A Vila Nazaré e o asfaltamento de histórias

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

O verbete aborda a história da Vila Nazaré, localizada em Porto Alegre, que foi removida para dar espaço à expansão do Aeroporto Internacional Salgado Filho. As mais de 1,3 mil famílias que viviam na comunidade foram reassentadas em novos loteamentos distantes do local original, o que afetou negativamente as relações comunitárias. Além disso, o texto destaca o descaso com os catadores de materiais recicláveis da comunidade, que perderam seus locais de trabalho e enfrentam dificuldades para encontrar emprego nos novos loteamentos. A remoção da Vila Nazaré evidencia os impactos sociais de projetos de desenvolvimento que priorizam interesses privados em detrimento das comunidades locais.

Autoria: Giovana Lazzarin

BREVE HISTÓRICO[editar | editar código-fonte]

A Vila Nazaré situa-se no bairro São João, na Zona Norte de Porto Alegre, e o local esteve em posse da comunidade por mais de 50 anos. O espaço em que a vila se situa tem sido objeto de disputa entre as cerca de 1,3 mil famílias que residiam no local e a empresa alemã Fraport, cujo objetivo é removê-los para “dar espaço” à ampliação do Aeroporto Internacional Salgado Filho, sobretudo para expansão da área da pista de pouso e decolagem, visando o aumento do tráfego de aviões, principalmente de carga e descarga. Sendo assim, decidiu-se remover uma comunidade de mais de 1,3 mil famílias para asfaltar essas tantas histórias em prol do “desenvolvimento”. A retirada das famílias vinha sendo realizada desde junho de 2019, e reportagens apontam sua finalização em julho de 2021, no entanto, em 2022 ainda seguem ocorrendo intervenções no território. Quando o processo para a remoção iniciou os moradores tinham duas opções: através do reassentamento em um dos dois loteamentos disponibilizados, Irmãos Maristas e Senhor do Bom Fim, ou através de indenização, caso a família se recusasse a sair.

O DESTINO DA COMUNIDADE[editar | editar código-fonte]

A partir do momento em que foi decretada a necessidade da remoção da comunidade, iniciou-se uma mobilização por parte das famílias e de apoiadores. A comunidade era contrária ao reassentamento nos loteamentos oferecidos, tanto no loteamento Irmãos Maristas (Timbaúva), cuja construção iniciou em 2015, quanto no loteamento Senhor do Bom Fim. Ambos loteamentos situavam-se longe do local de origem da comunidade e iriam, consequentemente, abalar as relações comunitárias, sociais e econômicas já estabelecidas no território As unidades habitacionais construídas foram financiadas pelo programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), tanto o loteamento Irmãos Maristas, situado no bairro Rubem Berta - mais precisamente, na Vila Timbaúva - quanto o loteamento Senhor do Bom Fim, situado no bairro Sarandi. Cada loteamento possui, respectivamente, capacidade habitacional para 1.298 e 364 famílias, somando 1.662 unidades. O primeiro conjunto habitacional a ser lotado, e o menor por sinal, foi o Senhor do Bom Fim, visto que grande parte das famílias reassentadas da Vila Nazaré optou por esse loteamento devido à melhor localização e relativa proximidade com o antigo território. Neste sentido, as famílias que não conseguiam espaço nesse loteamento eram direcionadas ao conjunto habitacional situado mais longe, do centro da cidade e da antiga comunidade. Outra problemática pode ser apontada aqui: além da comunidade da Vila Nazaré, diversas outras comunidades estão sendo realocadas neste mesmo conjunto habitacional de maior capacidade, situado na Vila Timbaúva, o que ignora também a dinâmica social individual das comunidades e as coloca em meio a um choque perigoso, visto que a organização social das vilas é diferente e há medo por parte das comunidades ao entrar em um território que originariamente não é o seu, seja devido ao confronto entre facções e a insegurança, seja devido a falta de estrutura presente nos loteamentos. Neste sentido, segundo reportagem do jornal eletrônico Brasil de Fato (2021), a comunidade está sendo removida de uma periferia para outra periferia, o que é particularmente alarmante.

“RUIM PRA QUEM SAI, PIOR PRA QUEM FICA”[editar | editar código-fonte]

Uma reportagem da organização social Amigos da Terra discorre sobre o futuro incerto das famílias da Vila Nazaré e o fato de que nos novos conjuntos habitacionais falta estrutura, creche, transporte, praça, comércio e o principal: a antiga organização da comunidade, em que uma mãe solo poderia deixar seus filhos com a vizinha ou com a tia, poderia levar os filhos a pé para a escola ou mesmo pegar um ônibus com tranquilidade. Nos novos loteamentos essas relações são rompidas ou abaladas, inclusive muitas famílias tiveram que se separar devido ao processo de cadastramento no programa Minha Casa Minha Vida. O processo de mudança é doloroso para muitos moradores, principalmente pelo fato de que eles devem acompanhar a demolição de suas casas para que possam acessar a nova moradia, visto que o slogan interno do processo é “casa no chão, chave na mão”. Já para o quase fim do processo de remoção, ao andar pelas ruas da Vila Nazaré percebe-se o abandono proposital da comunidade, onde já não há saneamento, água ou luz, onde há lixo espalhado pelos cantos, poças d’água e, no geral, uma condição insalubre de vida para que os moradores aceitem se mudar logo. Quanto mais moradores deixam a comunidade, maior a dificuldade de permanência no local dos que ficam, e devido ao fato de ter que demolir as antigas casas, o que resta são escombros para todos os lados. Segundo a Amigos da Terra (2019): O abandono do poder público é tamanho que faz da vida no local quase insuportável: e eventualmente as pessoas cedem, cansadas de ver o esgoto invadindo seus terrenos, aceitando sair de suas casas mesmo que para longe e para apartamentos menores. “Pelo menos lá tem calçada, tem saneamento”, muitos pensam, sem perceber a tática usada por poderes públicos e privados para criar, nas moradoras e nos moradores, o desejo pela saída. Muitas famílias tinham boas moradias na Vila Nazaré, casas grandes, com pátio, plantas e variados animais e acabam tendo que espremer-se em apartamentos de 2 quartos, sala, cozinha e banheiro. Muitas vezes famílias numerosas de 6,7 pessoas, sobretudo crianças, tendo que apequenar-se nos quadrados de concreto ofertados pelas instituições. Isto é, de fato, o asfaltamento das histórias dessas famílias, em que o dito progresso (o aeroporto, neste caso) avança sobre as relações sociais e as fragiliza.

O DESCASO COM OS CATADORES E AS CATADORAS DE MATERIAIS RECICLÁVEIS[editar | editar código-fonte]

Outra denúncia importante a ser feita diz respeito ao descaso que os catadores e catadoras sofrem diante do processo de “reassentamento”. Muitos são os trabalhadores deste ramo e que dependem de espaço para realizar o processo de triagem em suas casas, o que os apartamentos de 2 quartos, sala, cozinha e banheiro disponibilizados para o reassentamento não comportam. Sendo assim, apesar de terem sido identificadas 9 edificações com uso exclusivo para reciclagem na Vila Nazaré, os galpões de reciclagem não são considerados enquanto “comércio” para o Departamento Municipal de Habitação de Porto Alegre (DEMHAB), o que confere na indeferição na regularização para conseguir uma das (poucas) unidades comerciais disponíveis. Neste sentido, ao se mudarem, as trabalhadoras e trabalhadores acabam ficando sem expectativa de trabalho, há relato de uma moradora realizando trajetos de cerca de 8 km a pé até a antiga comunidade para poder trabalhar lá. Diversos são os relatos de preocupação em torno da falta de galpões de reciclagem para viabilizar o trabalho dos moradores dentro da própria comunidade, no entanto, ao invés da construção de galpões nos loteamentos, está previsto no Projeto de Trabalho Social elaborado pelo DEMHAB a realização de oficinas sobre separação de resíduos (para ensinar quem mais sabe?). O projeto prevê também a reinserção dos catadores, triadores e/ou recicladores em atividades produtivas, no entanto, um dos desafios é o fato de que as cooperativas do entorno não estão aceitando novos catadores/recicladores pois o insumo que chega para eles hoje em dia é muito menor do que já chegou um dia, antigamente chegava em torno de 15 caminhões com resíduo para triagem e reciclagem e hoje em dia chega 1 e meio. Por fim, acredito ter sido possível mostrar os inúmeros conflitos que cercam essa remoção e reassentamento, e a negligência sofrida pelas catadoras e catadores de materiais recicláveis é “só mais um”. Deste modo, percebe-se que o processo de reassentamento e pós-reassentamento da Vila Nazaré é fruto de um projeto mal planejado que sofreu muita pressão das instituições privadas para que saísse do papel, para que pudessem usufruir do pedaço de chão ocupado pelas mais de 1,3 mil famílias há cerca de cinco décadas.