Adeus Aglomerados Subnormais - Parte 2 - O Direito à Moradia e o Estigma das Favelas na Nomenclatura Oficial

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Da esquerda para a direita, Sônia Fleury, do Dicionário de Favelas Marielle Franco e da Fiocruz; Laís Borges, do Museu das Favelas; Ju do Coroadinho, diretora da rede PerifaConnection; Letícia Giannella, pesquisadora do IBGE e mediadora da mesa; e, de forma remota, Jailson de Souza e Silva. Foto: IBGE
Da esquerda para a direita, Sônia Fleury, do Dicionário de Favelas Marielle Franco e da Fiocruz; Laís Borges, do Museu das Favelas; Ju do Coroadinho, diretora da rede PerifaConnection; Letícia Giannella, pesquisadora do IBGE e mediadora da mesa; e, de forma remota, Jailson de Souza e Silva. Foto: IBGE

Esta é a segunda matéria, de uma série de três, sobre um seminário inédito do IBGE que discutiu a mudança do termo “aglomerado subnormal” a partir da perspectiva de favelas e assentamentos populares.

Autoria: Julio Santos Filho, via RioOnWatch[1]

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Objetivo[editar | editar código-fonte]

Direito à Cidade, Posse e Propriedade nas Favelas e Comunidades Urbanas Brasileiras

O objetivo central no início do segundo dia foi fomentar a construção de uma outra abordagem envolvendo a questão fundiária, uma que carregue como ponto de partida a condição de (in)segurança da posse e que reconheça o instituto da posse como necessário para a garantia do direito à cidade. A discussão passou pelos desafios e possibilidades conceituais, metodológicas e operacionais para a concretização da permanência dos moradores em seus territórios.

Betânia Alfonsin, da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul e do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU), argumenta que é preciso evidenciar a colonialidade que impregna o termo “aglomerado subnormal”. Segundo ela, é preciso assegurar e reconhecer a posse como método legítimo de acesso à moradia.

“O Brasil sempre teve duas formas de acesso à terra desde a colônia: o regime fundiário da posse e o regime fundiário da propriedade. Em 1850, a Lei de Terras determina quem é dono da terra no Brasil… Ao lado da propriedade privada, persistimos com um sistema de acesso à terra pela posse… Dessa forma, o direito brasileiro legitimou a hierarquização do espaço no país. A propriedade foi associada ao legal, formal, regular, normal. E a posse foi associada ao ilegal, informal, irregular, subnormal… A colonialidade do nosso olhar jurídico inferioriza assentamentos autoproduzidos… legitima[ndo] o racismo, o ódio aos pobres, limitando o exercício da cidadania desses sujeitos… É preciso valorizar o acesso à terra pela posse, uma forma de dar função social à terra, e valorizar a autoconstrução, a autogestão… a construção social do habitat.” — Betânia Alfonsin

Carina Guedes, fundadora da Arquitetura na Periferia e do Instituto de Assessoria a Mulheres e Inovação (IAMÍ), comunica a necessidade de valorizar esses espaços que são “territórios de potência, que constroem a cidade a partir de uma outra ótica”.

Foi consenso que a diversidade de percepções vem de inúmeros tipos distintos de ocupação do solo e tem que estar refletida na nova nomenclatura. Como afirma José Fernando Nunes Debli, da Defensoria Pública de Pernambuco e do Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (CONDEGE): “a linguagem tem um poder muito grande sobre quem aplica a lei… É preciso uma linguagem que reconheça a legitimidade da posse na ocupação dos espaços”.

Rafael Soares Gonçalves, professor da PUC-Rio e autor de vários livros sobre favelas, traça um rápido histórico de como as abordagens sobre a definição do que é favela mudou ao longo do tempo.

“Nos anos 1950, o censo demográfico traz a denominação ‘favela’, reforçando que são áreas de ocupação irregular em terras alheias, dando ênfase à dimensão jurídica. Nos anos 1980, o censo já traz o termo ‘aglomerados urbanos’ e, depois, ‘aglomerados subnormais’. A partir dos anos 1990, a titularidade do solo entra como questão central, e favelas passam a ser espaços que não têm título do solo… No entanto, em muitas favelas, há o título e em muitos espaços fora da favela, não há título… o Censo de 2000 insere outras denominações como os ‘loteamentos clandestinos’, trazendo novas complexidades… na década de 2010, o censo traz um aspecto temporal… [acrescentando à definição de favelas] territórios que tenham obtido a propriedade há menos de dez anos.” — Rafael Soares Gonçalves

Em sua apresentação, diz ser evidente para ele que tais perspectivas não deram conta de explicar esses fenômenos urbanos, em toda sua diversidade, de forma satisfatória. Por isso, mais do que conclusões, ele oferece pontos de reflexão sobre o tema.

“Para falar de favelas hoje, quero trazer a ideia de ‘espaços de fronteira’… Primeiro, precisamos inverter o olhar, temos a tendência em dizer: a favela se regularizou, então não é mais favela. Mas muitas favelas foram produzidas pelo Estado e muitas estão registradas e regularizadas, mas a dinâmica de favelas permanece existindo… Quando a favela vira cidade e quando a cidade vira favela? Segundo, como lidamos com a homogeneização desses espaços? Não é possível tratá-los de forma igual.” — Rafael Soares Gonçalves

Representações, Classificações e Narrativas sobre as Favelas e Comunidades Urbanas Brasileiras e o Papel do IBGE[editar | editar código-fonte]

Com o objetivo de debater quais são e de onde provêm as narrativas estigmatizantes, as causas e consequências das representações e classificações produzidas pelo IBGE, Letícia Giannella, pesquisadora do instituto, mediou uma roda sobre o tema. Além disso, outro propósito foi determinar o papel do IBGE na superação dessas narrativas, enfrentando o desafio de retratar a realidade brasileira, sem considerar esses territórios simplesmente por meio do que ali falta.

“Pensando no objetivo maior de nosso evento, de repensar o conceito de aglomerado subnormal e superá-lo, me vem certas perguntas à cabeça: de onde vem a ideia de carência e falta como marcadores destes territórios? De onde vem os estigmas sobre as pessoas e territórios favelados, entendido como o Outro dentro da cidade?” — Letícia Giannella

Sônia Fleury, coordenadora do Dicionário de Favelas Marielle Franco e pesquisadora do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, começou lembrando que não é à toa o plural em “favelas” no nome do dicionário que dirige. Justamente pela diversidade inata, não há uma definição precisa do que é favela no Dicionário de Favelas Marielle Franco. No entanto, Sônia faz um esforço para traçar linhas gerais do que seriam as favelas.

“Suas maiores características são ser complexa, multifacetada e estar em um processo dinâmico, em contínuo movimento, tanto material quanto simbólico… [ela] tanto se verticaliza, a nível material, quanto se ressignifica, a nível simbólico… É um modo de criação e expansão da cidade a partir de dinâmicas próprias da população em auto-organização, por conta da ausência de políticas públicas eficientes… Favela é uma forma de luta pelo direito à cidade e não pode ser entendida como uma contraposição à cidade formal… favela é expansão da cidade… Há um princípio que permeia todas as favelas que conheci: um enorme sentimento de pertencimento ao território, a partir de culturas, linguagens e dinâmicas locais próprias… É uma forma de integração fragmentada e hierarquizada, onde a população é colocada em uma situação clientelista com o poder público.” — Sônia Fleury

Segundo Sônia, “este é um momento histórico de disputa conceitual sobre o que significa ser favelado”. Para a pesquisadora, é necessário um movimento de reconstrução da imagem da favela e do que é ser favelado com base nesses princípios múltiplos. Em seguida, Laís Borges, pesquisadora do Museu das Favelas, em São Paulo, retoma a ideia de que o higienismo social perpassa toda a categorização social no Brasil, sobretudo, em territórios predominantemente negros.

“Classificação, representação e narrativa é poder. É um repertório que cria imaginários, que embasa ações práticas. Quem criou ‘aglomerado subnormal’? Eram pessoas pretas? Eram pessoas faveladas? Qual a relação do Estado com a favela ao longo da história brasileira?… É um termo que exemplifica e reproduz o que é a colonialidade do saber. A perpetuação da dominação colonial de forma cultural e política. É a lógica ‘civilização versus barbárie’, ‘cidade versus favela’.” — Laís Borges

Ju do Coroadinho, diretora da rede PerifaConnection e moradora da quarta maior favela do Brasil, em São Luís do Maranhão, começa dando um salve às únicas quatro pessoas pretas presentes na plateia durante a discussão. Ela expõe seu incômodo em, mesmo em um espaço como este seminário, ainda ver uma maioria branca e sudestina.

“Fico sinceramente muito incomodada com a quantidade de pessoas brancas falando sobre favelas, falando sobre a gente. Nunca viveram lá, não têm a vivência que temos… Me incomoda muito também como nas discussões sobre favelas, quase sempre falamos do Rio e de São Paulo.” — Ju do Coroadinho

Ela também desafia o senso comum de que favelas são ilegais e de que moradores são invasores. “Ocupação irregular me incomoda muito também, pois sou a quinta geração morando no Coroadinho. Como sou irregular se minha trisavó que eu nem conheci já morava aqui?” Para ela, essas discussões estão tão atrasadas porque ainda não se humanizou o morador de favela. É preciso que haja pesquisa popular, feita por pessoas negras, de favelas e periferias se quisermos “entender a favela para além da visão branca e sudestina”. Jailson de Souza e Silva, co-fundador do CEASM e do Observatório de Favelas, no Complexo da Maré, professor aposentado da UFF, e hoje servidor do BNDES, começou se afirmando enquanto cria de favela, nascido na Mangueirinha, em Brás de Pina, Zona Norte do Rio de Janeiro. Segundo ele, dois conceitos essenciais para pensarmos sobre a transformação do conceito aglomerados subnormais são o Paradigma da Ausência e o Paradigma da Potência. Para ele, os traços mais característicos das favelas são a coletividade e a potência.

“A convivência coletiva nas favelas é um elemento tão importante quanto as questões materiais… é por isso que a favela reinventa a cidade, pois retoma o conceito de polis sobre o de urbes. Traz o autocuidado, a auto-organização, a convivência coletiva no espaço público.” — Jailson de Souza e Silva

Encerrando a roda de conversa, Jailson reforça a tese de Ju do Coroadinho de que é preciso ter representatividade nas pesquisas para descolonizá-las.

“Temos que trabalhar a partir da epistemologia periférica, a partir de atores periféricos, local e globalmente… Precisamos reconhecer a sabedoria ancestral não-branca na formação brasileira e na potencialidade de caminhos futuros… o IBGE tem que entender isso e contratar de fato funcionários pretos e periféricos, pois essa necessária transformação epistemológica não vai ocorrer na teoria… Tem que ser na prática, inscrita no corpo. Precisamos de sujeitos e corpos pretos periféricos ocupando esses espaços de pesquisa e de construção de políticas públicas.” — Jailson de Souza e Silva

Sobre o autor[editar | editar código-fonte]

Sobre o autor: Julio Santos Filho é bacharel em Relações Internacionais (UFF) e mestre em Sociologia (IESP-UERJ). Homem negro da Ilha do Governador, trabalha desde 2020 como editor no RioOnWatch. Em 2021, foi editor do Enraizando o Antirracismo nas Favelas, projeto medalha de prata no The Anthem Awards.

Ver também[editar | editar código-fonte]

Favelas, pandemias e cidadanias (lives)

Vidas negras e faveladas importam (debate)

Juventudes em favelas (debate)