Domingo é dia de futebol no morro ou um morro que se constrói jogando

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Ensaio autobiográfico escrito originalmente para o Seminário em Antropologia das Periferias da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Nele, relato as memórias do morro ocupado em que cresci, onde o futebol fez e manteve vida até os dias de hoje.

SaramandaiaBA.jpg
Autoria: Barbara Gabriela Santos Oliveira

Domingo é dia de futebol no morro ou um morro que se constrói jogando[editar | editar código-fonte]

Quando rolou a ocupação naquela área, no início dos anos 90, a única estrutura de concreto que tinha ali nas redondezas era um clube de gente fina que já estava em processo de abandono. Rodeado por uma cerca viva de quiabento, uma espécie de cacto com espinhos, que como diz o ditado “não passa nem vento”, era atravessada pela molecada destemida em busca de oportunidades de lazer.

O ouro de toda essa estrutura rejeitada pelos bacanas era um campo de futebol de terra batida e uma quadra de cimento. O primeiro encontro da molecada com aquele campo, e sendo o futebol uma prática levada muito a sério por eles, as peladas passariam a produzir um sentimento de pertencimento nessa periferia. Com aquele campo à disposição, a meninada da rua fez do futebol amador suas vidas, prática que ultrapassou as infâncias e resistiu à intensa urbanização que restringia cada vez mais o acesso à espaços de prática esportiva.

A importância das peladas de futebol como forma de integração e pertencimento à periferia[editar | editar código-fonte]

Enquanto as paredes que formariam aquela vila iam ganhando altura, a comunidade dos primeiros chegados iam ganhando substância através do futebol. Se, de um lado, as privações materiais retardavam a edificação das primeiras casas, de outro, a comunhão e o sentimento de pertencimento e identidade social daqueles primeiros moradores iam sendo alicerçados através das peladas dominicais. Era nos pós jogo que se combinavam os mutirões e os arranjos no meio daqueles que eram pedreiros em um turno e atacantes em outro. Entre um gol e uma falta, ferramentas eram emprestadas, favores pedidos e oferecidos, laços de solidariedades iam sendo construindo mais rápidos que as primeiras residências.

As peladas atravessaram o tempo e resistiram ao processo de urbanização: o time Turma da Vila[editar | editar código-fonte]

Cerca de dez anos depois o imenso terreno abandonado (antigo clube da Ordem dos Advogados da cidade) onde estavam localizados os campos de futebol, foi vendido para uma mega construtora e um imenso muro começou a ser construído, no que viria a ser um condomínio fechado de classe média. Aquele paredão branco não alterou apenas a paisagem da vila, o desaparecimento do campo de terra amarelada abateu os domingos e a sociabilidade dos homens e mulheres que nos dias de “baba” transformavam as ruas de barro em verdadeiras arquibancadas.

Mas o aspecto comunitário e social produzido pelo futebol amador de bairro resistiu à urbanização e especulação imobiliária. Em um movimento admirável de resistência e criatividade, os grupos que formavam as peladas dominicais fundaram os primeiros times comunitários da região. Esforço coletivo em busca de outros campos de terra batida que suprisse a ausência do antigo espaço, desterritorializou os jogos e fez emergir um universo de campeonatos entre bairros. A partir daí as peladas que antes eram entre “peladeiros” do mesmo bairro, divididos entre os times dos “sem camisa” contra os “com camisa”, passou a contar com uniformes próprios, camisas de tecido barato que exibia com orgulho um brasão e o nome oficial do time do bairro: “Turma da Vila”. O time era tão relevante para a comunidade que os pequenos proprietários do comércio local faziam malabarismo com o orçamento das pequenas vendas para que pudessem contribuir com a compra dos uniformes e assim estampar a pequena logo da sua mercearia naquela camisa azul marinho.

Os campeonatos amadores de futebol se mostraram um elemento significativo para compreender certas dinâmicas sociais das periferias brasileiras. Através deles, os bairros periféricos passaram a se relacionar entre si, aproximando grupos sociais das classes populares que mantinham em comum o futebol amador como componente de integração social e sociabilidade. O esporte virou ponto de encontro entre as comunidades, se sobrepondo à noção de ser apenas um espaço de lazer. Os campeonatos amadores e os jogos interbairros passaram a ser ocupados, simultaneamente, pelo futebol e também pelas questões de classe e comunitária, como as relações de amizade, relações familiares, de gênero, de trabalho, etc (OLIVEIRA, 2016[1]). Outro aspecto próprio dos circuitos de futebol amador nas comunidades periféricas é o seu potencial de atuar como um espaço de intermediação, onde convivem, simultaneamente, questões como ludicidade e seriedade, disciplina e violência, lazer e trabalho (idem).

As peladas se tornaram “zonas de confraternização” (SOARES, 1998, p. 54[2]), e a comemoração no pós jogo é um elemento que reforça o vínculo entre torcedores e jogadores. Tal envolvimento reforça os laços de amizade e solidariedade entre as comunidades e suas famílias. Essas comemorações de final de partida é o que fundamenta a existência e continuidade dos times e campeonatos amadores nas periferias.

Hoje, homens feitos, encontram nas partidas de domingo seu tempo social do não- trabalho, do lazer e do ócio, praticando o esporte com tamanho empenho e energia física que o futebol pode ser visto como uma extensão do seu trabalho (DAMO, 2003, p. 140[3]).

E na vila, apesar das mazelas típicas das periferias brasileiras, domingo é dia de futebol, dia de estampar no peito a comunidade construída entre gols e ausências. Sem o futebol, sem a Turma da Vila e a felicidade que ela traz para a vizinhança a cada troféu ganho, aquele bairro só seria mais um bairro pobre entre tantos outros.

Contato[editar | editar código-fonte]

barbaragabriellas@gmail.com

Ver também[editar | editar código-fonte]

  1. OLIVEIRA, Marcia Maceira de. O futebol de várzea na produção acadêmica brasileira: um estudo de temas e questões recorrentes. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Educação Física). Escola de Educação Física - UFRGS, 2016
  2. SOARES, Antônio Jorge. Futebol, raça e nacionalidade no Brasil: releitura da história oficial. Tese (Doutorado em História). Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho, 1998
  3. DAMO, Arlei Sander. Monopólio estético e diversidade configuracional no futebol brasileiro. Movimento, Porto Alegre, v. 9, n. 2, p.129-156, maio/ago. 2003.