Chacina do Pan-Americano - 27 de junho de 2007
No dia 27 de junho de 2007, no Rio de Janeiro, uma operação policial ocorreu nas favelas que compõem o Complexo do Alemão. Os números oficiais apontaram 19 pessoas mortas no confronto, das quais pelo menos nove não tinham antecedentes criminais.
Em 2007, o Rio celebrava os XV Jogos Pan-Americanos, evento esportivo que ocorreu com grande operação logística e organizacional. Durante os Jogos, um grande cerco policial foi montado na região das favelas que compunham o grande Complexo do Alemão, para supostamente garantir a segurança do evento internacional. À época, o Alemão foi considerado pelo jornal O Globo como a "faixa de gaza carioca".
Autoria: Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Este trabalho é uma pareceria entre os grupos GENI/UFF, Radar Saúde Favela e CASA (IESP/UERJ) juntamente com o Dicionário de Favelas Marielle Franco.[1]
A chacina[editar | editar código-fonte]
Em 2 de Maio de 2007, deu-se início o cerco da polícia em torno do Complexo do Alemão. A operação supostamente começou como uma resposta da polícia à morte de dois policiais do 9ª Batalhão da Polícia Militar em Oswaldo Cruz, Zona Norte do Rio de Janeiro. No mesmo local onde os policiais foram mortos, o menino João Hélio Fernandes, em fevereiro de 2007, foi morto depois de ser arrastado preso ao cinto de segurança do carro roubado de sua mãe poucos meses antes.
O cerco da polícia às favelas do Complexo do Alemão se estendeu de maio até meados de julho de 2007. O ápice da ação policial foi no dia 27 de junho de 2007 quando uma “megaoperação policial”, realizada em parceria entre os governos estadual e federal, envolveu mais de mil e trezentos policias, entre militares, civis e soldados da Força Nacional de Segurança Pública. Tal operação ainda contou com três carros blindados (“caveirões”), um helicóptero e uma dezena de viaturas.
O saldo total do cerco ao Complexo do Alemão foi, a saber: 44 mortos e 78 feridos. Em um único dia, 27 de junho, foram mortas 19 pessoas que, de acordo com a Secretaria de Segurança Pública do Estado, eram suspeitos de participar do crime organizado no Complexo do Alemão. Usamos “chacina do Pan” para nos referirmos à morte destas 19 pessoas no dia 27 de junho de 2007.
No dia seguinte à megaoperação, a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) visitou o Complexo do Alemão, entrevistou moradores e colheu informações sobre o ocorrido. O então presidente da comissão, João Tancredo, apresentou denúncias à imprensa e ao Ministério Público sobre evidências que apontavam para mortes sem confronto, isto é, execuções.
Em outubro de 2007, relatório feito por peritos forenses designados pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, comprovou que houve execuções sumárias e arbitrárias no Complexo do Alemão. De acordo com o documento, a polícia gastou 70 balas para matar 19 pessoas, sendo que, pelo menos em dois casos, os laudos comprovam que houve execução.
Narrativas e repercussão midiática[editar | editar código-fonte]
A invasão do dia 27 de junho no Complexo do Alemão virou matéria de capa de jornais, revistas e ganhou muito destaque em programas da TV – alguns chegaram a transmitir trechos da operação policial ao vivo em suas emissoras. No entanto, podemos concluir que uma das principais ideias sustentadas pela cobertura de diferentes veículos de comunicação da grande mídia sobre a invasão do dia 27 de junho foi: a operação foi um grande sucesso e, tornou-se assim, um marco no Brasil no que tange ao combate a criminalidade.
Contudo, como pode uma operação que envolve mais de 1000 policiais, que não prende nenhum suspeito, que gasta 70 balas para matar 19 pessoas, que apreende um número insignificante de armas e drogas ter sido um sucesso? Ser prova de “inteligência, planejamento e determinação”? A Revista Época, por exemplo, classificou a operação como “um ataque inovador”. Historicamente, matar pobres em nome da segurança da sociedade não é algo novo.
Neste sentido, o discurso da revista tratou a operação policial no Alemão não como mais uma intervenção da polícia numa favela carioca, mas, antes, como a tentativa de afirmação do Estado contra o caos, a desordem ou, usando o vocabulário da Época, contra a “barbárie”. A sorte da população do Rio, bem como, o destino da cidade estava sendo traçado a ferro e fogo nas ruas esburacadas, nas vielas estreitas, nas casas de tijolos vermelhos do Complexo do Alemão.
Por outro lado, a Revista Veja classificou a invasão ao Alemão de “uma guerra sem precedentes”. A Revista não fez cobertura muito diferente de sua concorrente Época, e ajudou a produzir um consenso de que: a) o Complexo do Alemão é a fonte de grande parte dos problemas de segurança pública no Rio; b) a operação policial – que deu se a partir de maio de 2007 e durou até meados de julho do mesmo ano – no conjunto de favelas deveria ser enérgica para que o Estado vencesse o tráfico e pudesse, assim, recuperar toda aquela região; c) a megaoperação policial de 27 de junho foi um marco no combate a “criminalidade”, ou seja, um verdadeiro e aplaudido sucesso.
Contudo, as duas revistas não se preocuparam em investigar se as inúmeras denúncias de violações aos direitos humanos, tortura e violência policial contra a população do Alemão tinham fundamento. Timidamente, as mesmas noticiaram que houve denúncias, mas, ao mesmo tempo, não se deram ao trabalho de fazer qualquer investigação. Ou, se fizeram investigação não a publicaram, posteriormente.
A Revista Veja chegou a afirmar que “quase todos os feridos, aliás, são moradores atingidos pelos próprios traficantes, que pretendiam jogar a opinião pública contra a polícia”. Em nossa pesquisa, não encontramos nenhum relato, seja da polícia, de jornalistas ou de moradores do Complexo do Alemão, que corroborem a afirmação acima.
Ao tomarmos como analisador os discursos das Revistas Veja e Época, percebemos que a política de verdade adotada por ambas são muito próximas. As duas cooperaram de maneira sinistra para que a operação policial no Conjunto de Favelas do Complexo Alemão em 2007 fosse vista, pelo grande público classe média leitor de suas revistas, como um acontecimento inovador que demonstrava como o “combate a criminalidade” deveria ser tratado no Rio de Janeiro e no Brasil. Contudo, nos perguntamos: o que há de inovador na prática policial de invasão de comunidades e mortes de moradores?
Os dados estatísticos que poderiam demonstrar que a megaoperação policial no Complexo do Alemão no dia 27 de junho representou um verdadeiro fracasso são usados pelas revistas Veja e Época como se representasse uma das provas do sucesso da invasão policial. Por exemplo, ao invés de dizerem que a polícia prendeu apenas 14 armas, as revistas enfatizam que dentre estas havia uma perigosa metralhadora anti-aérea.
Ao se posicionarem ao lado do governo fluminense e de sua política de segurança pública transformada em política pública de extermínio dos pobres, ambas as revistas – Veja e Época – se tornaram, no nosso entender, apêndices da máquina mortífera montada pelo Estado para aniquilar aqueles que se tornam, diariamente, seres humanos refugados ou descartáveis.
Neste sentido, que os discursos da grande mídia serviram como apêndice da “máquina mortífera” montada pelo Estado para reprimir e exterminar as classes pobres marginalizadas. Aliás, não é de hoje que o Estado brasileiro e as grandes corporações de mídia fazem parte de algum pacto sinistro. A mídia usou de sua capacidade de produzir verdades e consensos através da produção discursiva para nos fazer crer na iminente ameaça da criminalidade contra os jogos Pan Americanos. Para tanto, a estratégia utilizada foi a da exposição diária e sensacionalista de atos de criminalidade na cidade do Rio.
Por outro lado, quando, enfim, estava intensificado um clima de medo e insegurança no Rio as vésperas do Pan, o Complexo do Alemão foi invadido a luz do dia e sob os holofotes da mídia. O ineditismo desta invasão ao Alemão está, por um lado, na grande quantidade de homens envolvidos na operação – mais de 1000 –, bem como, no modo pelo qual a mídia fez a cobertura sensacionalista da invasão estando lado a lado com os policiais subindo os morros do Alemão. Percebemos, aqui, um paralelo com a nova modalidade de cobertura jornalística forjada na recente Guerra do Iraque.
A história oficial, aquela que ganhou a capa das revistas, foi a de que a “Chacina do Pan” nunca aconteceu. O que ocorreu foi a matança executada pelas forças do Estado – que detém o monopólio da violência – , apoiada pelos grandes grupos de mídia – mas não apenas por estes – e aplaudido por grande parte da população carioca. Tudo em nome da segurança, dos jogos Pan e da paz da cidade. Curiosamente, quando estivemos no Complexo do Alemão pouco tempo depois da “Chacina do Pan” encontramos, sem muita dificuldade, adolescentes carregando fuzis e pistolas e drogas sendo vendidas à luz do dia a poucos metros de onde ficavam os soldados da Força Nacional de Segurança. Depois da megaoperação tudo voltou a ser como era enquanto o Estado e a mídia falavam em paz. Estranha paz.
O legado[editar | editar código-fonte]
O Rio de Janeiro se tornou sede de dois grandes megaeventos esportivos, entre outros: a Copa do Mundo de Futebol (ocorrido em 2014) e as Olimpíadas (2016). A cidade se prepara para a realização dos mesmos. O desafio que enfrentamos é lutar para não permitir que novas chacinas e violências aconteçam em nome da realização de tais eventos. Práticas de violência em nome da paz. E como é tão estranha a paz quando é feita de guerra; quando produz corpos dóceis, subjetividades submissas e vidas descartáveis.
Ver também[editar | editar código-fonte]
Chacinas policiais (relatório)
- ↑ Cf. José Rodrigues Alvarenga Filho. "A “Chacina do Pan” e a produção de vidas descartáveis", Fractal, rev. psicol. 28 (1), Jan-Apr 2016.