Doce Guerra Antropofagia Religiosa e Resistência na Festa de Cosme e Damião
Autoria: Marlon Manhães
Introdução:[editar | editar código-fonte]
No dia 27 de setembro, as ruas de muitas cidades brasileiras, especialmente no Rio de Janeiro, são tomadas por um movimento peculiar: crianças e adolescentes percorrem os bairros em busca de doces e brinquedos, participando da celebração de Cosme e Damião. Esta tradição, profundamente enraizada no cotidiano da população, envolve mais do que uma simples troca de doces; ela carrega uma complexa carga simbólica, que reflete tanto a devoção religiosa quanto a convivência social e o afeto comunitário. Contudo, esse gesto de generosidade e celebração também se torna o epicentro de tensões religiosas, especialmente no contexto do crescimento e da disseminação do pentecostalismo e suas ramificações. Com o avanço do movimento pentecostal por instituições como a IURD(Igreja Universal do Reino de Deus), as religiões de matriz africana e suas manifestações culturais foram alvos de uma guerra santa proclamada pelos pentecostais.
O avanço do pentecostalismo:[editar | editar código-fonte]
A expansão do pentecostalismo no Brasil, que ganha força desde os anos 1950, reflete-se em um processo de rápida difusão entre diferentes segmentos sociais. A diversidade de denominações e dissidências dentro do movimento – as diversas vertentes do pentecostalismo – permite que ele atinja públicos variados, adaptando-se a diferentes contextos sociais. Esse crescimento é particularmente notável nas camadas socioeconomicamente mais vulneráveis e na classe média baixa, onde as redes evangélicas funcionam como uma estrutura de reciprocidade.
As igrejas oferecem um espaço de acolhimento, criando uma sensação de pertencimento entre seus fiéis, que se apoiam mutuamente em sua jornada espiritual. No entanto, a transformação simbólica do pentecostalismo, em sua busca por adaptação à lógica neoliberal, também se reflete na exclusão de práticas consideradas “mágicas” e na diminuição da dimensão moral, especialmente nas grandes igrejas neopentecostais como a Universal do Reino de Deus (IURD). Nesse novo formato, a igreja se apresenta como um "supermercado da fé", em que o alto clero lidera uma sociabilidade voltada para a gestão religiosa e a busca por resultados tangíveis, enquanto fiéis e obreiros mantêm, em sua vivência cotidiana, a continuidade de práticas e símbolos que ainda preservam a dimensão moral e espiritual do pentecostalismo.
Assim, a expansão do movimento se dá não só pela oferta religiosa, mas também pela construção de uma nova rede social que, ao mesmo tempo, acolhe e transforma as práticas espirituais tradicionais. As atividades cotidianas realizadas durante os cultos pentecostais desempenham um papel crucial na disseminação da ideologia neopentecostal. Ao contrário de um rito puramente ritualístico, essas práticas são concebidas como ações de libertação, em que os fiéis são chamados a travar uma "guerra espiritual" contra as manifestações do mal que se apresentam no cotidiano. O culto, nesse contexto, não é apenas um espaço de devoção, mas uma arena onde a batalha contra as forças demoníacas se materializa de forma tangível, seja na oração, na exorcização ou no uso de objetos e palavras de poder. O "diabo" assume diversas formas na vida das pessoas – como doenças, dificuldades financeiras ou problemas familiares – e é visto como uma força ativa que precisa ser combatida diretamente. Esse entendimento da vida cotidiana como um campo de batalha espiritual contribui para a construção de uma cosmovisão que permeia o comportamento e as escolhas dos fiéis, reforçando o papel central da igreja como agente de libertação. Assim, as práticas religiosas se transformam em mecanismos de controle simbólico, ajudando a consolidar e expandir o alcance da ideologia neopentecostal em diferentes segmentos sociais.
Santa Antropofagia:[editar | editar código-fonte]
O crescimento do neopentecostalismo no Brasil, com destaque para igrejas como a Universal do Reino de Deus (IURD), tem gerado tensões significativas em relação à festa de Cosme e Damião. Igrejas neopentecostais frequentemente associam essa celebração à figura do diabo, utilizando meios como a Folha Universal para alertar os pais sobre os “perigos” de participar da festa. Histórias alarmistas sobre crianças adoecendo após consumir os doces ou sobre rituais espirituais relacionados aos saquinhos de doces reforçam o medo como uma poderosa ferramenta de controle simbólico. Para o neopentecostalismo, o que deveria ser uma festa de devoção e acolhimento é interpretado como uma prática que abre portas para influências demoníacas.
Entretanto, a lógica neopentecostal não se limita à negação. Ao invés de apenas combater, o neopentecostalismo também pratica uma forma de antropofagia religiosa: ele assimila, ressignifica e reinterpreta elementos de outras tradições religiosas. Um exemplo claro dessa prática é a substituição dos saquinhos de Cosme e Damião, usados tradicionalmente nas celebrações, por "saquinhos de Jesus", nos cultos neopentecostais. Nessa troca, o ritual de dar doces é reconfigurado para se alinhar aos princípios do neopentecostalismo, transformando o gesto de generosidade em uma ferramenta de afirmação da fé cristã pentecostal. Essa apropriação não só reinterpreta o ritual, mas também permite que a igreja neopentecostal se aproprie dos espaços simbólicos das religiões afro-brasileiras, realizando um tipo de assimilação que é ao mesmo tempo subversiva e ressignificadora.
A antropofagia religiosa, portanto, não é apenas um processo de negação ou rejeição de outras tradições, mas também de reinterpretação e adaptação desses elementos para os objetivos da expansão religiosa pentecostal. Ao assimilar e ressignificar as práticas e símbolos da cultura afro-brasileira, o neopentecostalismo busca consolidar sua presença nas comunidades, promovendo uma forma de adesão que, ao mesmo tempo, deslegitima a tradição original e reconfigura o significado dos rituais. A prática neopentecostal vai além da mera rejeição e apropriação de símbolos; ela propõe uma nova visão de mundo, centrada na “libertação” espiritual e na luta contra as manifestações do mal. Durante os cultos, a “guerra espiritual” contra as forças demoníacas é uma temática central, e muitos dos rituais neopentecostais invertem simbolicamente práticas de origem afro-brasileira, como as oferendas e as “entradas” espirituais.
Essa inversão de valores, no entanto, pode ser interpretada como uma continuidade velada da tradição religiosa afro-brasileira, adaptada ao novo contexto religioso, mas mantendo seus princípios de batalha espiritual e comunicação com forças superiores. Por exemplo, a prática de “desfazer” o que é considerado “trabalho do diabo” durante os cultos neopentecostais pode ser vista como uma resposta direta aos trabalhos espirituais das religiões afro-brasileiras, ao mesmo tempo que mantém uma continuidade nos mecanismos simbólicos da luta espiritual. O processo de adaptação e transformação das festas populares, como a de Cosme e Damião, é um exemplo claro dessa troca entre tradição e modernidade, onde a festa mantém sua força simbólica, mas se reinventa dentro das novas formas religiosas.
Entre os Anárgiros e falsos profetas:[editar | editar código-fonte]
A festa de Cosme e Damião se caracteriza pela distribuição de doces, um gesto simples, mas repleto de significados, que se estende para além da esfera religiosa, alcançando o cotidiano urbano e as dinâmicas sociais. Em 2019, durante minha observação etnográfica na zona norte do Rio de Janeiro, ficou evidente a forma como a celebração mobiliza diferentes atores sociais, especialmente as crianças e suas famílias, transformando as ruas e espaços públicos em palcos de devoção e também de pertencimento coletivo. Logo ao chegar a um condomínio onde Dr. Lucas Bartolo, pesquisador e participante ativo da festa, reside, a movimentação já era intensa. Crianças de várias idades entravam e saíam do local em busca de doces, muitas acompanhadas por seus pais, em um movimento coordenado de celebração. Essa cena, aparentemente simples, carrega um simbolismo profundo.
O trânsito das crianças da rua para o condomínio desafia temporariamente as fronteiras que separam os “moradores” dos “de fora”, evocando a análise de Roberto DaMatta sobre as categorias de "rua" e "casa", categorias que no contexto da festa se diluem. Durante a celebração, as barreiras simbólicas entre esses espaços parecem ser superadas pela força da tradição, que, ao mesmo tempo, preserva e transforma o espaço urbano. Em outra parte da cidade, em uma praça próxima à Paróquia de São Cosme e Damião, um altar montado e decorado com zelo destacava-se como um ponto de memória e resistência. Uma das integrantes da família que cuida do altar compartilhou sua história pessoal, mencionando como o espaço, frequentemente alvo de depredações, é mantido com carinho e dedicação, em memória do falecido marido, que iniciou a tradição.
O altar, mais do que um simples espaço de devoção, se transforma em um símbolo de resistência religiosa, especialmente diante do preconceito enfrentado pelas práticas afro-brasileiras. Nesse contexto, a festa de Cosme e Damião vai além de um rito religioso: ela se torna um espaço de afirmação cultural, uma resistência simbólica contra as imposições de uma sociedade que muitas vezes marginaliza as tradições religiosas de matriz africana. O espaço público, durante a festa de Cosme e Damião, se transforma em um cenário de convivência e de disputas simbólicas. As ruas e praças, tomadas por crianças e adultos em busca de doces, configuram uma temporalidade própria, em que a cidade se redefine, ainda que de forma temporária, pelo fluxo desordenado de pessoas. Esse movimento, que pode parecer caótico, também é estruturado pela necessidade de garantir a segurança das crianças nas ruas e o equilíbrio nas dinâmicas de interação social. O espaço público, portanto, se torna um lugar de celebração, mas também de tensão, especialmente com a presença de diferentes segmentos religiosos que disputam o sentido e a propriedade simbólica da festa. Porém, o uso do espaço público também revela as limitações dessa convivência. A depredação de altares dedicados a Cosme e Damião, por exemplo, é uma manifestação clara do preconceito religioso presente em algumas camadas da sociedade, em especial entre grupos neopentecostais que se opõem à celebração.
Ao atacar fisicamente os símbolos religiosos, esses grupos reafirmam sua rejeição, não só ao ritual, mas também à identidade cultural e religiosa de uma parte significativa da população. A festa de Cosme e Damião, ao ser simultaneamente rejeitada e absorvida pelo neopentecostalismo, se configura como um espaço de conflito e de negociação simbólica. Através da antropofagia religiosa, o neopentecostalismo busca assimilar e transformar elementos das tradições afro-brasileira, ressignificando para consolidar sua expansão cultural e religiosa. Contudo, essa transformação não ocorre sem tensões. A festa permanece, portanto, um espaço de devoção, resistência e afirmação, um terreno fértil para disputas simbólicas que envolvem questões de pertencimento, identidade religiosa e uso do espaço público.
Um doce amanhecer:[editar | editar código-fonte]
A festa de Cosme e Damião é um reflexo das complexas interações entre tradições religiosas, dinâmicas urbanas e processos de transformação cultural. Ela continua sendo um importante marco de resistência cultural e religiosa, enquanto ao mesmo tempo se reinventa e se adapta às novas configurações sociais e religiosas do Brasil contemporâneo. A preservação da festa, nesse sentido, é um testemunho da força do sagrado na vida cotidiana e da capacidade das tradições de se adaptarem sem perderem sua essência. É uma prova de que, assim como os anárgiros cuidavam sem cobrar, há sempre espaço para ações que reforçam o vínculo humano e celebram o que há de mais profundo na espiritualidade: o amor ao próximo e a resistência do coletivo. Essa herança, passada de geração em geração, garante que a festa de Cosme e Damião siga iluminando os caminhos de uma sociedade que mesmo em meio suas contradições, ame sua herança e cultura.
E para aqueles, como eu, que se encantam pelos mais doces dias de setembro, deixo aqui minha gratidão pela luta incessante pela preservação de um aspecto tão importante da nossa história. Foi em um desses dias que Lucas me abriu as portas de sua casa, permitindo-me acompanhar de perto a distribuição dos doces e a magia que envolve essa celebração. Nesse gesto generoso, acendeu-se em mim um encanto especial pela festa de Cosme e Damião, que passou a ocupar não apenas um lugar em minha pesquisa, mas também no meu coração. A ele, à sua companheira e à sua filha, dedico meu mais sincero agradecimento. Desejo a essa família muitos e incontáveis dias doces de Cosme e Damião!
Referências Bibliográficas[editar | editar código-fonte]
ALMEIDA, Ronaldo de. A Igreja Universal e seus demônios: um estudo etnográfico. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2009.
BARTOLO, Lucas. Entre a caridade, a diversão e o medo: o dia de Cosme e Damião em uma vila do subúrbio carioca. Infratextos, Rio de Janeiro:, 2018.
DAMATTA, Roberto. A casa & a rua: Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5° edição. Rio de Janeiro: 1997.
FREITAS, Morena B. M. De doces e crianças: a festa de Cosme e Damião no Rio de Janeiro. 2015. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). Programa e Pós-graduação em Antropologia Social, UFRJ, Rio de Janeiro.
MENEZES, Renata; FREITAS, Morena; BARTOLO, Lucas (Org.). Doces santos: devoções a Cosme e Damião. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 2020.
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992