Arte, Cultura e Saúde Mental - cidadania, emancipação e criatividade (Manguinhos)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

O presente texto faz parte da Cartilha Estratégias Culturais em Manguinhos, de autoria da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Fundação Getúlio Vargas (FGV) e Queen Mary University of London (QMUL). Para ler o relatório na íntegra, clique aqui. A relação entre arte, cultura e saúde mental em Manguinhos transcende terapia e entretenimento, abordando a formação de sujeitos, desenvolvimento humano e transformação social. A arte não apenas promove o bem-estar, mas também ressignifica a vida e cria novos significados, fortalecendo laços coletivos e construindo novas formas de pertencimento e expressão.

Autoria: Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Foto: Mulheres ao vento
Foto: Mulheres ao vento

Sobre[editar | editar código-fonte]

Olhar para as culturas, as artes e a saúde mental a partir de um catálogo de iniciativas que, a seu modo, constroem e refletem as relações humanas do bairro de Manguinhos é se atentar para uma questão fundamental: arte e cultura não se restringem à função terapêutica ou ao entretenimento.

Sem negar os valores terapêuticos ou de entretenimento, vislumbramos um outro modo de pensar e trabalhar arte e cultura, que transcende a uma ou outra finalidade que lhes possa ser atribuída. E não se trata, apenas, da formação artística, mas da dimensão de formação dos sujeitos, de desenvolvimento humano que se reorganiza com suas contradições. Nesse sentido, se trata também de pensamento crítico, tomada de consciência e transformação social. Assim, o trabalho com arte-cultura e apoio social possibilita o fortalecimento de laços coletivos. A partir daí é necessário refletir de que forma os próprios projetos e iniciativas culturais se reconhecem e enxergam sua atuação.

Portanto, pensamos o conceito de arte-cultura como uma lente que expressa diferentes sentidos e concepções em sociedade, entrelaçando sentimentos de identificação que são capazes de criar uma liga social que conecta indivíduos dentro de um mesmo território. Dessa forma, nosso olhar pousou sobre Manguinhos com a ideia de que “arte é arte”, porém ao vermos as 40 iniciativas presentes neste catálogo, observamos que arte é arte, mas também é a possibilidade de reinventar a vida onde se vive; é possibilidade de trabalho, de sobrevivência, de se organizar e resistir. Nesse sentido, possibilita romper o silenciamento imposto a lugares e populações historicamente vulnerabilizadas e invisibilizadas. Faz emergir, através do fazer e vivenciar a arte, das expressões de tradições ancestrais e afins, novas formas de pertencimento, de se entender e entender o outro. A arte muda a relação com o mundo, constrói novos significados, produz sentidos e formas de viver coletivas.

É nesse cenário que precisamos refletir sobre o que se entende como saúde mental, para então considerá-la em sua relação com a arte. A expressão saúde mental remete à ideia de normalidade, de sanidade, de estado de adequação a um suposto estado de bem-estar ideal. A advertência da OMS de que saúde mental não é a simples ausência de doença, mas a existência de um estado de bem-estar biopsicossocial, termina por remeter à noção idealizada que se opõe ao adoecimento ou sofrimento. Tendo isto em vista, a arte se mostra como alternativa para uma saúde mental que não está no ideal, mas em experiências concretas vividas por sujeitos reais. A arte pode produzir novos sentidos e formas de ver e viver a vida, que implicam, inclusive, em sofrimento, em experiência de crises, incompletudes e faltas. Essas vivências produzem sentimentos que podem ressignificar a vida e possibilitar novas formas de experiência. Essa é uma das atribuições da arte.

Nesse sentido, queremos fugir do entendimento da saúde mental a partir de uma perspectiva higienista, com foco no “bem-estar” individual ou na saúde mental como “felicidade”, que, por isso, pode ser reduzida à mercadoria de consumo. De tal modo, se aprofundar nas relações entre saúde mental, arte e cultura exige atenção às articulações com a cidadania, à ampliação das possibilidades e reinvenção da vida e à criação de novos sentidos e significados. E, portanto, não se trata de uma visão imediatamente presa à prevenção e vigilância de transtornos mentais. Tampouco consiste em promover um entendimento instrumental do tema, o certo e o errado, cobrindo déficits de informação ou interpretação de um conjunto de pessoas, pois não se trata da arte empregada em campanhas de comunicação pública. Mais que isso, o que orienta nosso entendimento do tema, é que partimos das noções de determinação social da saúde mental, conceito ampliado de saúde e cultura como produção de subjetividades e usina de símbolos e linguagens, como criação de espaços coletivos e de reivindicação/reconhecimento de sujeitos com direitos.

Tendo em vista as questões e conceitos apontados, entendemos que a reunião das experiências socioculturais comunitárias nesta publicação, e seu posterior compartilhamento em espaços de intercâmbio de saberes e práticas, possibilita articulação entre as lideranças comunitárias e movimentos sociais na construção de propostas de políticas públicas na interface cultura e saúde mental. É um importante fomento à valorização destas iniciativas e também à reprodução de experiências semelhantes em outros espaços.

Por fim, refletir sobre o impacto das expressões culturais como ferramenta de cuidado e promoção da saúde mental em comunidades como Manguinhos contribui para a construção de uma noção de cuidado em saúde mental que envolve processos sociais complexos. É sobre a arte, as pessoas que a produzem e o mundo que as cerca. Posto isso, não há como dar luz às relações entre saúde mental, arte e cultura sem a valorização dos recursos comunitários.