da economia escravagista e agrária para a economia capitalista e industrial. Os autores desse período buscaram as relações que explicitavam os interesses do capital estrangeiro e imobiliário na especulação e intervenção na cidade e no modo de vida da população pobre na virada do século XIX para o século XX. A década de 1980 inaugurou, também, a perspectiva histórico-social sobre a história da transformação do espaço urbano carioca, lançando luz sobre os trabalhos realizados nas áreas da Geografia e Arquitetura do período, que frisavam em suas pesquisas a constituição do espaço físico em si. Através da utilização de fontes que possibilitaram a reconstrução das tramas sociais e dos agentes envolvidos na transformação do espaço urbano, é que os autores dessa década deixaram sua marca na historiografia sobre a cidade do Rio de Janeiro. Uma das marcas desta historiografia urbana, tema a ser explorado neste verbete, é a relação entre a Reforma Pereira Passos e a formação das favelas cariocas. Essa narrativa até hoje se consolida hegemonicamente na análise histórica da formação urbana do Rio de Janeiro. Nomes como Maurício Abreu, Sidney Chalhoub, Oswaldo Porto Rocha, Larry Benchimol e Lia Carvalho são considerados indispensáveis na compreensão da história urbana carioca. Através de seus trabalhos, a imagem do bota-abaixo se cristalizou e se confundiu com a história de formação das favelas do Rio de Janeiro. A partir da discussão sobre habitação, o surgimento da favela enquanto um problema apresentado por Abreu (1987), Benchimol (1982), Carvalho (1980) e Rocha (1983) foi o resultado de um processo da própria reforma urbana, apresentada como a contradição gerada por uma reforma que criou mecanismos, técnicas e regras que tornaram difíceis a habitação das populações pobres na cidade reformada. Os autores atribuíram, utilizando diferentes fontes para suas argumentações, o sentido da Reforma ao controle de circulação das mercadorias e do espaço urbanístico almejado, visando a articulação do Brasil à economia capitalista mundial. As favelas expressam, na visão desses autores, a contradição entre o avanço das obras da Reforma que determinaram o arrasamento dos quarteirões do centro, refúgio dos cortiços e moradias das classes pobres urbanas, para as obras de circulação de mercadorias na cidade (abertura de vias largas, obras no porto); e na sua dimensão urbanística através de leis, decretos e regimentos, que regulamentavam e ordenavam toda a construção civil no distrito federal, baixados durante o período. De maneira direta, essas questões dificultavam a permanência das habitações populares na nova cidade planejada e executada pelos reformadores. Nesse sentido, favela é interpretada como uma contradição à ordem da fúria demolidora, imposta por ela, contrapondo a tentativa de controle total sobre o espaço realizado pelo Estado e pelos setores privados de interesse capitalista. Ocupa um pequeno espaço da produção intelectual sobre a reforma urbana, mas é analisada como contraponto direto na solução para o problema habitacional das camadas mais pobres que necessitavam acessar os empregos ofertados no centro da cidade. Nesse sentido, a reforma urbana de Pereira Passos é apresentada pelos autores da década de 1980 pelas lentes das políticas habitacionais (e contra às habitações) colocadas em prática no período. A partir da abordagem dessa dimensão da reforma, os autores observaram as favelas surgindo enquanto uma contradição da ordem que a reforma objetivava legitimar na construção do espaço urbano.

Referências Bibliográficas:

ABREU, M. d. A. Evolução urbana no rio de janeiro. 1987.

BENCHIMOL, J. L. Pereira passos, um haussmann tropical: a renovação urbana da cidade do rio de janeiro no início do século xx. 1992

CHALHOUB, S. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. [S.l.]: Editora da UNICAMP, 1985.

ROCHA, O. P.; CARVALHO, L. de A. A era das demolições: cidade do Rio de Janeiro, 1870-1920. [S.l.]: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura . . . , 1995.