Chacina da Baixada Fluminense, 31 de março de 2005

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Em 31 de março de 2005, 30 pessoas foram baleadas em diversos pontos da Baixada Fluminense. Apenas uma sobreviveu. Escolhidas de modo aleatório, elas foram executadas de surpresa, sem chance de defesa. Os tiros foram certeiros. Dos corpos das vítimas foram retiradas balas de pistolas de uso exclusivo das polícias Civil e Militar. Segundo avaliação do então chefe de Polícia Civil, os criminosos tiveram o cuidado de recolher as cápsulas e os estojos das balas para não deixar pistas. 

Autoria: Barbara Musumeci, Tatiana Mouta e Carla Afonso.[1]

A chacina[editar | editar código-fonte]

Chacina da Baixada é uma das maiores atrocidades brasileiras em termos de violência policial: 29 pessoas, entre homens, mulheres, jovens e adultos brutalmente assassinados por agentes públicos - Reprodução

A chacina, conhecida como Chacina da Baixada, envolveu os bairros de Moquetá, Posse, Cerâmica e Rua da Gama (em Nova Iguaçu), e os bairros Fanchen, Centro, Morro do Cruzeiro e Praça da Bíblia (em Queimados).

Os crimes foram cometidos com o objetivo de demonstrar a força de um grupo de policiais em Nova Iguaçu e Queimados. Tudo leva a crer que a ação representou uma retaliação à prisão de nove policiais militares do 15° Batalhão da Polícia Militar (Duque de Caxias), insatisfeitos com o novo comandante do Batalhão, que vinha combatendo desvios de conduta e práticas de corrupção.

Após investigações realizadas pela Polícia Civil e pela Polícia Federal, o Ministério Público denunciou 11 policiais. O Estado do Rio de Janeiro reconheceu o envolvimento de seus policiais
na chacina e atribuiu uma pensão aos familiares. No entanto, apenas cinco foram pronunciados e, até meados de 2008, somente três haviam sido julgados. 

Em agosto de 2006 o Tribunal do Júri de Nova Iguaçu condenou um dos acusados a 543 anos de prisão. O julgamento, que durou três dias, foi acompanhado por autoridades, imprensa, organismos de direitos humanos e familiares das vítimas. No dia 10 de dezembro de 2007, outro acusado foi a julgamento. Dessa vez, só os familiares das vítimas estavam presentes. Durante o depoimento, ficou evidente a participação do réu em atividades promovidas por grupos de extermínio da Baixada. Foi condenado a 542 anos de reclusão em regime fechado.

Um terceiro acusado foi julgado em 12 de março de 2008. Novamente, apenas os familiares das vítimas estavam presentes. Apesar de testemunhas reconhecerem o réu como um dos assassinos, o Ministério Público retirou a acusação de homicídio e manteve apenas a de formação de quadrilha. Foi condenado a sete anos de prisão.

Foram executados por policiais militares na Chacina da Baixada: José Augusto Pereira da Silva (38 anos), marido de Regina Célia de Oliveira Lacerda; os irmãos Lenilson de Sousa Coutinho (22 anos) e Luciano de Sousa Coutinho (30 anos), cunhado e marido, respectivamente, de Patrícia de Jesus;* Marcus Vinicius Sipriano Andrade (15 anos), filho de Dulcinea da Silva Sipriano; Raphael da Silva Couto (17 anos), filho de Luciene Silva; Vagner Oliveira da Silva (25 anos), filho de Jurema Oliveira da Silva e enteado de Roberto Wilson Bastos.

Também foram executados:** Bruno da Silva de Souza (15 anos); Calupe Florindo Ferreira (64 anos); César de Souza da Penha (30 anos); Cledivaldo Humberto da Silva; Douglas Felipe Brasil de Paula (14 anos); Elizabete Soares de Oliveira (40 anos); Fabio Vasconcelos (29 anos); Felipe Soares Carlos (13 anos); Francisco José da Silva Neto (33 anos); Jailton Vieira da Silva (27 anos); João da Costa Magalhães (53 anos); Jonas de Lima Silva (19 anos); José Gomes de Oliveira (39 anos); Kenia Modesto Dias; Leonardo da Silva Moreira (18 anos); Leonardo Felipe da Silva (15 anos); Luiz Henrique da Silva (17 anos); Luiz Jorge Barboza Rodrigues (27 anos); Manoel Domingos Lima Pereira (53 anos); Marcelo Julio Gomes do Nascimento (16 anos); Marcio Joaquim Martins (26 anos); Marco Aurélio Alves; Renato Azevedo dos Santos (32 anos); Robson Albino (37 anos); Sandro Moura Vieira; William Pereira dos Santos.

Relatos familiares[editar | editar código-fonte]

Marcus Vinicius Sipriano Andrade[editar | editar código-fonte]

Dulcinea da Silva Sipriano
(mãe de Marcus Vinicius Sipriano Andrade, assassinado em Queimados, na Chacina da Baixada, aos 15 anos)

Já voltou

Seis horas da manhã, Marcus Vinicius acorda, se arruma para ir para a escola. Eu fico olhando e falo: “Filho, você vai perder o ônibus”, e ele responde: “Coroa, eu te amo, beijo”. Ao meio-dia e 40, ele chega e grita do portão: “Mãe! Cheguei! Estou com fome!”. Diz que precisa fazer um trabalho e pergunta: “Mãe, você me ajuda?”. Eu e ele passamos a tarde toda pesquisando. Às cinco horas eu falei: “Chega”. Ele lancha, toma banho, vai brincar de bola de gude em frente de casa.

Quando entrou eram umas seis e meia da tarde. Estava começado a escurecer. Viu televisão. Às oito pediu janta. Não me esqueço nunca mais desta comida: arroz, feijão, farofa, ovos mexidos, batata frita e suco de guaraná natural.

Ele comeu, foi para a sala, encostou no ombro do pai e começou a cochilar. O pai chamou: “Vinicius, vai deitar, você vai ficar com dor no pescoço”. Ele levanta, tira a camisa e vai para o quarto. Já eram nove da noite. Depois vai à cozinha, onde eu estava, e fala: “Mãe, eu vou até a casa da Mamona pegar o trabalho que está com o Vitor e já volto”. (Mamona é minha filha Simone e Vitor é o filho dela, meu neto.) 

Ele ia saindo e a Mamona chega. Nós moramos perto. Conversamos rapidamente e ela se despediu. Mas quando chegou ao portão, gritou: “Mãe, estão dando tiro ali em cima, está saindo até fogo”.

Fiquei muito aflita e falei para ela entrar de novo. E nem imaginava que aqueles tiros eram no meu filho.

Quando pararam, todos nós saímos correndo na direção de onde tinham dados os tiros. Ao chegarmos lá, o meu neto, que tinha sete anos, gritou: “Vó, meu tio está aqui. Vamos levar ele para a Posse, ele está vivo”.

Meu filho ainda respirava. Ele me olhou, apertou minha mão e morreu. Foi um pedaço que arrancaram de mim.

Vieram encapuzados

Eu moro na Praça da Bíblia, em Queimados. Eles vieram encapuzados. Estavam procurando quem iam matar. Passaram de carro, olhando pelo vidro aberto até a metade. Passaram em frente a um bar que fechou, olharam. Seguiram adiante. Olharam lá para cima, havia várias pessoas do bairro numa barraca desativada. Todos sempre se reuniam ali. Sentavam num murinho e ficavam conversando. Nenhuma dessas pessoas tinha vício.

Os policiais olharam para esse lugar onde as pessoas conversavam e resolveram subir lá, para matar. Meu filho tinha saído de casa nessa hora e ia voltar logo. Não voltou, foi assassinado.

Marcus Vinicius nasceu no dia 19 de janeiro de 1990, às seis horas e 15 minutos, na clínica do doutor Antiveros, em Engenheiro Pedreira. Foi um bebê lindo, saudável. Com cinco anos já lia algumas coisas e escrevia o nome dele e dos irmãos. Sabia contar dinheiro e conhecia notas e moedas. Cresceu um menino inteligente, prestativo, carinhoso. Era levado, mas muito determinado e desde pequeno sonhava com o futuro. Queria ser jogador de basquete e ortopedista. Quando morreu ia começar a fazer um curso de filmagem.

O meu filho tinha mania de dizer: “Mãe, tu é brilho. Mãe, tu é muito linda. Mãe, eu te amo”. Os meus filhos são muito agarrados comigo, mas ele parecia mais. Se entrasse em casa dez vezes, dez vezes me beijava, me abraçava, gritava que me amava. Se ligasse, de onde estivesse dizia: “Mãe, eu te amo”. E eu dizia também: “Eu te amo, meu filho”. Era assim. (Dulcinea)

À flor da pele

Dói, dói muito. Mas nós aprendemos muita coisa nesta luta. A gente vê que cada um tem a sua dor. E tem hora em que paro e penso: “Ai, meu Deus! Existe gente que tem dor pior que a minha”, pois há mães que não podem enterrar seus filhos. Imagina o que é uma mãe passar anos procurando...
E não achar. E as mães que, por obra do destino, só tiveram um filho e aí vem alguém e tira a vida desse filho? O lugar do meu filho está vazio? Está vazio, mas eu tenho outros, que vêm, me beijam, me abraçam. Eu penso também assim: fizeram isso com o meu filho, foi uma covardia. Mas acho que seria bem pior se me dissessem, por exemplo: “Ah, teu filho estava usando droga e a polícia matou”. Eu acho que a dor seria bem pior.

Eu convivi com meu filho por 15 anos. Foi uma coisa maravilhosa. E desde o dia em que aconteceu essa tragédia na minha vida, na vida do pai dele, dos irmãos, da minha sogra, tudo mudou muito. Eu já tinha problema de saúde, aí dobrou. Eu choro todas as noites. Tem dia em que estou calma, mas tem dia em que estou com os nervos à flor da pele.

Raphael da Silva Couto[editar | editar código-fonte]

Luciene Silva
(mãe de Raphael da Silva Couto, assassinado na Chacina da Baixada aos 17 anos)

Sem saber

Era o dia do Rapha levar a Tatá, sua irmã, para a escola. Ao meio-dia ele a buscou. Após o almoço, ficamos conversando no alto da escada da minha casa. Eu em pé, na frente dele, acariciei seu rosto e disse que ele ia ficar com o peito tão cabeludo quanto o do pai. Ele riu e ficou satisfeito, pois tinha muito orgulho do pai. Logo que caiu a tarde, avisei que ia visitar uma amiga. 

Ele ficou com um amigo no portão e disse ao irmão que, depois, iria para a casa desse amigo ver filmes em DVD . Só que outro amigo, o William, passou na rua dizendo que ia comprar peças de bicicleta em Nova Iguaçu. Rapha pegou sua bicicleta e foi junto, sem avisar ninguém e sem saber que estava indo ao encontro da morte.

O meu menino

O dia parecia ser como outro qualquer. Mas, no final, transformou de maneira terrível a vida de 29 famílias. Por volta das oito e meia da noite, em frente ao Sesc, na Dutra, cinco monstros que se diziam policiais assassinaram meu filho e seu amigo, iniciando uma matança descontrolada por ruas e bares que ficou conhecida como Chacina da Baixada.

Eu, que retornei para casa pensando que o Rapha estivesse com um amigo vendo filmes, fiquei sabendo o que tinha acontecido pelo jornal. Na manhã do dia 1º de abril de 2005, vi a foto do meu filho estampada na primeira página.

Então soube que o meu menino estava morto. (Luciene)
 
No dia 19 de janeiro de 1988, na maternidade de Belford Roxo, às dez e meia da manhã, nascia o meu segundo filho. O nome eu já havia escolhido: Raphael, com ph. Meu pai me levou para o hospital. O meu Raphinha era pequenino, branquinho e magrinho. Parecia um ratinho branco, mas era uma gracinha o meu bebê!

Ele era brincalhão, carinhoso, bondoso, saudável, irmão companheiro, filho amigo. Teimoso, genioso, às vezes
mal-humorado. Na escola, todo mundo o achava o máximo. Aos oito anos, começou a fazer capoeira junto com o irmão mais velho, o Rodrigo, e o mais novo, o Ronnie. Logo ele se apaixonou pelo esporte e se dedicou tanto que quando entrava nas rodas os mestres cantavam: “O menino é bom, bate palmas para ele, o menino é bom!”. Ele se sentia orgulhoso. Conseguiu chegar até o batismo do cordel de instrutor.

Seu sonho era ser professor de capoeira. Começou a sonhar também com a faculdade de educação física. Ele e o irmão caçula fizeram juntos um curso de mecânica e pensavam em montar uma oficina. Tantos planos, tantos sonhos e, no dia 31 de março de 2005, tudo acabou. (Luciene)

Pesadelo

Eu estava vivendo um pesadelo. A melhor opção foi ir embora e ficar um tempo longe com a minha família, para poder reestruturar tudo. Fui para um apartamento, sozinha, com dois filhos, Taynara e Ronnie. O Rodrigo ficou aqui, para acabar os estudos. Fiquei sem ter ninguém para me apoiar e foi a época em que mais me aproximei de Deus.

O Ronnie quis entrar numa depressão e eu tive que recarregar as forças para não deixar que isso acontecesse. Ele e o Raphael iam juntos para a escola, voltavam juntos, tomavam banho juntos, dormiam juntos. Então, para ele, foi muito difícil. Ficou com pânico de sair de casa, de andar à noite. O pai trabalhava,
chegava tarde, e eu não podia me dar ao luxo de entrar numa depressão. Eles precisavam de mim e eu tinha que ter uma força além da minha.

O Ronnie recuperou, mas tem sequelas que vão ficar para sempre. Assim como a Taynara e o Rodrigo.

Vagner Oliveira da Silva[editar | editar código-fonte]

Jurema Oliveira da Silva e Roberto Wilson Bastos
(mãe e padrasto de Vagner Oliveira da Silva, assassinado na Chacina da Baixada aos 25 anos)

Tomou a benção

A última vez em que falei com o Vagner foi um dia antes de sua morte. Já era de tardinha quando ele me encontrou no ponto de ônibus, me tomou a bênção e me deu um beijo. Disse que ia lá em casa pegar o peixe que meu companheiro tinha pescado e prometido a ele.

A imagem que tenho desse dia é de uma pessoa liberta por Deus e dotada de bondade, com uma alegria espontânea. Seus atos sinceros para comigo me deram sentimentos de ter sido uma boa mãe. Eu amava meu filho.

Tanta dor

Na sua infinita crueldade, policiais militares apertaram os gatilhos contra 30 inocentes tendo uma rede de proteção formada por outros policiais de folga ou de serviço naquela noite. Segundo os jornais, o motivo foi obstruir o processo de moralização e identificação de policiais envolvidos em crimes na região.

Quanta violência existe no mundo dos covardes. Aí eu pergunto: quanto custa uma vida? E que motivos eles teriam para causar tanta dor no coração de uma mãe que tem certeza de que deu o melhor na criação do filho? Uma mãe que tem certeza de que seu filho não andava por caminhos tortuosos; uma mãe que sempre soube que o filho seguia o caminho do bem, pois era cristão.

Exatamente aos nove dias do mês de maio de 1979, na maternidade de Nova Iguaçu, nasceu o Vagner, com três quilos, 550 gramas e 52 centímetros. Era bonito, forte e saudável. Um belo dia, fiquei surpresa com ele. Quando tinha dez meses, deixei-o dormindo e fui fazer o jantar. Ele acordou, desceu da cama, foi até a cozinha e me chamou de Miema. Então me dei conta de que estava andando. Que alegria e felicidade senti naquele
momento.

Aos 16 anos foi trabalhar vendendo livros, mas não deu certo. Teve que parar. Então foi vender picolé na praia. Aos 19 anos resolveu fazer um curso de mecânico, que parou no meio, pois não era o que queria. Logo se empregou numa firma de tecidos, como ajudante de cozinha, e nela permaneceu por um ano.

Depois foi para uma loja de flores, onde ficou por sete meses. Saindo daí foi trabalhar num hotel na Barra da Tijuca. Nessa ocasião, fez curso de calista. Concluindo o curso, começou a planejar seu sonho: trabalhar na Telemar. Soube que seria chamado pela companhia no dia 11 de abril e ficou muito feliz, pois lá ganharia mais. Vagner pensava em terminar a casa que havia começado a fazer em cima da minha. Ele tem uma filha, que se chama Isabelle, e sempre quis dar-lhe o melhor.

Queria também comprar um terreno em um lugar tranquilo onde pudesse construir novamente para deixar a casa em cima da minha para eu alugar. Assim eu não precisaria mais trabalhar e uma parte do sonho dele era me tirar do meu trabalho, que exige muito de mim. Mas às vezes o sonho deixa de ser sonho, quando é brutalmente arrancado de uma vida.

Um vazio

A perda dele ainda me causa muita dor e sofrimento, me deixou um vazio que eu gostaria de saber se o tempo vai amenizar. Eu tinha uma filha também, que teve meningite e eu perdi quando estava com quatro anos. Então tinha ficado só com ele. É muito duro perder dois filhos.

José Augusto Pereira da Silva[editar | editar código-fonte]

Regina Célia de Oliveira Lacerda
(viúva de José Augusto Pereira da Silva, assassinado em Queimados, na Chacina da Baixada, aos 38 anos)

Um beijo

Na véspera, uma quarta-feira, o José Augusto chegou em casa, fez um macarrão com frango à milanesa. Ele estava de mal comigo. Comeu, tomou banho, reclamou um pouco com a Rayane, falou que estava com dor de cabeça e disse: “Quanto mais a gente faz, menos temos valor”.

A Rayane pediu: “Pai, leva a gente na escola amanhã, compra frango e faz para quando nós chegarmos”. Aí ele respondeu: “Está bom, agora vai dormir Rayane”. Ela se deitou, ele apagou a luz e deu um beijo no Lorran e na Lorranne.

E eu fiquei pensando em como a gente brigava por motivo bobo. Pensei também: “Amanhã, quando ele chegar, vou contar que estou de férias para podermos ir a Petrópolis”. Ele gostava bastante de ir lá, principalmente quando íamos comprar roupas para vender.

Perto do corpo

No dia seguinte, uma quinta-feira, José estava de folga. Levou os filhos à escola, deu faxina na casa, lavou os tapetes, fez o “sacolão”, trouxe carne. À tarde, buscou as crianças e fez a janta.

Às nove e meia da noite, pediu à Rayane para comprar uma Coca-Cola e um maço de cigarros. Nisso, o Lorran falou: “Passaram uma moto e um carro por aqui. Esquisito...”. Aí o José chamou a Rayane, que já estava na esquina, e disse: “Deixa que eu vou”. Subiu, foi à padaria e depois foi até à Baixinha. Deu um beijo na testa do Beto e do Paulinho e falou: “Vou para casa levar o refrigerante dos meus chiquinhos”.

Nesse momento, entrou um policial no bar e gritou para todo mundo deitar no chão. “O que está acontecendo aqui?”, perguntou o José. “Calado, polícia”, berrou outro policial. Ele reconheceu a voz e falou: “Vocês estão doidos, matando moradores e pessoas inocentes!”. E tentou sair por outra porta, mas atiraram no joelho dele. Mesmo assim, ele saiu correndo pela rua, tentando se proteger em algum lugar, e eles correndo atrás, atirando sem parar. 

O Lorran estava sentado no portão quando o pai dele saiu. Ouviu os tiros e baixou o som da televisão. Disse para eu ir ver, porque o pai tinha acabado de subir para o bar. Saímos correndo. Minha irmã gritando pelo filho dela e pelo cunhado, e eu gritando também. Quando chegamos ao bar, estava tudo quebrado e havia várias pessoas desesperadas. E elas diziam que se ele,
o José, não morresse, todos que estavam ali é que teriam morrido. Aí corri até onde estava o meu marido. Ele estava caído de bruços, ainda vivo. Logo apareceu uma patrulhinha, do nada. Pedimos socorro. Eles disseram que não poderiam ajudar, pois ele já estava morrendo.

Pedimos ajuda aos vizinhos, mas todos estavam apavorados, com medo. Ali mesmo ele morreu. Por falta de socorro.

Ficamos durante a madrugada toda na rua, perto do corpo. A polícia entrava e saía, e nada. Às quatro e meia da manhã chegou um detetive perguntando coisas. Perguntou se naquele lugar havia passado um Vectra branco. Nós falamos: “Sim, os PMs estiveram aqui recolhendo projétil de bala e dizendo que tinham sido acionados naquela hora para aquela localidade”.

Mas de que adiantavam tantas perguntas se o meu marido estava morto e nunca mais voltaria? Tinha acabado a história da vida dele, os sonhos, as realizações e o futuro. Tinha ficado tudo ali, naquele chão, com 12 balas no corpo.

José Augusto nasceu em Cabuçu, em 13 de junho de 1966. Teve uma infância sofrida, com os pais separados. Ainda menino, pegava areia no rio para vender. Alimentava-se só uma vez por dia: farinha com café. Dizia que quando crescesse seria bombeiro.

Algum tempo depois sua mãe voltou para seu pai, mas a situação piorou: as filhas foram para um colégio interno e os quatro irmãos começaram a trabalhar duro. Mesmo assim Augusto continuou a estudar, até ter que abandonar a escola de vez para trabalhar na loja de construção onde entregava areia.

Ficou quatro anos no quartel. Quando deu baixa, foi morar com um primo e uma prima até comprar uma casa e morar sozinho. Aí começou a trabalhar em Ipanema, fazendo serviços gerais.

Algum tempo depois começamos a namorar, noivamos durante um ano e casamos. Ele sempre teve o sonho de ter uma família grande e construir uma casa bem bonita. Tive a Rayane, que era a menina dos olhos dele, e logo depois vieram o Lorran e a Lorranne. E esses três eram tudo para ele. O que ele não teve na vida dele, dava aos filhos. Sempre foi muito amigo dos vizinhos e procurava ajudar.

Seu outro grande sonho era ver os filhos formados. Mas queria também construir algo que pudesse ajudar as crianças e os idosos. Na vida dele aconteceram vários fatos marcantes, o principal foi o nascimento da Rayane: a primeira filha mulher. Outro foi a construção da loja de roupa que ele queria que eu montasse. Perdeu o emprego no nascimento do Lorran, mas logo se tornou segurança em Bonsucesso. Trabalhou lá por seis anos, cinco sem carteira assinada e um ano e três meses com carteira assinada.

Luciano de Sousa Coutinho e Lenilson de Sousa Coutinho[editar | editar código-fonte]

Patrícia de Jesus
(viúva de Luciano de Sousa Coutinho, 30 anos, e cunhada de Lenilson de Sousa Coutinho, de 22, assassinados na Chacina da Baixada)

Inocência

Tive uma menina chamada Tifany, minha gravidez foi planejada. Mas o pai dela faleceu no dia 31 de março de 2005 e não sei a causa da morte. Só sei que umas pessoas invadiram a minha casa e mataram meu marido, o Luciano. E hoje em dia a minha sogra acha que fui eu que o mandei matar. Quero provar minha inocência. Nesse dia mataram também o Lenilson, meu cunhado, irmão do meu marido.

Todos os dias eu sinto falta do Luciano.

Luciano teve uma vida difícil. Quando era menino, muitas vezes as refeições que fazia na escola eram as únicas do dia. Então teve a infância perdida. Com 12 anos começou a vender salgados na rua; com 15 foi trabalhar num aviário, limpando frango. Depois se tornou o homem da casa e pai para os irmãos menores. Aos 17 anos, perdeu o irmão mais novo. Sofreu muito. Aí passou a se dedicar totalmente ao outro irmão, Lenilson, assassinado junto com ele. Luciano era soldado e sustentava a mãe e a esse irmão, a quem pagou um curso de garçom. Meu marido nunca foi punido no Exército, não chegava atrasado nem faltava.

Nós nos conhecemos em 1994. Em 2002, os recrutas foram mandados
embora e ele ficou desempregado. Com o dinheiro que recebeu, comprou um trailer para trabalhar. Em 2003, comecei a trabalhar também e ele tomava conta da nossa filha. Arcava com todas as despesas da casa. Era uma pessoa muito boa. Seu sonho era ter uma filha e se tornar segurança. Este último sonho ele não pôde realizar.

Não aceito

Antigamente eu gostava de sair, de arrumar minha casa, fazer comida, eu me dedicava ao meu marido e à minha filha. Aí perdi totalmente o ânimo. Você sempre imagina que a pessoa com que você está casada pode ir embora, mas eu não aceito a forma como ele se foi.

Fonte[editar | editar código-fonte]

Fragmentos do livro "Autos de resistência: relatos de familiares vítimas da violência armada", organizado por Barbara Musumeci, Tatiana Mouta e Carla Afonso, e publicado em 2009 pela Editora 7Letras, Rio de Janeiro. "Autos de Resistência" é resultado de uma das atividades do Projeto de Apoio a Familiares de Vítimas de Chacinas, desenvolvido pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) da Universidade Candido Mendes - RJ e pelo Núcleo de Estudos para a Paz (NEP) da Universidade de Coimbra.

  1. Fragmentos do livro "Autos de resistência: relatos de familiares vítimas da violência armada", organizado por Barbara Musumeci, Tatiana Mouta e Carla Afonso, e publicado em 2009 pela Editora 7Letras, Rio de Janeiro. "Autos de Resistência" é resultado de uma das atividades do Projeto de Apoio a Familiares de Vítimas de Chacinas, desenvolvido pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) da Universidade Candido Mendes - RJ e pelo Núcleo de Estudos para a Paz (NEP) da Universidade de Coimbra.