Cleonice Dias, a aprendiz da Cidade de Deus (entrevista)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Essa entrevista traz as memórias de Cleonice Dias, liderança comunitária e ex-moradora da Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. Mãe, avó e cidadã do mundo, como ela mesma se intitula, a entrevista traz diferentes momentos da trajetória de Cleo, sua chegada à Cidade de Deus, o vínculo afetivo com seus vizinhos e as lutas políticas por ela travadas com suas companheiras e companheiros.

A entrevista foi produzida para o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Gabriel Nunes intitulado "Memórias faveladas: as narrativas de Cleonice e Marilene sobre si e seus territórios", apresentado à Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Autoria: Gabriel Nunes[1].
Cleo numa entrevista.
Cleonice numa entrevista.

Entrevista em vídeo[editar | editar código-fonte]

Transcrição[editar | editar código-fonte]

Apresentação[editar | editar código-fonte]

Eu sou Cleonice, da Cidade de Deus, hoje eu não moro lá, mas eu continuo vinculada. Hoje eu considero uma vinculação de forma secundária, porque eu tenho uma relação com algumas instituições e faço parte de outras, então já tô na fase do conselho. Mas eu já tive ativa e sou uma cidadã do mundo, avó, agora com 70 anos, e pedagoga e professora com muito orgulho e militante dos movimentos sociais. Tive meu curso de aperfeiçoamento, aprendizado e especialização na Cidade de Deus, então tudo o que eu sei e o meu entendimento de todos os conceitos, hoje, passam por um aprendizado coletivo na Cidade de Deus. Eu não sou sozinha. Eu sou um monte de gente que juntou para trabalhar junto e compreender a realidade, e estudar junto. Se tem uma característica interessante da minha vivência na Cidade de Deus, é que eu participei de vários grupos. Nunca fui liderança, a gente não aceita muito essa coisa de liderança. Participei, mas a gente estudava. A gente procurava entender o que a gente estava fazendo dentro de uma situação maior, dentro de uma realidade local, nacional e internacional. Então a gente sempre, tanto na rádio comunitária quanto no movimento associativo, como na proposta de desenvolvimento comunitário, agência de desenvolvimento comunitário, tudo passava por estudar refletindo a nossa prática numa conjuntura maior. Pronto, acho que eu fiz a minha apresentação do meu método de aprendizagem.

O amor e a chegada na Cidade de Deus[editar | editar código-fonte]

O amor veio primeiro [que a Cidade de Deus], porque eu sou mineira de São João del Rei e meu marido, quando eu o conheci, ele estava em São João del Rei fazendo uma revalidação de filosofia porque ele estudava no seminário para ser padre, não pode ordenar por uma questão de saúde, aí lá na faculdade onde estudava, quem deixou de ser padre fazia revalidação de filosofia lá em São João del Rei. E eu o encontrei lá, fazendo um curso de férias encontrei com ele, e, assim, foi amor à primeira vista, porque ele morava na Cidade de Deus, veio da Praia do Pinto, e eu, fruto do movimento da Teologia da Libertação, tinha a opção preferencial pelos pobres. Eu era pobre, sabe, mas tinha essa coisa da Teologia da Libertação. Então quando eu cheguei na Cidade de Deus eu conheci um ano de namoro por cartas, visita uma vez por mês, quando eu fui eu tive que esconder da minha família que morava lá.  E eu encontrei a Cidade de Deus, em 1975, dividida, conforme o filme Cidade de Deus mostra, dividida em quatro áreas, com quatro gerências diferentes do tráfico, e a proibição de circular por toda a comunidade, e meu primeiro contato de organização foi na Igreja Católica, a Teologia da Libertação, né, o primeiro vínculo. Mas meu marido, ele era muito bem quisto. Uma palavra antiga, mas era isso que ele era, todo mundo adorava porque o conheceu como seminarista e acompanhou. Ele morava na quadra do pessoal que veio da Praia do Pinto, não é, porque na época ele morava na igreja, lá com o Padre Júlio, então todo mundo gostava dele, todo mundo. E o pessoal chamava ele de Padre Dirceu. Eu ganhei a afetividade que ele tinha como herança e legado, e eu fiquei viúva um ano e três meses depois do casamento. Ele morreu. E o amor que a comunidade, que as pessoas.... Quando eu falo comunidade, o pessoal da igreja, porque até então era o único lugar que eu tava atuando, né, nas Comunidades Eclesiais de Base. Eram os grupos de reflexão onde a gente exercia o ver, julgar e agir, ver, julgar, agir e rever, e a gente ia discutindo as questões da comunidade na ótica da Teologia da Libertação. Os meus vizinhos, que eram da Praia do Pinto, quando meu marido morreu, eles me ofereceram a solidariedade de ajudar a criar meu filho, né [...].

Os primeiros aprendizados[editar | editar código-fonte]

Então, assim, e a minha atuação foi um vexame no início, sabe, porque na igreja, por exemplo, quando a gente discutiu a questão do lixo, eu vim com aquela ideia do interior de Minas Gerais, né. Você faz o.… coloca o lixo no plástico, separa as coisas, e o pessoal, primeira frase que eu falei, o pessoal dava gargalhada, não esqueço. Eles tinham muita liberdade, o pessoal (RISOS) falava muito na cara, eu também não tava acostumada com isso, então eles riam muito e falavam: Aqui não tem coleta, aqui não tem lugar pra colocar, aqui a gente se não colocar na rua fica dentro de casa, vai dar bicho, varejeira, não sei o que. Então os moradores tanto me acolheram na ausência do meu marido, como me ensinaram a realidade, sabe. Então eu não era de muito escutar não, porque eu achava que eu sabia mais. Eu tive que aprender a ficar calada, eu ouvi na marra. Foi a primeira lição que a Cidade de Deis me deu. Você que chegou agora, estrangeira, tem que ouvir primeiro. Não dá pra falar porque você não sabe da nossa realidade. Então foi esse um grande aprendizado. Quando meu marido morreu eu tive que fazer o inventário. Procurei a justiça gratuita e fui fazer o inventário da minha casa, e aí eu descobri que a minha casa não existia. Os moradores da Praia do Pinto foram alocados numa quadra que era pra ter equipamento comunitário. E nesse lugar eles construíram, a toque de caixa, o terreno era do município, a casa era da CEHAB e ninguém era dono de nada. Era tudo no nome de CEHAB. Então eu fui fazer inventário, o inventário está lá até hoje, já tem... eu fiquei viúva em 76. Eu passei a minha casa pra outro morador quando saí de lá, não tem escritura, tá no nome da CEHAB, o terreno é da prefeitura, e essa é uma situação de vulnerabilidade de mais 23 quadras na Cidade de Deus, entendeu. Que não tem e, se tiver, qualquer tipo de remoção as pessoas podem lutar, porque luta, na Cidade de Deus o pessoal é valente, mas se for buscar na justiça um direito é por uso capião, porque o que está na documentação  não aceita nosso direito. Então outro aprendizado foi esse. Por causa disso eu consegui convencer os moradores da quadra a buscar outras quadras que estavam na mesma situação e buscar o Conselho de Moradores da Cidade de Deus. Aí eu saio do campo da Igreja e vou para o campo do movimento comunitário pra resolver um problema que era de quadra. E assim que começa meu envolvimento nas outras lutas.

A alegria da vida comunitária[editar | editar código-fonte]

Ó, eu fiquei viúva aos 23 anos, né. Fiquei viúva com 23 anos e eu vivi o processo de passagem das gerências independentes do tráfico. A história do tráfico tem uma marca muito importante na identidade da Cidade de Deus, né. A resistência dos moradores e a ingerência do tráfico e a inoperância dos serviços públicos marca a identidade porque eu vivi esse processo das gerências, que tavam divididas e disputavam, pro início da Falange Vermelha, que é antes do Comando Vermelho. A unificação. Então, por exemplo, eu vivi na Cidade de Deus porque tava na igreja e podia circular, porque a igreja, a capoeira, as religiões, podiam circular, mas os moradores, os jovens de um lugar não podiam ir no baile de outro lugar. Não podia, era proibido, e os pais não deixavam. Então eu vivi esse momento, que era um momento de muito medo, né, tinha uma coisa também na Cidade de Deus que fazia muito medo, que eu passei muito medo, né, logo que eu fiquei viúva, que era a tal da Mão Branca, que era uma força de polícia vinculada à Ditadura Militar, não é. E aí o pessoal chamava de mão branca, que matava nas comunidades. Então eu passei por esse medo, passei pela alegria de ter samba na rua, sabe, de sexta feira ficar num bar, junto com outras pessoas, observando o samba, conheci de perto muito traficante que fazia sucesso, bonito, conheci o Valzinho de perto, e tal.  Assim, que tinha essa convivência na comunidade porque nessa época o pessoal que comandava o tráfico era criado na área, todo mundo conhecia a mãe, a família, eles iam no baile, sabe, todo mundo tinha aquela reverência, né. Eu também tava lá. Ia lá, gostava de mocotó (RISOS) gosto dessas coisas, então participava. Tinha teatro na Cidade e participava. Tinha discussão do Movimento Negro com o pessoal do Agbara Dudu, lá de Madureira, que ia fazer show e depois debate político, eu também participava, não é. Então esse início da minha mocidade ainda, mas já viúva, né, então..., mas eu trabalhava na Tijuca, sabe, eu trabalhava no Colégio Marista São José, então era uma realidade de um dualismo muito grande, sabe. Na Cidade de Deus eu vivia, tinha alegria de viver, encontrava com pessoas maravilhosas. Sabe quantos afilhados eu tenho na Cidade de Deus, por causa da religião? Eu tenho 28 afilhados de crisma e de batismo e tenho 16 de casamento, sabe. Então eu tenho muita comadre, muito compadre, porque a minha militância, ela vem de uma convivência assim, de bater papo, de saber das pessoas, sabe, de tomar cafezinho, de ir, de fazer comida boa na minha casa e os vizinhos virem comer. Tinha uma macarronada que eu fazia as vezes, uma vez por mês, que era um negócio assim, era uma mistureba, o pessoal adorava. Os meus vizinhos iam todos para a minha casa (RISOS) pra gente comer junto. Na festa junina a gente fazia festa junina junto, sabe, eu tinha essa vida social.

A luta política[editar | editar código-fonte]

[Eu] entrei na luta por moradia pra resolver uma questão de quadra, passados uns oito meses eu estava na coordenação da luta de habitação do Conselho de Moradores da Cidade de Deus. Passado um ano e uns meses, eu já estava disputando na chapa pra ser vice-presidente e depois fui presidente do Conselho de Moradores, não é, e do Conselho de Moradores pra Zonal da FAMERJ. Aí fui da coordenação da luta por transporte, da luta por educação, saúde, sabe, uma coisa vai levando à outra, e pra FAMERJ, aí participei da luta na FAMERJ da habitação. Mas é tudo misturado, daqui assim, foi misturando, eu fui ampliando minha visão, fui aprendendo ao mesmo tempo que eu percebi que tem uma limitação na luta comunitária. Na época em que eu estava na luta a gente fazia muito denúncia. O forte era fazer a denúncia, o discurso legal era fazer denúncia, aquela coisa toda, e a gente era bom de fazer denúncia na Cidade de Deus, a gente já fez secretário do governo chorar, já passou aperto, prefeito e tal, mas nos grupos de estudo que nós tínhamos, porque tem uma coisa que eu acho importante falar, eu nunca fiz nada sozinha nem aprendi sozinha, mas como eu era viúva minha casa era um centro de reunião, porque as nossas instituições não tinham sede, a sede era onde a gente pudesse reunir. Era na igreja, no posto de saúde, era na rua, né, e a minha casa virou um centro de estudos. Vários temas que nós tínhamos que aprofundar, nós convidávamos alguém de fora, que tinha conhecimento acadêmico, a gente pegava um texto sugerido por nós, porque tinha universitários no nosso meio também, né, e a gente fazia teoria e prática, não é, sendo que a prática, sendo que a prática era o que a gente fazia, a teoria como o mundo estava, como o país estava, quais as correlações de forças onde a gente estava. A gente tinha uma preocupação de não reproduzir (as relações de poder).

O encontro com a política institucional.
O encontro com a política institucional.

Então, aí eu descobri o partido político, que a luta comunitária naquela época que era só de denúncia, não era o suficiente para as repostas que a gente precisava, e aí também me filiei ao PT [Partido dos Trabalhadores], na época, mas aí já é em 82, então me filiei em 82 e vivia essa luta, sabe, mãe, dona de casa, a igreja católica, Teologia da Libertação, militante na Cidade de Deus, aí entrou rádio comunitária, também fui da coordenação da equipe do colegiado da coordenação da rádio, fazia programa de rádio, a gente bateu recorde na Cidinha Campos, no Haroldo Barbosa, nós éramos uma rádio muito ouvida, tanto é que a polícia federal foi lá e fechou como que a gente fosse os bandidos mais perigosos. Uma porção de cara com touca ninja, com metralhadora, né, levaram o DJ que tava lá operando na hora que não tinha programação, sabe. Então assim, eu tinha muita experiência em vários níveis de militância, com grupos que tinham também outras tradições, né, porque tem uma coisa forte na Cidade de Deus que eu ficava um pouco fora, até que eu consegui me incluir pela leitura mesmo, que é a questão da negritude, sabe, é muito forte. Eu participei de vários grupos de estudo sobre a questão dos negros, das mulheres negras, da desigualdade, e isto era muito forte. O grupo de teatro Raiz da Liberdade, eu assisti uma peça que eles fizeram que aquilo foi uma punhalada, sabe. Aquilo que a gente discutiu outro dia, no nosso grupo de estudos, sobre branquitude, eu aprendi na marra, na marra, na dor, que mesmo pobre, o fato de ser branca me trazia privilégios mesmo na pobreza. Então assim era esse... eu quero te dizer que tudo o que eu fiz foi aprendizado coletivo, tudo, tudo. Agora eu tinha uma facilidade de aprender, de articular o conhecimento, comecei a ser convidada para ir pra fora, pra falar.

Atuação nas Pastorais[editar | editar código-fonte]

Dentro da igreja passei de ser participante pra ser de grupo de formação. Passei a andar pelo Rio de Janeiro trabalhando com mulheres, trabalhando com trabalhadores, trabalhando com o pessoal que tava preparando a Pastoral da Criança, sabe, e o tema que eu trabalhava sempre era fé e política. Mas, por exemplo, vou te falar, com o pessoal da Pastoral da Barra da Tijuca, Pastoral Operária e a Pastoral da Cidade de Deus, trabalhei muitos anos visitando as churrascarias na Barra da Tijuca, que traziam jovens do Rio Grande do Sul, que viviam como escravos nos alojamentos. A gente invadia os alojamentos e discutia com eles todo direito, e na construção civil, na Barra da Tijuca, a gente invadia à noite, entrava escondido, enfrentava vigia. Ia lá no alojamento mostrar como eles tavam sendo explorados e estabeleceu um polo, né. E a gente fazia contato com as famílias que estavam no Rio Grande do Sul e o pessoal da construção civil, no Nordeste. Então, sabe, quem tava na Pastoral Operária na Cidade de Deus era um grupo de pessoas. Na Barra da Tijuca eram professores da PUC, sabe, então assim, era tudo junto e misturado. (RISOS) Era multidisciplinar, Inter setorial. A gente discutia também, tem uma marca...na Cidade de Deus, a gente não se articulava assim, pra fora, politicamente, era muito lá dentro, a Pastoral é que tinha essa questão da igreja ser universal, não é a Igreja Universal do Reino de Deus, mas o mundo, né, que é o espaço da igreja, então a gente saía para fora, mas politicamente a gente ficava mais fechado. Não sei se isto fez com que a gente contribuísse para o isolamento da Cidade de Deus, sabe, porque ela é um gueto até hoje diante da Barra, Freguesia, Pechincha, Tanque, Barra da Tijuca, Recreio. A gente viu toda essa área se desenvolver e a Cidade de Deus se transformou de um conjunto habitacional para uma refavela. E talvez porque nós nunca fizemos muita articulação pra fora. Grupo de teatro ia pra fora, passava o diabo e faziam muito sucesso, mas não trazia essa articulação pra um debate mais amplo, pra o que hoje se acredita, na importância da rede, das articulações, das teias, onde você discute com outras comunidades. Por outro lado, nós fomos pra vários lugares, no país e no mundo, falar da nossa experiência, entendeu, e eu fui uma das pessoas que era escolhida pra ir. Então fui pra Angola, pra Quênia, fui pro Canadá, fui pra Guatemala, fui pra várias experiências internacionais levando o que a gente pensava do mundo. Embora a gente ficasse no gueto, a nossa luta era articulada com o que a gente achava que deveria transformar no mundo para que a gente não fosse tão pobre.

A costura entre luta e comunidade[editar | editar código-fonte]

É muito interessante porque num primeiro momento as pessoas tinham medo de mim. Eu conseguia dialogar muito com os jovens, mas havia coincidências, por exemplo, um padre conservador foi pra Cidade de Deus e acabou com várias pastorais, inclusive a do negro, da juventude, do operário, da empregada doméstica, esse pessoal veio todo para a militância política, né, porque perdeu espaço na igreja e vem todo pra militância política. A minha casa era uma referência. Aí as outras mães que viam como é que eu aglutinava, achavam que eu era perigosa. Depois que conheciam, que eu era uma dona de casa, que eu fazia comida, que eu fazia pudim, sabe, que eu fazia couve picada na mão, essas coisas que você vai conversando de dona de casa, que eu procurava também comprar a comida mais barata, essa coisa de dona de casa, de pessoa na vida mesmo que todo mundo tem que enfrentar, que vai pra fila no postinho, que dá vacina do filho no postinho, vai trazendo as pessoas, mas a gente nunca conseguiu atingir a maioria. O grupo que se organiza e reflete numa comunidade não consegue atingir a maioria, porque a medida que a gente vai articulando, uma coisa muito séria isso, a medida que a gente vai articulando os conhecimentos, a gente vai ficando com o conhecimento além, sabe, e aí você tenta mobilizar gente com o conhecimento além também. A gente vai perdendo um pouco esse foco de que nem todo mundo na comunidade entende as coisas do jeito que a gente entende, sabe, esse erro a gente cometeu. Se bem que eu sou uma pessoa muito de base, muito cuidadosa com isso, sabe, sempre, sempre me coloco em qualquer lugar que eu estou. Na vida eu me coloco do ponto de vista de quem tem o conhecimento na média. Tenho uma linguagem fora dos bordões da esquerda, sabe, que concebe a realidade de acordo com os mitos, folclore, a cultura que vem, e que isso tem que ser considerado, não é. Pra mim não é a academia que pauta a vida. Ela pode contribuir, sabe, e se ela não tiver vinculada a uma realidade muito na base ela perde seu papel na história da humanidade.

Plano de Desenvolvimento Comunitário Cidade de Deus.
Plano de Desenvolvimento Comunitário Cidade de Deus.

Então valorizar as pessoas que estão começando, possibilitar que elas tenham oportunidade de ir, de aprender, de viajar, sabe. Não disputar com ela o lugar, isso tudo é um aprendizado e um cuidado que eu tenho e que ajuda o grupo. Sempre ajudei o grupo. Ah, outras coisas também, nós fizemos coisas muito audaciosas na Cidade de Deus. Por exemplo, quando o Lula foi eleito, nós organizamos um debate, né, estabelecemos as questões estruturantes que dependiam do governo federal, não é, fizemos uma comissão e fomos pra Brasília, passar dois dias em Brasília, e passar de ministério em ministério para colocar nossa pauta política, sabe, falar com o ministro. É claro que nós conseguimos vinte por cento daquilo que a gente queria e pensava, mas nós fomos lá, sabe. O segundo passo eles tiveram que ir na CDD [...]. Nós aceitamos, por exemplo, a construção de 618 casas que a gente conseguiu negociar com a Caixa Econômica Federal e repassar o dinheiro pra prefeitura, a gente não pode fazer a gestão, mas a gente ficou com o controle da negociação com a construtora, com a prefeitura, com a Caixa, tudo, e a gente descobriu todas as articulações que passam por baixo dos panos dessa força política da construção, entendeu. Então e, é um aprendizado assim, qual é a articulação com os moradores nesse momento? As duas meninas que eram da comunidade que tavam fazendo Serviço Social e que foram contratadas junto comigo, elas assumiram a direção do projeto. Eu fiquei como auxiliar. Elas eram da comunidade, tinham que ter mais voz, mais peso político e a possibilidade de aprender no processo.

A pedagogia de Paulo Freire[editar | editar código-fonte]

Então meu vínculo na Cidade de Deus, nesse sentido, foi de fazer valer uma norma, uma norma não, um ponto da metodologia do Paulo Freire, né, o ser mais no outro, sabe. Sempre reconhecer que o outro é capaz. Sempre, sempre, sempre. O outro é capaz, ele tem que assumir, se ele errar ele vai aprender com isso. Faz parte. O outro tem que assumir a responsabilidade, o direito da fala, da palavra. Pra não ser assim muito injusta comigo mesma, uma coisa que eu levei forte no meu processo na Cidade de Deus foi ter passado pelo processo de aprendizado do Paulo Freire, porque eu fui alfabetizadora na adolescência usando o método do Paulo Freire, entendeu. E pra ser alfabetizadora eu fui alfabetizada politicamente, né, então, porque era na igreja, passamos pelo processo do método entre nós, e o despertar veio daí.

Cleonice em roda com companheiros.
Cleonice em roda com companheiros.

Eu carrego essa marca, sabe, pra vida, e levei isso com muita força na Cidade de Deus, muita força. Eu colaboro para que as coisas sejam decididas coletivamente, que as pessoas que acham que não sabem possam falar o que elas sabem, né, juntar a academia com a comunidade. Garantir que tenham espaços iguais para poder fazer um novo conhecimento, eu acho que essa foi uma contribuição que eu levei, sabe. No mais, viver a liberdade. Sabia que eu não tenho medo de andar na Cidade de Deus? Eu não tenho medo de andar nas favelas? A não ser que tenha tiroteio, que eu não sou boba, sabe. Não tenho medo porque eu sei a trama de resistência, de força, de vigor, de garra das pessoas, o quanto os trabalhadores têm que lutar pra viver com dignidade, o quanto a juventude sofre de discriminação, sabe, o quanto são explorados nos subempregos, nesses projetos todos que dizem que tão dando chance aos jovens, mas que estão explorando. É o mesmo capitalismo, sabe, é o mesmo capitalismo, que vai atuando de acordo com a resistência (RISOS). Quanto menos resistência, mais submete.

Refavela[editar | editar código-fonte]

Se eu falar em algum lugar na Cidade de Deus que a Cidade de Deus é favela, eu posso até apanhar, porque tem gente que não aceita e diz que é um conjunto habitacional. Se eu for em outra área e falar que é um conjunto habitacional, as pessoas reagem porque dizem que é bairro, porque é bairro desde 1998, certo. Mas o centro é bairro, o centro, as áreas mais pobres de periferia e as favelas, que estão no entorno, são favelas. Tem um grupo que aprendeu um conceito que a gente aplica, que é refavela, tá na música do Gilberto Gil, Refavela. A gente chama de Refavela.  O que que é esse lugar? É um lugar que foi feito pra receber o pobre, que foi colocado no processo de limpeza do Rio de Janeiro distante do centro de desenvolvimento, num bairro que era destinado à colônia de loucos, do pessoal que tinha hanseníase e dos tuberculosos, portanto a Zona Oeste da doença, no lugar dos pobres, e que foi crescendo esse lugar, essa Zona Oeste, por causa da Barra da Tijuca, por causa do Recreio. Foi sendo o centro do desenvolvimento ao mesmo tempo que como espaço de estoque de mão de obra barata, foi continuando pobre, não é, foi empobrecido, porque nenhum investimento foi feito na infraestrutura. Ela ainda tem a infraestrutura original do saneamento de esgotamento sanitário condominial, os canos ainda são de ferro, passam nos quintais. Aí os moradores ampliaram suas casas e cobriram as caixas de esgoto. Então é toda ela inundada no esgoto, né. Aí o esgoto que ia para uma lagoa aeróbia vai direto pro rio, quando o rio enche o esgoto volta pra casa, pelo vaso sanitário, né. Tem só uma escola, desde a origem, de ensino médio, com 150 vagas no curso noturno de contabilidade e tem 26 turmas [...], portanto, quem quiser estudar na adolescência tem que sair do bairro. Isso é desde a origem, há mais de 50 anos. Então o estado reproduz lá o funil, que faz a mão de obra barata estar a serviço do sistema. Nós temos todas as adequações que foram feitas pro serviço de saúde, no entanto, nós temos uma população invisível, que se o IBGE conta só o bairro ele ignora as favelas, e tem mais de 28 mil moradores invisíveis, e isso implica numa demanda para o serviço público que bate recorde, mas não resolve a questão. Com a mudança da força do transporte lá era ponto final de várias linhas que conectavam a Cidade de Deus em vários bairros, mudaram os pontos, passou a ser espaço só de transição, né, e os moradores foram prejudicados na única vantagem que tinham, né. Não tem o título de propriedade a maioria, e essa vulnerabilidade está ligada a uma ideia de que, se um dia precisarem desse espaço, vai ficar muito fácil tirar os moradores, porque eles não têm garantia nenhuma, a não ser a própria resistência. A resistência que não vai deixar tirar. A Trans Olímpica não passou pela Cidade de Deus e o VLT por causa da força da Cidade de Deus, que se não, tinha passado. A Linha Amarela já tirou uma parte dos moradores, né.

Resistências[editar | editar código-fonte]

O que que é a Cidade de Deus? É um espaço de resistência contra o capitalismo, sem precisar dizer que é contra ele. Contra a especulação imobiliária, sem saber o nome dos especuladores. Contra a manipulação e o uso indevido do transporte pro lucro. Contra o processo de desarticulação da educação pra produção de mão de obra barata. E apesar de tudo, tem jovem se organizando, tem movimento cultural de identidade, tem movimento de consciência racial, tem movimento de mulheres jovens. Assim como cresceu também o fundamentalismo pentecostal, que por sua vez faz todo um trabalho de aceitação das contradições, e tem os cultos afro que fazem um tipo de resistência também, com fundamentação na história e na identidade. Quem é a Cidade de Deus? Uma escola de lutas. Uma escola de amorosidade. Um lugar de solidariedade. E um lugar perigoso, porque tem uma importância grande na estrutura do tráfico de drogas. E a Cidade de Deus tá envolvida na articulação do Comando Vermelho. Uma das lideranças do Comando Vermelho, que foi preso na Ilha Grande e conviveu com o pessoal de esquerda, era morador da Cidade de Deus. Ele foi assassinado na Ilha Grande porque ele não concordou com uma proposta que desrespeitava os moradores, então ele foi assassinado. Então toda essa resistência e essa luta, que não é da maioria, é de parcela da Cidade de Deus, convive com essa contradição da força e de ter assistido à estruturação do tráfico como um grande negócio lucrativo, sabe. A gente viu, de perto, essa contradição, o envolvimento do tráfico com a polícia. A disputa da polícia com o tráfico e a milícia. A Cidade de Deus é a favela no Brasil, é a desigualdade, é a injustiça, é a periferia, não é? É o avesso das contradições do capitalismo no nosso país, que tem uma Barra da Tijuca, um Recreio dos Bandeirantes onde os empresários colocam toda a sua força, o estado serve os empresários nos seus ideais, urbanizando, colocando tudo bonitinho, e a gente percebe que, embora pagando imposto proporcionalmente maior do quem é rico, porque os ricos estão espalhados e os pobres estão condensados, a gente não tem acesso a direito. Não tem acesso a direito. Nós somos a fotografia da desigualdade.  Temos algumas questões históricas de identidade, mas somos iguais aos outros. Qualquer lugar do Brasil que é usado como estoque de mão de obra, o território é usado como estoque da especulação imobiliária, e tem as forças que são pra o enfrentamento e as forças que são pra reprodução.

Lembrança das companheiras[editar | editar código-fonte]

[...] Eu convivo muito no ambiente da academia, né, muito. E é muito comum as pessoas citarem pensadores pra poder reforçar uma ideia, dizer que ela está fundamentada numa pesquisa, e tal. Eu posso citar o tempo todo da minha fala pessoas que são, que foram importantes e que trazem verdades, sabe, e que eu trouxe e que coletivamente nós absorvemos e passou a ser nosso porque conhecimento é isso, ele contamina, né, ele passa a ser coletivo, mas tem pessoas assim, maravilhosas. Da igreja, os padres, que estavam com a gente na luta, né. Nós tivemos um padre que era, ele era motorista das nossas mobilizações, e ele ficava com a gente lá, de chinelo, de short, aí quando o governo errava muito a mão pra ser agressivo com a gente, a gente dizia “padre, o senhor tá ouvindo? ”, aí o governo mudava na hora. (RISOS) Padre Júlio que celebrava no meio do nada, sem igreja, mostrando o que que é a verdadeira igreja. Eu tenho nesse aprendizado, não é meu só não, de um grupo, Pastor Barbosa e alguns pastores que tavam na luta com a gente, sabe. Teve um pastor que chegou recentemente lá da Bahia, sabe, que todo lugar que a gente ia na reinvindicação ele ia junto. Ele não se identificava como pastor. Ele tava ali com a gente. Ele dizia que isso dava sentido à fé dele, sabe, que é uma postura diferente do que a gente as vezes acusa e tal. Tem umas mães de santo que tavam na luta com a gente, sabe, Obássi, nossa, que mulher! Na luta, discutindo, indo, garantindo presença, chamando as pessoas pra tá junto, porque tem reunião que é muito importante ter número pra você impressionar, então a Obássi fazia esse papel. Mas moradoras, sabe, moradoras que vieram do Nordeste, que já tinham sido expulsas da terra, que moravam no campo, que perderam suas casas, homens, sabe.

Cleonice e Nísia no lançamento do Dicionário de Favelas Marielle Franco, na Fiocruz, em 2019
Cleonice e Nísia no lançamento do Dicionário de Favelas Marielle Franco, na Fiocruz, em 2019

Mas no meu caso assim eu aprendi mais com as mulheres, sabe, Diléa que tinha treze filhos rapaz, treze filhos! Ela ia em todas as reuniões, todas. Depois tocou o marido de casa porque ele queria mais filhos, mas não tinha dinheiro, tava desempregado, sabe. Ela tava na luta de habitação, era coordenadora da quadra dela, trabalhava, criava os filhos, sabe. A Sandra (Sandra Rosa), ai que saudade, vai me dar vontade de chorar. A Sandra quando começou com a gente percebeu que tinha que estudar, foi até o segundo grau. Quando ela não entendia, ela anotava tudo, depois ela ia pro dicionário pra saber aquilo que a gente tava discutindo, sabe, até que um dia ela falou e a gente prestou mais atenção nas palavras que usava. Mas aquele povo que veio de fora, que trouxe, eu lembro de cada um. Seu João, Dona Severina, Dona Zuleide, assim, que que a gente foi aprendendo de cada uma, sabe.

Aprendizado com a juventude[editar | editar código-fonte]

Eu teria aqui uma infinidade de pessoas para te citar, mas jovens também, aprendi muito com os jovens, muito, muito. Aí já é uma coisa minha. Não posso garantir que meus companheiros de luta aprenderam, mas nossa, jovem de favela é um negócio forte, porque tem uma língua que corta. Então quando a gente é incoerente, nossa mãe. Eles jogam na cara assim, você não tem pra onde sair. Ou você reflete, aprende, então aprendi muito com os jovens. Sou marcada por eles. Aprendi muito com umas meninas que tinham ódio de ser negras, ódio, tinham vergonha, não se aceitavam. Também aprendi pelo lado negativo, sabe. Então eu pensava assim, como é que nós podemos fazer pra mudar isso, elas sofriam, sabe. Aprendi com meninas prostitutas. Nessa luta da casa a gente encontrou muita menina dormindo em casa durante o dia, mas que não ia na reunião. Quando a gente foi cobrar participação elas explicaram que elas eram prostitutas. E aí você vai ter uma leitura do que é a prostituição e do que é a prostituta explorada na pobreza, geralmente por casas noturnas da milícia. Olha, tem tanta coisa. Eu encontrei um cara, de 44 anos, negro, homossexual, que trabalhava lá na Gávea, numa daquelas, sabe, que não tinha documento rapaz! Não tinha uma... Como é que esse cara sobrevivia? Ele só podia trabalhar à noite. Mas o que que ele já passou na mão da polícia, sabe. Mas ele ia montado, então ele ia como mulher. Talvez não tenha passado tanto, né. Mas assim, e você perceber que a dignidade do ser humano tá acima dessas questões, mas precisa disso, de resolver. Nós fizemos com ele um passo a passo e ele depois tirou todos os documentos, sabe, pra ser dono da casa. Então, assim, essas são as minhas referências, sabe, é quem eu posso citar numa reunião. Às vezes eu não tenho coragem de fazer isso que pode parecer ironia. Tem mais de quinhentos nomes.

Contradição[editar | editar código-fonte]

E eu fui pra fora, sabe [...], não fiquei só na luta da Cidade de Deus. É claro que eu participei das lutas de outras articulações, de outros grupos, mas eu nunca saí da base, eu nunca desvinculei, né. E tem uma coisa que eu vou te falar, pode ser errado, pode ser certo, eu fui escolhida durante onze anos para ser porta voz de um grupo na Cidade de Deus, pra discutir com o governo. Então a gente combinava, eu colocava a proposta de forma mais radical, tinha quem ia fazer a mediação, tudo combinado, até quem ia fazer os acordos, que o governo nunca faz aquilo que a gente tem direito, mas a gente também não pode jogar fora a possibilidade de fazer alguma coisa, porque não é pra nós, é pro morador. Durante onze anos eu fiz e cumpri esse papel e eu percebia que era uma forma da comunidade dizer assim, a gente confia em você. Porque mesmo eles me acolhendo, hora ou outra eles diziam assim: Você é estrangeira, você veio de fora, sabe. E hoje eu entendo perfeitamente quando os jovens da militância, hoje, dizem quem é raiz, não é, quem é raiz. Porque há possibilidade da gente, que veio de fora, tomar o lugar da palavra. Eu acho que essa foi uma contradição. Durante onze anos eles me deram o direito de falar em seu nome. Isso é uma contradição. Eu não deveria ter aceitado, sabe. Eu nunca deveria ter aceitado. Porque hoje os jovens estão dizendo oh, não vem não, é só quem é raiz. E isso tem um simbolismo muito grande, um significado muito grande, sabe, que é o lugar da fala. A importância da palavra devida. Pronto.

A alegria como resistência[editar | editar código-fonte]

Vou te dizer assim, eu sei fazer um discurso extremamente radical, sectário, se precisar, no sentido de ir fundo na raiz com as palavras certas. Eu aprendi na Cidade de Deus que você deve considerar a vida, a realidade das pessoas, a subjetividade da vivência que elas têm e como é que elas compreendem o mundo. Então a linguagem é essa linguagem da vida. E tem uma coisa na Cidade de Deus que é assim, o povo é resistente e alegre, é um desaforo a alegria das pessoas, gostam de música, de uma multiplicidade de gostos, é bem eclético. Gostam de ouvir música alta. Tem gente de todas as religiões. Então assim, o que que marca essa comunidade, sabe, o que que marca? Como é que ela resiste se ela não tem uma base de estrutura de resistência? São várias resistências, né. Resiste no futebol, resiste na capoeira, resiste no judô, resiste no grupo de teatro. O teatro do jovem é uma coisa e tal. A igreja mais antiga, mais tradicional, resiste de um jeito, mais jovens resistem de outro. Como é que você compreende essa resistência? No caso da Cidade de Deus tem várias questões que fundamentam isso, que estão na memória da comunidade, certo? Vieram de cinco favelas, grandes favelas, e de 57 pequenas favelas. Foram misturados quando na favela eles faziam resistência, faziam oposição, estavam votando na esquerda. Então vem a Ditadura e uma das formas de tirar força dessas favelas foi misturar e colocar num conjunto habitacional, onde eles estão próximos demais, mas desunidos, certo. Depois o tráfico veio na década de 70 e divide a comunidade em quatro áreas, e proíbe os moradores de circular. E aí o governo vem e negocia com as associações de moradores, quem é do partido tem, quem não é do partido, não tem. E começa a fazer ações pontuais.

Então, se não é a memória, se você não ouve a oralidade, as histórias, se você não compreende, você não dá conta de perceber a multiplicidade de resistências que tem numa comunidade. Porque senão você pode falar assim, é só o pessoal do partido político que resiste. Isso não! Quando as mães se reúnem e uma mãe é crecheira, pra que as outras possam trabalhar, e não tem creche suficiente, ela tá fazendo resistência, porque ela tá buscando a sobrevivência com um pouco de dinheiro das mães, mas ela tá possibilitando que as mulheres possam sair. Não tem creche suficiente, nunca terá, certo. Então assim, a leitura de como a comunidade resiste, a leitura de que a alegria faz parte de um processo de resistência, que o futebol, a cerveja, não é alienação, você só vai compreender se olhar a origem, não é, os vínculos que as pessoas estabelecem, o que que elas trazem da história. A memória é fundamental pra gente entender hoje, sabe, pra gente entender os desafios, pra gente entender a diferença.

Política e afeto[editar | editar código-fonte]

Eu sou tão assim, eu acredito tanto nisso, eu fui uma das primeiras pessoas que busquei a história, pra poder compreender, quando eu achava que as respostas não eram como a gente esperava, não é. Também eu quero te dizer que eu já fiz reunião quando eu fui presidente do conselho de moradores, eu já fiz reunião com mil e quinhentos moradores. Eu tinha um orgulho disso danado que eu fazia sem microfone. Eu achava que eu era foda! (RISOS) Mil e quinhentos moradores, porque a gente tava trabalhando com uma questão vital pra eles que era as casas deles, fazer reforma nas casas mais pobres, nas pontas, naquelas chamadas triagem. Aí eles iam na reunião, porque, porque eles tinham interesse em resolver. Mas se a gente chamasse pra discutir o posto médico, ia cento e cinquenta moradores, entendeu? Atingia todo mundo mas ia cento e cinquenta, porque a casa é maior, na cabeça das pessoas, do que o posto de saúde, entendeu. Pra discutir o esgoto, que tava correndo a céu aberto e tudo, a gente conseguia aglutinar muita gente, porque trazia doença pras crianças, entendeu. Mas assim, eu sempre me perguntava porque as pessoas não se unem, se é uma pobreza só. E aí eu tive que me debruçar nessa história pra poder entender. Eu fui entender que a divisão é um investimento que o governo sabe que tem consequência, porque ele pode promover a desunião, então ela é programada. Como o primeiro vínculo que você estabelece, não adianta, vai ter gente que não vai concordar comigo, mas eu tenho convicção nisso, é afetivo, sabe. Quando eu fui presidente do conselho de moradores e fiquei um ano desempregada, que eu perdi o emprego porque eu fui candidata, os maristas me mandaram pra rua, eu visitava cada morador. Eu era presidente da instituição, eu visitava o morador, sabia quem tava doente, quem tinha operado, quem tava gripado, quem morreu, sabe. Eu andava nas áreas que a gente tinha luta, eu sabia nome por nome de todo mundo, eu estabelecia o vínculo de amizade, o vínculo afetivo ele vem primeiro do que o vínculo da consciência política. Outra coisa, quando a gente tinha um assunto muito difícil pra resolver, de contradição entre nós mesmos, a gente fazia uma mesa, a gente comia junto, cada um trazia um pouco, sabe. A gente usava muito essa técnica pra poder comer junto, porque quando você come junto, você não vai brigar pra resolver problema, você vai dialogar. Então a memória do que você foi no passado te ajuda a entender que futuro você pode construir, sabe. E você sabe as dificuldades e as debilidades. Tem uma questão na memória da Cidade de Deus que foi responsável por muitos erros. A militância comunitária se confundiu muito com a militância político partidária. E a representação dos moradores tinha uma conotação muito mais político partidária, então tinha o pessoal do PT, tinha o pessoal do PC do B, tinha o pessoal do PDT, sabe, tinha o pessoal do PCB. Ao ponto, [...]que uma vez, a gente organizando o congresso da FAMERJ em 1989, eu estava participando, o Almir Paulo estava participando, o Edson Santos estava participando. Eu tava representando no congresso da FAMERJ, olha que erro, o PT, o Almir, o PDT, o Edson Santos tava no PC do B. Nós éramos três diretores do conselho de moradores da Cidade de Deus, estávamos organizando um congresso da FAMERJ, representando três linhas políticas diferentes, olha que coisa. Hoje eu percebo que é um erro. A gente não deveria ter.… e isso acaba refletindo na comunidade, entendeu. Acaba refletindo, as pessoas conseguem perceber. Então o que deveria nos unir é a luta. Teve uma hora que o que nos dividia era o partido. Se eu não tivesse esse olhar na memória, eu não teria essa consciência hoje, entendeu. Então assim, é fundamental, eu acho fundamental a memória de todas as favelas, porque embora seja o mesmo capitalismo, o mesmo neoliberalismo, as mesmas forças que produzem as iniquidades, é a mesma desigualdade, cada uma tem uma história diferente, tem um DNA diferente. De acordo com o jeito que a gente enfrenta, você dá substância à luta ou não, certo. Se você reproduz durante muitos anos sem perguntar o que a gente tá fazendo, você atrasa o processo. É isso.

Ver também[editar | editar código-fonte]

Referências gerais[editar | editar código-fonte]

  1. Graduando em Serviço Social pela Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do Dicionário de Favelas Marielle Franco. E-mail: gabrielnunesnobre10@gmail.com