De "Corações de Pedra" a "Corações de Carne": Algumas Considerações sobre a Conversão de "Bandidos" a Igrejas Evangélicas Pentecostais (Resenha)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco


Resenha sobre o artigo de Teixeira[1], intitulado "De "Corações de Pedra" a "Corações de Carne": Algumas Considerações sobre a Conversão de "Bandidos" a Igrejas Evangélicas Pentecostais, no qual o autor discute o processo de conversão religiosa e a transformação da subjetividade do sujeito enquanto um “ex-bandido”.

Autoria: Luiz Henrique Campos

Sobre[editar | editar código-fonte]

O artigo parte da evidência empírica do crescimento do pentecostalismo entre camadas pobres da sociedade e em regiões com grandes taxas de violência. A partir daí o autor discute o processo de conversão religiosa e a transformação da subjetividade do sujeito enquanto um “ex-bandido”. Para tanto, seu objetivo é compreender o processo social de produção do “ex-bandido” enquanto categoria social e não argumentar de modo avaliativo sobre os ganhos do processo de conversão religiosa pelo sujeito de modo a “desmascarar” este processo.

Cesar Pinheiro Teixeira é professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Vila Velha (PPGSP/UVV). Graduado em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2007), Mestre em Sociologia e Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2009) e Doutor em Ciências Humanas (Sociologia) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2013). Pós-doutorado (FAPERJ) vinculado ao Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da UFRJ (2019) e Pós-doutorado (FAPERJ) vinculado ao Sociofilo - Colaboratório de Teoria social da UFRJ (2020). É também pesquisador associado ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia sobre Violência, Democracia e Segurança Cidadã (INCT/CNPq), ao Coletivo de Estudos sobre Violência e Sociabilidade (CEVIS/IESP/UERJ) e ao Labemus - Laboratório de estudos de teoria e mudança social.

Resumo dos Principais Argumentos[editar | editar código-fonte]

A discussão do autor é baseada em entrevistas em profundidade realizadas com atores que fizeram parte do comércio de drogas em favelas do Rio de Janeiro, mas que posteriormente se converteram ao pentecostalismo, especificamente à denominação Assembleia de Deus. Através da análise da trajetória destes atores a busca está em compreender como se dá a mobilização das categorias “bandido” e “ex-bandido” na vida cotidiana.

O autor entende as categorias sociais não somente enquanto rótulos atribuídos, mas inspirado em Michel Misse (1999), enquanto representações sociais produzidas de acordo com configurações sócio-históricas. O conceito de “sujeição criminal” é mobilizado para discutir o processo de produção dessas categorias sociais e a marcação identitária na construção subjetiva do sujeito. Nesses termos, em diálogo com a distinção feita por Alba Zaluar (1985) entre “malandro” e “bandido”, o crescimento do tráfico de drogas nos anos 1970-80 com a presença da arma de fogo é que constrói a representação social do “bandido” vinculado à violência, ao crime e ao comércio ilegal de drogas alicerçada na “disposição para matar”, diferente do “malandro” que mobiliza habilidades como a lábia, a dança e a luta. O autor argumenta ainda que, a relação entre tráfico e violência na produção da representação social do “bandido” permite uma compreensão que não se restringe à organização do tráfico e seus “envolvidos”, mas diz respeito sobre toda a “organização social da favela”.

A transformação do sujeito em “bandido” se dá através de um processo de subjetivação onde ele se reconhece enquanto tal. Mas há casos em que os “envolvidos” com o tráfico nem sempre “estão dispostos a matar”, e, portanto, não se percebem enquanto “bandidos”. Em situações em que a dinâmica do tráfico e suas hierarquias demandam a postura de um “bandido”, o sujeito é tensionado entre a “verdade de si” e a coerção do grupo no qual faz parte que exige determinado comportamento. Nesses casos, em diálogo com Goffman (1959), o autor argumenta que há o conflito entre a "identidade social virtual" (o modus operandi esperado do “bandido”) e a "identidade social real" do sujeito. A saída do sujeito é "manusear a fachada" e esconder os "bastidores” de modo a “manipular sua identidade”. Em outras palavras, ele manipula as situações para não quebrar “as regras do jogo” e manter as relações e hierarquias, ao mesmo tempo em que busca manter-se fiel à sua "identidade real".

Já nos casos em que o sujeito constrói a “verdade de si” reconhecendo-se enquanto um “bandido” a subjetividade do indivíduo é transformada. Ao invés de “manipular sua identidade” em situações onde exige a “disposição para matar” é como se a “identidade social virtual” e a “identidade social real” se fundissem e a “verdade de si” se enraizasse na percepção de si mesmo enquanto “bandido”.

Após explicar o processo de conversão do sujeito em “bandido” e como tais atores acionam e manipulam essa categoria social, o autor se debruça em explicar a transição do sujeito de “bandido” para “ex-bandido” e sua relação com o processo de conversão religiosa ao pentecostalismo. Seu argumento demonstra que a interpretação do “fechamento com o crime” devido à situação de pobreza, à “família disfuncional” e ao uso de drogas, é remodelada por uma “leitura teológica”.

O pentecostalismo constrói uma interpretação própria sobre a criminalidade e o criminoso, onde a existência de uma “batalha espiritual” permanente entre o “exército de Deus” e o “exército do Demônio” coloca o “bandido” enquanto sujeito dominado por divindades malignas comumente associadas às religiões afro-brasileiras, como a pomba-gira, exu, o preto-velho, etc. Desse modo, o autor argumenta que essa “teoria nativa” coloca a “sujeição criminal” como o domínio do sujeito pelo Diabo, e o processo de conversão religiosa, em suma, significa a salvação do indivíduo que agora faz parte do “exército de Deus”.

Contudo, o autor salienta que, o processo de conversão religiosa não torna o sujeito um “ex-bandido”. O discurso religioso é que ao orientar práticas e as relações sociais estabelecidas pelo sujeito, possibilita a construção do “ex-bandido” pela transformação de sua subjetividade. Por esta ótica, o processo de gestação do “ex-bandido” é atravessado pelas marcas identitárias das categorias sociais “bandido” e “crente”: segundo o autor, é como se o “bandido” fizesse parte da natureza do sujeito e corporificasse em um habitus que sistematicamente necessita ser modificado no cotidiano, e a linguagem fornecida pelo pentecostalismo junto com a modificação das técnicas de uso do corpo são elementos que fornecem base para a constituição de um novo habitus que caracteriza o "ex-bandido". Nas palavras do autor, o processo de conversão religiosa seria “não somente retirar o sujeito da 'vida do crime', mas, sobretudo, tirar o crime de 'dentro' do sujeito” (p. 473).

Por fim, o autor argumenta que a permanência da batalha religiosa entre os exércitos apresenta a construção da “verdade de si” enquanto um “ex-bandido” como em constante ameaça devido à posição de ambiguidade do sujeito que experimenta o crime e a religião. Desse modo, o autor destaca a presença de uma “consciência do risco” no sujeito ao acessar pela memória seu repertório de práticas e relações orientadas por divindades malignas, sob o risco de ser capturado novamente pelo “exército do Demônio” e colocar em risco sua condição de “crente”.

Apreciação Crítica[editar | editar código-fonte]

O trabalho de Cesar Teixeira demonstra e reforça a potência da etnografia ao revelar questões relevantes para a explicação de fenômenos em grande escala, como o crescimento do pentecostalismo nas periferias, anunciado no início de seu texto. Também, permite refutar interpretações que vinculam criminalidade à pobreza destacando a importância da compreensão de “teorias nativas” para explicar questões permanentes do debate público, como a violência, o tráfico e a religião.

Ademais, ao tomar categorias enquanto representações sociais, a elaboração do autor permite pensar o manuseio e o trânsito das categorias “bandido” e “ex-bandido” em distintos contextos que não envolvam diretamente a dinâmica do tráfico de drogas, como por exemplo, a sociabilidade dos jovens no ambiente escolar, conflitos envolvendo relacionamentos amorosos, etc., além da interferência que essas categorias sociais causam em um processo de reconstrução da vida após o crime, tanto nas relações sociais estabelecidas pelos sujeitos, como sua reinserção no mercado de trabalho, quanto para a rede de relações próximas a ele, que carrega o carimbo de se relacionar com esses “tipos sociais”.

Referências[editar | editar código-fonte]

MISSE, Michel. (1999), Malandros, Marginais e Vagabundos & A Acumulação Social da Violência no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. IUPERJ, Rio de Janeiro.

TEIXEIRA, Cesar Pinheiro. (2009), A Construção Social do “Ex-Bandido” – Um Estudo sobre Sujeição Criminal e Pentecostalismo. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

ZALUAR, Alba. (1985), A Máquina e a Revolta: As Organizações Populares e o Significado da Pobreza. São Paulo, Brasiliense.