Peleja do slam contra as “inovações pedagógicas” (artigo)
Criativos, autônomos e plurais, torneios poéticos entre jovens espalham-se. Neles, a disputa é secundária à criação de sensos comuns. Ajudam a sacudir um ensino desatualizado e sem afetos. Mas há quem prefira as “startups” e fundações privadas.
Autoria: Ana Carolina Nahorny e Katya Braghini
Artigo originalmente publicado no portal Outras Palavras[1] em 1 de novembro de 2022.
O artigo[editar | editar código-fonte]
O Slam Interescolar é um movimento, na verdade, um campeonato nascido da relação entre uma manifestação cultural das ruas e passa a se integrar à comunidade escolar. A sua energia vibrante é modelada pelos anseios dos jovens que vivem nas cidades, seus desejos e vontades; medos e descontentamentos. Há política no ato, na escrita das narrativas, na ação dos artistas-alunos e uma força nas suas performances. Serve para orientar dialogicamente a ação do professor, acionar aprendizagem, dar sentido de comunidade e identidade, construir coesão social. Traz união, alegria e compartilhamentos diversos, fraternais, por meio de uma competição artística e poética.
O Poetry Slam ou Slam de poesia é uma batalha de spoken word ou poesia falada, que surgiu nos anos de 1980, em um bar da classe trabalhadora branca em Chicago, Estados Unidos da América (EUA) pela mão do poeta Mark Kelly Smith. Tal atividade vem ocupando e expandindo seus manifestos mundialmente, inclusive no Brasil, desde 2008, com seu primeiro coletivo ZAP! Slam – Zona Autônoma da Palavra.
Em 2015, com o coletivo Slam da Guilhermina, surgiu o campeonato interescolar de poesia falada (Slam Interescolar) do estado de São Paulo por meio do ativismo político do poeta e escritor, Emerson Alcalde. O primeiro Slam Interescolar de São Paulo ocorreu em 2015, no Teatro Flávio Império, localizado no bairro Cangaíba, contando com a colaboração da prefeitura de São Paulo, ProacSP, Slam da Guilhermina e o governo do Estado. Quatro escolas participaram, sendo três destas públicas.
Em 2016, no segundo campeonato de poesias, o coletivo organizador criou um formulário via Google para que os interessados pudessem se inscrever. O campeonato teve maior abrangência com 28 escolas inscritas e 20 oficialmente participantes. A partir de então, os canais das mídias sociais e digitais têm sido um veículo importante de registro e divulgação. Aliás, grande parte do ativismo passa a ter coligação com as redes sociais, já que a performance dos jovens é de natureza aberta.
Por consequência, o campeonato foi crescendo e alcançando cada vez um maior número de escolas. No ano seguinte, em 2017, 38 inscritas e 33 oficialmente participantes. Em 2018, o número de escolas aumentou em 50% e em 2019 já eram centenas de escolas. Progressivamente, o número de inscritos e participantes tem crescido.
O ano de 2019 foi importante para o Slam Interescolar, pois o Coletivo Guilhermina foi aprovado no edital público de Fomento à Cultura da Periferia do Município de São Paulo e possibilitou o aporte financeiro para que os campeonatos acontecessem.
O livro que retrata os primeiros anos de trabalho do Slam Poetry dentro das escolas, intitulado “Das Ruas para as escolas, Das escolas para as Ruas: Slam Interescolar-SP” (2021), recebeu o Prêmio Jabuti de literatura na categoria “inovação”. Mas por que o Slam Interescolar não ganha destaque como “inovação pedagógica”? Por que nos debates públicos de financiamento à educação não destacamos um movimento cultural que se firmou na relação da comunidade com a escolas públicas, com financiamento público?
É importante questionar criticamente o que os discursos educacionais, principalmente na cidade e no estado de São Paulo, por meio de sua associação com o campo privado, entendem por “inovação educacional”. Em Outras Palavras, outros textos foram ao encontro deste questionamento de diferentes maneiras. Um deles, “Na escola, inovação muito além da técnica”, há um questionamento, no plano histórico, sobre a relação entre a educação pública e os interesses de mercado que, no plano da sociedade civil, vigoram desde o século XIX. No entanto, no mesmo plano histórico, os interesses de mercado em relação à educação, principalmente pública, alteraram-se de maneira tal que as escolas passaram de plataforma de consumo para serem vistas como tecnologia social de estruturação da subjetividade neoliberal. Podemos vê-las como espaço para consumo irrestrito, mas também como ambiente que remata o esfacelamento das relações capital-trabalho pela perspectiva do “bem-estar social”. O que já não parece tão bom, pode piorar.
Questionavam-se os motivos de empresas, indústrias de materiais tecnológicos, institutos e fundações com mentalidades corporativas passarem à dinâmica social como sendo os novos reformadores da educação. Por que eles possuem o poder de transferir para si esse reconhecimento social? E como passaram a ser os ditadores de significados do que deve ser uma “inovação educacional”?
Pensar sobre as ditas “inovações” é questionar os processos culturais e sobre quais condições elas ocorrem. Isso pode significar que há uma infindável possibilidade de conceituá-la, principalmente levando em conta as invenções criativas em ambientes situados, comuns, locais. Pensar as inovações é também pensar nas combinações sociais, sejam elas alternadas ou ajustadas, difusas ou objetivadas, que assinalam à prática de criação de algo, alterar algo, achar a solução para um problema ou, simplesmente, para ser reconhecida como tal. Isto é, todo processo inovador, portanto, é um movimento social, o que aponta para o seu caráter histórico, variado e multifacetado. Em outras palavras, a novidade não é uma coisa, mas sim os processos sociais que a instituem e que têm o poder, ou criatividade, de evidenciá-la como tal.
Parte-se da ideia de que a educação, como forma de relacionamento de saberes de uma geração com outra, é uma área privilegiada à compreensão da produção, uso e abandono de inovações, sejam elas de caráter reformador, sistêmico, pedagógico, técnico, tecnológico, intelectual. De maneira específica, o ambiente escolarizado é um excelente espaço para o teste de hipóteses sobre as inovações produzidas para a escola, ou apropriadas de maneira inovadora por esse espaço, ou produzidas por ela mesma, no “chão da escola” como diz o jargão. Elas podem ser objetivas ou imaginárias, acionadas por movimentos intelectuais, institucionais, técnicos, profissionais, produtivos, sociais e juvenis, etc..
Como se pode ver, não se trata de assumir uma posição reacionária, contrária às novas tecnologias da informação, tidas como quase sinônimas do que se pode pensar por inovação no mundo atual. O que está sendo questionado são os motivos de apagamentos de outras ações educativas que muito facilmente podem ser tidas por “novas” e acabam desconsideradas e enfraquecidas diante de discursos que possuem capital econômico e simbólico suficiente para celebrar as suas próprias invenções e dos múltiplos cartéis econômicos que se formam em torno delas. Isto é, investimento suficiente para dizer que “um prego martelado na madeira” é tecnologia inovadora e determinada opinião pública simplesmente deve aceitá-la.
Talvez esta análise nem seja pela disputa do que é “inovação educacional”, já que todos os dias os professores com seus alunos inovam em suas classes. A questão principal é: por que certas atividades, que surgem do seio das relações entre as pessoas em seus territórios, com seus grupos de socialização e formação, as escolas com suas comunidades, não se destacam como “inovação pedagógica”?
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A terminologia “Slam” tem origem nos torneios de beisebol e bridge, tendo sido cunhada para denominar as performances poéticas nas competições de poesia. Por isso, pode ser definido como “jogo” ou até como “esporte de poesia falada”.
As competições do slams acontecem a partir de uma organização coletiva, sem hierarquias, existindo também a presença de um “Slammaster”, cujo nome é utilizado para se referir ao mestre do evento, e que será o responsável geral pela organização do início, meio e fim, desde sua abertura até seu fechamento de maneira bem definida. Contudo, essa competição não é realizada de uma forma rígida, pois o público pode participar e há diferentes combinações para cada evento.
O funcionamento do slam de poesiaé pensado com baseem três regras básicas: os poemas devem ser de autoria própria, devem ter no máximo 3 minutos e não devem ser entremeados com qualquer tipo de ornamento, enfeite, figurino ou acompanhamento musical, pois o que importa é a performance, ou seja, a maneira como o poeta trabalha sua palavra-poesia e a manifesta corporalmente através da sua voz.
O que é levado em consideração é a forma como o poeta consegue transmitir e emocionar com suas palavras, por meio de sua história e reivindicação. O ato de denúncia e reivindicação é muito próprio das poesias performadas porque carregam consigo as características de autorrepresentação. As posições políticas dos poetas, suas visões de mundo estão estruturalmente presentes nas performances, pois são questões indissociáveis de suas expressões artísticas e, ainda mais, são representação concreta de seu ser-no-mundo por meio de um recorte poético. Podem conter suas histórias pessoais, suas dores e seus desejos para a sociedade em que vive. Isto é, um outro mundo pode ser criado com a poesia. Podemos imaginá-lo coletivamente?
Os eventos devem ser realizados com o auxílio de cinco jurados escolhidos aleatoriamente dentro do público presente no momento. Isso é importante para que o aspecto democrático e de “afetamento” com a poesia seja em maior grau, pois o que importa é a emoção comunicada na hora.
No que se refere à estrutura e às características comunitárias do slam de poesia, essa forma de expressão poética juvenil, popular e urbana apresenta-se como um espaço de interação, diálogo e argumentação, além de um compartilhamento de histórias e sentidos. Como se pode ver, a atividade fomenta a criatividade, o compartilhamento de ideias, visa ao manifesto de seus discursos de forma pacífica e cooperativa, relaciona a ação popular urbana com ao espaço de formação escolar. Estimula a poesia, a retórica e o ato de se pronunciar publicamente. Não permite discriminação sexual, religiosa, de gênero. É simples, no sentido de que não exige uma parafernália sofisticada para acontecer. Ainda que dependente dos contatos e do uso das redes sociais e todas as mídias possíveis de domínio juvenil, trata-se de um planejamento comum, feito por inteligência coletiva, que se organiza na forma de inventividade grupal.
A partir de 2014, os campeonatos passaram a ocupar um lugar no ambiente formal de educação, por intermédio de iniciativas dos slammers. O Slam Interescolar se efetivou em diversas escolas, que participam levando diferentes jovens a escreverem seu texto e a colocarem seus corpos em cena em suas performances poéticas. Segundo os organizadores do Coletivo Slam da Guilhermina, a vertente escolar surgiu pela observação de seus responsáveis, Emerson Alcalde e Cristina Assunção, ao assistirem a um slam em Paris, organizado pelas escolas parisienses. Nele participavam crianças e jovens da educação básica, com o objetivo de “[…]incentivar jovens estudantes do ensino fundamental e médio a escreverem poesias autorais para apresentá-las performaticamente em um evento de Slam na escola”.
No início, por falta de recurso, os campeonatos eram realizados pelas escolas, com algumas intervenções dos organizadores e de slammers voluntários. Com o tempo, o Coletivo Guilhermina passou a ministrar oficinas de escrita poética nas escolas e a auxiliar diretamente na realização do campeonato escolar. Dessa forma, surgiram os “Poetas-Formadores”, uma equipe de nove poetas que realizaram formações nas escolas. Essa equipe é formada por jovens, conhecidos nas redes sociais por suas performances-poéticas de outros slams (que ocorrem fora das escolas) e, com isso, os alunos e professores das escolas se identificavam cada vez mais com a proposta.
O Slam Interescolar, por fomentar o relacionamento do ensino público com os movimentos sociais, pode-se configurar como uma inovação social e pedagógica. Dirão os céticos: e não há defeito nisso? Respondemos: em qual espaço coletivo não há problemas, contradições, discussões, desentendimentos, imperfeições? A questão é que desse tipo de “precariedade”, que para alguns se chama democracia, pode nascer poesia e fruir novas estéticas que não sejam àquelas ligadas ao empreendedorismo privado com todo esse léxico de marketing, influencers, startups e outros.
Se estamos falando que os grupos podem inventar os seus territórios, a relação escola e rua, comunidade e escola, escola e bairro, neste caso, parecem materializar valores que constroem esse sentido comum. Ao que parece, o fato de o slam apresentar um conteúdo poético, confronta-se com os contextos violentos presentes nas escolas, como o bullying, por exemplo. Dessa forma, ele refaz o espaço escolar com arte feita em grupo, cria uma materialidade escolar, tanto tangível, quanto sensível, amplia comunicação sustentável com o entorno, o que pode ser um canal de minimização de violências de vários tipos.
Isso, descontado o fato de que os professores das escolas inscritas neste ano se comunicam pelo WhatsApp para montar a arquitetura do evento. Conseguem se ver diretamente com os responsáveis pelas competições de slam poetry. Professores sabem que cada aula pode ser um mundo e que invenções, improvisações se compõem pela organização do caos. Podemos dizer que se apresentam como inovadores frugais, se é para falar na forma de conceitos. E recordemos aos esquecidos que um professor só existe na sua relação com um aluno. Nasceram juntos e se coproduzem. A palavra é “professor(a)”; não é “tutor” e outros termos… Não bastando abalar a profissão docente, diminuir-lhes o salário, suas aposentadorias, não reconhecer seus conhecimentos, agora lhes tiram a denominação.
Sim, as tais “inovações” podem ser pensadas como processos sociais orgânicos, como agrupamentos políticos que se unem voluntariamente para criar um plano, uma estratégia, um invento. Sim, elas aparecem na forma de inventos maravilhosos, com displays sensíveis ao toque, cujos parafusos são apertados por gente miserável em alguns lugares do mundo. Entretanto há inovações que são apresentadas como criações espontâneas geradas no seio da experiência, sem autores claramente identificados.
Ações que associam a escola aos movimentos sociais como Slam Interescolar nem precisam pleitear a alcunha. Contudo, se é para disputar o tipo de currículo público no ensino das escolas, talvez seja esta a melhor inovação que nos oriente, um território criado na relação da escola com a sua comunidade, para ir crescer e inventar. Deixemos de dar prioridade a este discurso bilionário, de fundações privadas, que pagam pela celebração de si mesmas, para notabilizar a sua forma inovadora de ver a escola.
E se estamos fazendo política democrática, sejamos inteligentes, porque esses grupos capturam o que é realmente novo e transformam em mercadoria.
Referências[editar | editar código-fonte]
- ↑ A peleja do slam contra as “inovações pedagógicas” - Outras Palavras