De Periferia a Quebrada - Palavras, Saberes e Lutas

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Este verbete reproduz as informações do texto "De Periferia a Quebrada: Palavras, Saberes e Lutas" publicado no blog Outras Palavras, que contém autoria de Anderson Kazuo Nakano e Thiago Andrade Gonçalves.

Autoria: Informações reproduzidas pela Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco. Fonte: Outras Palavras[1]
Foto: Bea Souza / Festival Foto de Quebrada

Sobre[editar | editar código-fonte]

Tornou-se comum, para muitas pessoas, apresentarem-se como originárias da periferia ou da quebrada. Isso ocorre, por exemplo, em campanhas eleitorais, práticas culturais, palestras, conferências, mídias, redes sociais, vídeos e debates públicos. As intenções por trás dessa atitude são variadas e abrangem, por exemplo, a vontade de mostrar o lugar a partir do qual se fala e se manifesta. Dentre essas intenções pode haver um certo desejo de ser reconhecido como alguém da periferia e da quebrada para obter algum tipo de aceitação, vantagem e legitimidade.

Colocar-se como alguém da periferia e da quebrada não é simples e merece atenção, pois tem conotações políticas relacionadas com a busca por justiça socioespacial plena. São conotações que expressam valores coletivos constituídos em trajetórias de vida traçadas em meio à presença de muitas palavras, saberes e lutas. Trajetórias de resistência perante dificuldades superadas com persistência existencial. Resistência contra preconceitos, discriminações, estigmas e exclusões sociais que marcam a periferia e a quebrada como locais caracterizados pela desordem, violência, crime, pobreza, segregação e precariedade, dentre outros. Os encontros entre palavras, saberes e lutas na periferia e na quebrada são indissociáveis das trajetórias e experiências de vida.

Decerto, o valor de ser da periferia e da quebrada está sendo reconhecido com frequência cada vez maior por causa do movimento e da efervescência atual. Algumas vezes, esse reconhecimento torna-se manipulação mercadológica, realizada por agentes externos às realidades da periferia e da quebrada. A despeito disso, em meio à manipulação há resistência e criação de sentidos e significados enunciados em agenciamentos¹ diversos praticados, por exemplo, nos espaços da política, da cultura, da arte, da literatura, do encontro, da comunicação, do trabalho, do consumo, do lazer, do deslocamento, da moradia, do relacionamento, dentre outras esferas da vida pública e privada. Isso faz com que a vida na periferia e na quebrada seja bastante complexa e difícil de encaixar em classificações simplificadas.

Os agenciamentos práticos e de enunciação da periferia e da quebrada transcorrem nos espaços sociais, domésticos e da intimidade que, atualmente, aparecem tanto no domínio público quanto privado. Quais são os sentidos e significados enunciados nos discursos e nas expressões desses agenciamentos da periferia e da quebrada? Como dar a ver as práticas e os enunciados produzidos nesses agenciamentos? Quais elementos usar para mostrar os agenciamentos práticos e de enunciação da periferia e da quebrada?

Neste ensaio buscamos responder brevemente essas perguntas tentando mostrar os encontros entre palavras, saberes e lutas agenciadas na periferia e na quebrada em ações e enunciações que expressam resistências e existências voltadas para a busca pelo ter (melhores condições de vida) e pelo ser (reconhecido como força política coletiva). Assim, a seguir oferecemos breves comentários sobre as palavras, saberes e lutas da periferia e da quebrada para e sobre o manifesto do Encontro das Periferias, de autoria coletiva do Encontro das Periferias de São Paulo Capital.

De Periferia a Quebrada[editar | editar código-fonte]

As palavras “periferia” e “quebrada” referem-se a realidades socioespaciais urbanas produzidas pelo capitalismo industrial dependente que se expandiu no Brasil a partir da década de 1930. Desde a sua origem, o capitalismo industrial produz espaços urbanos com formas-conteúdos socioespaciais que agregam os meios e os modos de produção e de consumo de mercadorias baseadas em processos e relações exploratórias de poder, disciplinamento, controle e dominação da classe trabalhadora. Por várias razões, membros dessa classe são forçados a viver na periferia e na quebrada urbanas. Estas, portanto, são produtos dos processos e relações exploratórias capitalistas. Esses processos e relações são atravessados por forças que produzem as desigualdades e segregações socioespaciais as quais são generativas das lutas urbanas que, de alguma maneira, criticam o capitalismo e portam vetores anticapitalistas. Essas lutas urbanas podem ser classificadas em:

– Reivindicativas – quando seus agentes demandam ações públicas junto ao Estado para a promoção de provisões e de providências que melhorem as condições de vida coletiva e garantam a efetivação de direitos e proteções sociais;

– Afirmativas – quando seus agentes expressam orgulhosamente suas potencialidades existentes nas formas de vida constituídas em agenciamentos atravessados por desejos de singularizações individuais e coletivas.

Há hibridismos nas lutas urbanas que se contrapõem aos processos e relações de exploração capitalista. As lutas urbanas reivindicativas e afirmativas são macro e micropolíticas. Na cidade de São Paulo, epicentro do capitalismo industrial dependente brasileiro e do atual capitalismo financeirizado global, essas lutas urbanas mostram que os significados da periferia são diferentes dos significados da quebrada. Mostram a re-significação da periferia como quebrada.

Apesar do uso recorrente dos termos “periferia” e “quebrada” como sinônimos um do outro, é possível assumir que seus significados e pontos de vista são diferentes. Ambos se referem às mesmas realidades urbanas nas quais vive e sobrevive a maior parte da classe trabalhadora das cidades brasileiras; Porém nossa hipótese distingue esses termos da seguinte maneira: enquanto o termo “periferia” possui significado associado às realidades urbanas denunciadas a partir de um ponto de vista externo, o termo “quebrada” possui significado associado a essas realidades anunciadas a partir de um ponto de vista interno.

Assim, supõe-se que as lutas urbanas associadas aos significados do termo “periferia” são reivindicativas e enfatizam as esferas macropolíticas nas quais as demandas sociais são apresentadas em interpelações junto ao Estado. São lutas urbanas que emergiram principalmente nas décadas de 1970 e 1980 a partir de mobilizações e ações coletivas de moradores dos bairros periféricos organizados em movimentos sociais urbanos que reivindicavam e reivindicam provisões de serviços, equipamentos e infraestruturas urbanas capazes de suprir suas necessidades sociais e melhorar suas condições de vida. Essas lutas se dão no plano macropolítico e se baseiam nas realidades das periferias definidas a partir das denúncias surgidas com as demandas por provisões básicas necessárias para a reprodução da força de trabalho espoliadas pelas destituições, faltas, carências e precariedades urbanas e sociais.

Já as lutas urbanas associadas aos significados do termo “quebrada” são afirmativas e enfatizam as esferas micropolíticas nas quais as manifestações de si expressam singularidades e devires existenciais perante o outro. Singularidades expressas nos agenciamentos de coletivos diversos, organizados ou não em movimentos sociais urbanos que vivem devires mulher, negro, LGBTQIA+, indígena, dentre outros. São lutas urbanas que afirmam formas de vida que agenciam forças existenciais de singularização de si perante o outro, que é visto como desigual e diferente. Essas lutas urbanas da quebrada almejam algo a mais no plano existencial e vivencial. Algo que está além do básico necessário para a reprodução da força de trabalho e que se expressa no plano micropolítico das quebradas em modos de vivências, convivências, escrevivências, encontros, pertencimentos, territórios existenciais, festas, saraus, slams, bailes funk, rodas de samba, ajudas mútuas, economias solidárias, culturas, artes, literaturas, dentre outras potencialidades coletivas.

Vale dizer que, nessas lutas urbanas, a ênfase em macropolíticas não elimina as micropolíticas e vice-versa. Pelo contrário, as lutas urbanas da periferia e da quebrada se encontram nos planos macros e micropolíticos simultânea e dialeticamente.

A palavra “periferia”, consagrada nos estudos urbanos elaborados em âmbitos acadêmicos por pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, principalmente a partir da década de 1970, refere-se a processos relativos à urbanização, analisados nas perspectivas críticas sobre o desenvolvimento desigual do capitalismo industrial dependente do Brasil e da América Latina. É, portanto, uma palavra usada externamente àquelas e àqueles que vivenciam as experiências periféricas concebidas predominantemente a partir do movimento pendular diário entre o local de trabalho e de moradia, entre o centro e a periferia.

A palavra “quebrada”, consagrada nas expressões das pessoas que vivenciam cotidianamente as necessidades de resistir e persistir na existência, refere-se a formas de vida com potencialidades políticas mobilizadas em processos de singularização e expressão de si na relação dialética com o outro. Trata-se de formas de vida coletiva concebidas a partir da ligação e do pertencimento com lugares de vida e territórios existenciais e experimentadas para além do mundo do trabalho. São formas de vida coletiva criadas a partir de vínculos com os locais de moradia que são, muitas vezes, locais da quebrada onde o morar e o circular se misturam com o trabalhar. A palavra “quebrada” aparece, quase sempre, como “minha quebrada”.

Diante das colocações feitas anteriormente, não é nem um pouco descabido propor que a Secretaria Nacional das Periferias, integrante do recém recriado Ministério das Cidades, venha a ser denominada como Secretaria Nacional das Periferias e das Quebradas.

O Encontro das Palavras, Saberes e Lutas no Manifesto das Periferias [e das Quebradas][editar | editar código-fonte]

Após meses de preparações e agenciamentos realizados ao longo de 2023 e 2024, nos quais foram realizados encontros em diferentes locais da cidade de São Paulo, ocorreu em 25 de agosto de 2024 o Encontro das Periferias. Nesse dia foi lançado o Manifesto das Periferias composto com as contribuições colhidas nos encontros preparatórios. Esse Manifesto é um documento que busca pautar direitos e voz política para as comunidades marginalizadas. O texto contextualiza a histórica exclusão social que formou cortiços e favelas na cidade, destacando como a atual ascensão da direita e do fascismo trouxe retrocessos em políticas sociais, agravados por crises econômicas, sanitárias e climáticas, afetando desproporcionalmente as periferias.

O Manifesto denuncia a perpetuação da violência estatal e a falta de acesso a serviços essenciais nas periferias, alegando que, mesmo com a democracia formal, esses locais ainda vivem sob uma ditadura velada. Ele defende a importância da organização popular e exige a descentralização da democracia, com mais participação política das periferias e quebradas, além de destacar pautas como educação, saúde, habitação e trabalho digno. O texto propõe ações concretas, como a ampliação da participação popular em decisões políticas, a defesa de políticas públicas inclusivas e o fortalecimento das culturas periféricas como formas de resistência e voz política, convidando grupos e organizações a se unirem em uma luta contínua por justiça social e pelos direitos das comunidades marginalizadas.

Esse Manifesto possui seis partes cujos títulos são: Contexto Histórico; Democracia em Crise; Manifesto Geral; Nossos Princípios; Pautas Prioritárias; e Chamado para a Ação – Levante Periférico por Direitos e Voz Política. O texto do Manifesto é um verdadeiro encontro de palavras, saberes e lutas que merecem ser destacadas e analisadas nas perspectivas macros e micropolíticas, entendendo as similitudes e diferenciações agenciadas nas lutas urbanas da periferia e da quebrada.

Apresentado o contexto histórico e sociopolítico brasileiro das periferias e quebradas e do surgimento do Manifesto, o texto avança para o detalhamento dos princípios norteadores das ações e pautas prioritárias do movimento. Na parte “Manifesto Geral” do texto evidenciam-se os aspectos das lutas urbanas afirmativas associadas aos significados do termo “quebrada”, enfatizando mais as esferas micropolíticas do que as macropolíticas nas subpartes: “A ditadura nunca acabou nas periferias!”; “Unidos somos fortes e organizados podemos ser imbatíveis!”; e “É hora da voz periférica ecoar!”. Essas lutas urbanas afirmativas com ênfase na esfera micropolítica são expressadas sobretudo na caracterização do embate entre agentes internos e agentes externos às quebradas em trechos como “algumas lideranças locais se vendem por migalhas, enquanto políticos tiram fotos nos campinhos da quebrada, fazem “safari” pelas favelas, comem pastel, fingindo se importar; depois somem, e voltamos ao costumeiro abandono, com o qual, já vivemos há décadas”. E “a extrema direita rouba o conceito de família, ao qual, nas quebradas conhecemos das vovós, das ‘mães solo’ e dos pais desertos”. Também é expressada diante da constatação de que “nas quebradas ainda sentimos uma ditadura velada”, o que remete a realidade de repressão e impossibilidade do desejo de agenciamento prático e de enunciação cultural e existencial. Apesar de bloqueado, esse desejo intersubjetivo é convocado para proporcionar a criação de “memória coletiva, expandirmos a consciência e as potências locais, nos reconectando com nossas origens”.

Na parte sobre “Nossos Princípios”, é notável a quantidade de princípios que remetem às lutas urbanas reivindicativas associadas aos significados do termo “periferia” que enfatizam as esferas macropolíticas. Nessa parte, é menor a presença de princípios que remetem às lutas urbanas afirmativas associadas aos significados do termo “quebrada” que enfatizam as esferas micropolíticas. Nesse sentido, é possível elencar que os princípios que tratam mais das lutas urbanas reivindicativas que enfatizam as esferas macropolíticas se encontram nas subpartes: “Democracia sem cidadania é ditadura”; “Resistir para viver, se unir para avançar”; “Sozinho nunca, coletivo sempre”; “Maloqueiro sim, excluído não”; “Políticas de álcool e outras drogas”; e “Três T`s: teto digno pra viver, trampo digno pro sustento e tempo livre de lazer”. Esses princípios representam grandes demandas básicas das periferias por políticas públicas necessárias para a reprodução da força de trabalho, enquanto nas lutas urbanas afirmativas que enfatizam as esferas micropolíticas, destacam-se os princípios que se encontram nas subpartes: “Copo totalmente vazio” e “Um bom lugar se constrói com humildade”

Em relação à parte “Pautas Prioritárias” do texto, é possível constatar que todas as pautas apresentadas no documento se referem mais às lutas urbanas reivindicativas associadas aos significados do termo “periferia” que enfatizam as esferas macropolíticas nas quais as demandas sociais são apresentadas em interpelações junto ao Estado e se baseiam nas realidades das periferias definidas a partir das denúncias surgidas com as demandas por provisões básicas necessárias para a reprodução da força de trabalho espoliadas pelas destituições, faltas, carências e precariedades urbanas e sociais. Nesse sentido, todas as pautas prioritárias apresentadas estão organizadas em subpartes que representam grandes demandas básicas das periferias por políticas públicas necessárias para a reprodução da força de trabalho, tais como: Democracia descentralizada; Cultura periférica como voz política; Gênero e Direitos Humanos; Habitação – morar e morar bem; Transportes; Educação popular e periférica; Genocídio, violência e defesa da vida; Infâncias; Saúde e defesa da vida; Trabalho; e Emergência climática.

Por fim, o Manifesto conclui com um “Chamado para a ação – Levante periférico por direitos e voz política” no qual se convida todas as pessoas, grupos e organizações comprometidas com a justiça social e a defesa dos direitos humanos a se juntarem ao Encontro das Periferias. Nesse Chamado, se reconhece que o “manifesto é apenas o início. Nossa luta é contínua e permanente. Sigamos em frente, com coragem e determinação. Pelas periferias, pelo Brasil, pelo futuro”.

Acreditamos que através do entendimento e engajamento nas lutas urbanas reivindicativas e afirmativas das periferias e das quebradas torna-se possível orientar as ações com a finalidade de elaborar um projeto de país e de futuro mais digno para o nosso povo. Um projeto verdadeiramente popular do Brasil, pensado de forma horizontal pelos que detêm os conhecimentos tradicionais deste território: os pobres, os da quebrada, os periféricos e as comunidades tradicionais e marginalizadas. Elas e eles são os portadores do futuro! O único futuro possível para a vida e as existências humanas no planeta Terra. Esse futuro só será construído com pessoas reunidas no Encontro de Palavras, Saberes e Lutas!

Notas[editar | editar código-fonte]

1Entendemos o agenciamento a partir do conceito criado por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997) segundo o qual “[t]odo agenciamento é, em primeiro lugar, territorial” (Deleuze; Guatarri, 1997, p. 218). Para esses autores, “o território cria o agenciamento” (Idem, p. 218) que se divide em “agenciamento maquínico” (o que se faz – conteúdo) e o “agenciamento de enunciação” (o que se diz – expressão). No agenciamento, os que agem criam relações, contatos, conexões e redes em realidades com sentidos e significações – DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia – vol. 5 (tradução de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa). São Paulo: Ed. 34, 1997.

Ver mais[editar | editar código-fonte]