Entre mito e solução, a busca por um empreendedorismo realmente existente (artigo)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Este artigo tem como objetivo propor uma análise sobre o empreendedorismo que leve em conta sua forma realmente existente. A ideia de neoliberalismo híbrido nos permite pensar na simultaneidade de maneiras de organização da vida, ou de racionalidades políticas. Desta forma, busco analisar o empreendedorismo enquanto uma normatividade neoliberal para colocá-lo em diálogo com outras racionalidades presentes nas classes populares brasileiras, depreendendo seu hibridismo. Concluo afirmando a pertinência analítica do empreendedorismo para compreender seus usos práticos e aproximar-se das estratégias de vida contemporâneas.

Autoria: Brauner Geraldo Cruz Junior[1].
Publicado originalmente na Revista Contemporânea[2] e cedido gentilmente pelo autor do artigo ao wikiFAVELAS.

Introdução[editar | editar código-fonte]

O presente artigo propõe uma análise sobre o termo empreendedorismo e de que modo pode ser entendido tanto em questões teórico-conceituais quanto de maneira prática e cotidiana. Buscarei sugerir que a ideia de um hibridismo governamental, que permeia as racionalidades políticas entendidas e propostas por Foucault (2008), nos é útil para tal empreitada analítica. Em outras palavras, defendo a tese de que a noção de empreendedorismo evocada por uma racionalidade neoliberal presente atualmente nas formas de governo da sociedade pode ser melhor entendida se procurarmos investigar as outras práticas que conformam o conceito de empreendedorismo e que se expressam em seu uso no cotidiano, conferindo plasticidade ao termo e tornando seu uso pertinente enquanto categoria de análise.

Recentemente, em uma conversa com um interlocutor morador do Conjunto de Favelas da Maré, na cidade do Rio de Janeiro, onde realizo minha pesquisa de doutorado, ouvi dele uma frase que aqui tento reproduzir na íntegra: “Meu pai podia ter a chance de ser o próprio patrão, mas não quis. Abriu mão do táxi que ele tinha, porque não gostava de não ter horário pra entrar e sair, pra comer, de não ter um salário fixo.” Perguntei a ele no que seu pai passou a tra-balhar: “Virou motorista de ônibus”. Ele, que atualmente é motorista de táxi, de-monstrou reprovação ao caminho profissional traçado pelo pai. Numa conversa que me lembrou muito o relato de Richard Sennett (1999) sobre as diferenças geracionais e perspectivas de vida entre Rico e Enrico, seus interlocutores, a possibilidade de ser seu próprio chefe, não ter patrão e fazer o próprio horário soa como atrativa diante do que parece ser um apego desnecessário às bases do trabalho assalariado. Poderíamos dizer que meu interlocutor evocou um discurso próprio do em-preendedorismo entendido sob as bases da razão neoliberal (Dardot e Laval, 2016). Nesta, o sujeito se vê como uma empresa de si mesmo que aloca seu capital humano e gere seus próprios recursos no meio profissional, e não mais como um trabalhador que vende a sua força de trabalho em troca de um salário. Essa é uma análise possível para entender o empreendedorismo, mas não é a única. Isto porque o conceito passou por importantes modificações desde seus primeiros usos, dos quais se destaca o trabalho de Schumpeter (1961). Entender como essas transformações moldaram o conceito e, principalmente, influencia-ram em seu uso no cotidiano, para além dos limites acadêmicos, nos permitirá inferir que há mais elementos presentes na fala de meu interlocutor. A ideia de ser seu próprio chefe pode ser depositária de um discurso contemporâneo do empresário de si mesmo, mas, em especial na sociedade brasileira, também evoca outras maneiras de pensar o mundo profissional. O empreendedorismo pode também mobilizar opções transitórias ou simultâneas entre o trabalho formal e o trabalho informal, combinar-se com outros arranjos profissionais nas estratégias econômicas familiares, podendo ser tanto um “complemento” à renda como também a fonte principal dos rendimentos familiares. Pode ser uma prática inédita às estratégias de vida familiares, ou, como muitas vezes ocorre, fazer parte desde sempre de suas alternativas para obtenção da renda.

Isso tudo demonstra que o empreendedorismo, assim como o neoliberalismo, não é uma avalanche – ou um tsunami, como abordou Ong (2006; 2007) – que derruba todos os pilares do mundo profissional e instaura novos alicerces sobre os quais todos os indivíduos passam a se pautar. Sua concepção, inclusi-ve, torna-se bastante influenciada pelas racionalidades e formas de agir que as atravessam, de tal maneira que ela ressoa de diferentes modos nos diferentes grupos sociais.

Este artigo é fruto de pesquisas iniciadas na minha dissertação de mestrado, na qual investiguei as diferentes assimilações do discurso empreendedor por sujeitos das camadas populares que possuíam um negócio próprio (Cruz Junior, 2019). Segui com pesquisas similares, procurando entender qual era o empreendedor gestado no Brasil pós-lulismo (Penteado e Cruz Junior, 2020) e os elementos que compunham a subjetividade de trabalhadores shoppers, que cresceram com o advento da pandemia do novo coronavírus (Cruz Junior, Penteado e Souza, 2022). Em meu doutorado, volto o olhar para as práticas econômicas cotidianas no âmbito da casa e na gestão de pequenos negócios em favelas. Mais especificamente, estudo o processo econômico de fazer e vender comida na Maré.

Em todas essas pesquisas, deparei-me com dinâmicas complexas na relação entre empreendedorismo e negócios populares. Inicialmente, preocupava-me em conceituar o empreendedorismo e verificar quais de meus interlocutores se encaixavam em sua gramática e quais escapavam dela. Minha intenção era saber se o discurso neoliberal sobre o termo encontrava lastro, sobretudo, nas camadas populares da sociedade brasileira. Em seguida, percebi que, mais produtivo do que olhar para os indivíduos e identificar se eram considerados ou consideravam a si como empreendedores, deveria me centrar nas suas práticas econômicas e identificar as lógicas e formas de organizar a vida presentes nelas. Esta tarefa analítica a que me propus me fez perceber, e é o que buscarei desenvolver neste artigo, que mais do que notar se o empreendedorismo era aceito ou recusado pelos agentes sociais, se o termo empreendedor era injustamente ou não atribuído a certas categorias profissionais, convinha explorar seus diversos usos assumidos na vida cotidiana. Enquanto categoria nativa, o empreendedorismo evoca uma pluralidade de acepções cuja compreensão nos pode ser útil para uma atualização analítica do conceito. Não se trata de aceitar e naturalizar a precariedade laboral trazida pela noção de um trabalho desregulamentado e de condições desumanas. Mas de compreender, inclusive como estratégia política, as complexas e variadas formas que sua narrativa assumiu ao longo do século XXI.

Deste modo, o artigo será dividido em quatro seções, para além desta introdução. Inicialmente, buscarei trazer o empreendedorismo enquanto conceito mobilizado pelo neoliberalismo. Para isso, farei uma breve e sucinta passagem histórica do termo, com o intuito de revelar como diferentes correntes teóricas apresentaram sua versão mais recente e próxima daquela que encaramos na atualidade. Em seguida, parto para uma seção que visa pensar as bases sociais, culturais e econômicas da sociedade brasileira e sua relação com o empreendedorismo. Nesta seção, trago tanto uma perspectiva histórica sobre as formas de se ganhar a vida no Brasil e seu possível diálogo com o mundo empreendedor quanto uma visão contemporânea dessa relação, evocando autores que discutem e analisam esse imbricamento. Na terceira seção, mobilizarei alguns relatos das pesquisas por mim realizadas sobre o tema, como forma de apresentar uma maneira multifacetada e compósita de encarar o empreendedorismo. Por fim, encerro com uma conclusão que busca articular essa apresentação do conceito com a proposta de empregar analiticamente uma visão híbrida das racionalidades políticas, em especial a governamentalidade neoliberal.

O empreendedorismo segundo o neoliberalismo[editar | editar código-fonte]

É possível destacar o trabalho de Joseph Schumpeter (1961) como uma das principais análises iniciais, se não a principal, sobre a figura do empreendedor. Este economista de origem austríaca estava preocupado em desenvolver uma teoria sobre o capitalismo que desse conta de explicar o seu desenvolvimento de maneira endógena, ou seja, cuja transformação partisse do próprio sistema. Schumpeter olhava, sobretudo, para a transição entre os séculos XIX e XX, quando havia a valorização de pequenos capitalistas que passaram a prosperar com o crescimento de suas empresas, criadas ainda em um cenário de maiores incertezas e anterior ao surgimento do fordismo. Dessa maneira, chegou à proposição de que a inovação era esse motor do desenvolvimento econômico do capitalismo, e o empreendedor era a figura responsável por promovê-la. Vemos, a seguir, como o autor trabalha com a ideia de “novas combinações”, que poderíamos entender por inovações ou por empreendimentos, e que deslocam o estado de equilíbrio no capitalismo:

O desenvolvimento, no sentido em que o tomamos, é um fenômeno distinto, inteiramente estranho ao que pode ser observado no fluxo circular ou na tendência para o equilíbrio. É uma mudança espontânea e descontínua nos canais do fluxo, perturbação do equilíbrio, que altera e desloca para sempre o estado de equilíbrio previamente existente. [...]O desenvolvimento, no sentido que lhe damos, é definido então pela realização de novas combinações. (Schumpeter, 1961: 75-76, grifo nosso)

Esses empreendimentos compreendem cinco situações: (a) a introdução de um novo bem; (b) a introdução de um novo método de produção; (c) abertura de um novo mercado; (d) conquista de uma nova fonte de matérias-primas; e (e) o estabelecimento de uma nova organização de qualquer indústria (Schum-peter, 1961: 76). Aqueles que realizam essas novas combinações, ou empreendi-mentos, são tidos como empresários inovadores, ou empreendedores. Eles se diferenciam, como lembra Martes (2010), da figura do capitalista, pois se baseiam em valores, mas também são guiados por desejos e conquistas, ou seja, por uma paixão[3]. São, por isso, figuras de liderança. Necessitam, também, de instituições políticas e econômicas de apoio às suas ações, que alavancariam novos ciclos de crescimento. Por isso, o capital empregado não advém da pou-pança, mas, sim, do crédito (Martes, 2010: 255-256).

Martes (2010) segue nos ajudando a compreender o que Schumpeter (1961) pensou sobre o empreendedor. Segundo a autora, é importante ressaltar alguns atributos que o caracterizam nesse contexto, como a necessidade de escapar do enquadramento usual dos problemas e soluções testadas, o enfrentamento da oposição social do ambiente em que se está inserido, e uma motivação não condicionada pelo lucro ou pela satisfação de desejos pessoais, mas, sim, pelo impulso de lutar e de se fazer superior, pela alegria de criar e de fazer coisas.

Se, a partir dessa caracterização, poderíamos pensar numa identidade fixa associada ao empreendedor, devemos seguir na compreensão da abordagem schumpeteriana para chamar atenção ao fato de que esse grupo de empreendedores, sob esse enquadramento, é, necessariamente, restrito. O empreendedorismo de Joseph Schumpeter (1961) não é visto como uma profissão, ou como um atributo pertencente a uma classe específica. Também não é uma condição duradoura. Aquele que deixa de inovar é demovido da condição de empreendedor. Como ressalta Osvaldo López-Ruiz (2007: 124), “quem é empreendedor, dificilmente o será sempre”.

É no elemento anterior que parece residir a principal diferença entre o empreendedorismo pensado aos moldes de Schumpeter e aquele que encaramos em diversas esferas da vida cotidiana contemporânea. Se, para a sociedade capitalista que irrompia no começo do século XX, o empreendedorismo era uma condição transitória de um grupo restrito de indivíduos, que por sua vez não seriam sempre considerados como empreendedores, com o advento do neoliberalismo, ou como López-Ruiz (2007: 30) analisou, em um novo espírito do capitalismo, o empreendedorismo passa a ser “a atitude de um povo”.

López-Ruiz (2007) explica como se deu essa mudança de chave que permitiu um revival e uma massificação do empreendedorismo. Ao formular uma análise de inspiração weberiana sobre o capitalismo, o autor se aproxima do trabalho desenvolvido por Boltanski e Chiapello (2009), com a ideia de espíritos do capitalismo, ideologias que concentram em si uma justificativa para aquela configuração de sistema (2009: 39). Um primeiro espírito seria aquele analisado pelo próprio Max Weber (2004) e também por Schumpeter (1961). Ele seria marcado por um ethos aventureiro, com a valorização de empreendimentos de pequenos capitalistas, possuidores de bens tangíveis. Já o segundo seria marca-do pelo que Wright Mills (1969) chamou de “a sociedade dos colarinhos brancos”, formada por “homens-organização”. É que com o fordismo e a expansão do assalariamento, os indivíduos que representavam carreiras exitosas já não eram todos mais detentores de propriedades e passam a ser considerados como homens modestos e passivos (Wright Mills, 1969)[4].

É pelo resgate da ideia de propriedade que o terceiro espírito do capitalismo será marcado. Só que diante do tamanho e da proporção tomada pela economia capitalista, e da diversidade de organizações e empresas, não seria mais possível pensar a propriedade de bens tangíveis num sentido ampliado, mas, sim, na propriedade do indivíduo em si. Cada pessoa passaria a ser considerada como um capital intangível, um capital humano, sujeito a investimentos e valorizações.

A teoria econômica convertia novamente em proprietários os setores que historicamente o haviam sido e já não eram mais, e também todos aqueles que dispuseram seus próprios esforços para sê-lo. A partir de então, os não-proprietários de bens-tangíveis seriam proprietários de suas próprias habilidades, competências e destrezas. Mas, como tais, seriam também responsáveis por sua manutenção e incremento. A propriedade desse capital intangível lhes garantiria sua independência individual e abriria as portas à sua participação nas demais esferas do social. (López-Ruiz, 2007: 68)

López-Ruiz (2007) demonstra essa passagem histórica ao analisar o ethos dos executivos de transnacionais e também a concepção econômica de capital humano proposta por economistas da Escola de Chicago, na década de 1960, com destaque para Theodore Schultz. Nessa abordagem, o consumo passa a ser visto como investimento, assim como o trabalho, que perde sua característica como fator originário da produção. O trabalhador não é mais aquele que vende a sua força de trabalho, mas, sim, um indivíduo que aplica parte de seu capital humano à espera de um retorno. Assim, para além de um conceito analítico, o empreendedorismo, ao ser massificado, passa a reunir “um conjunto de máximas que regulamentam a forma como as pessoas conduzem suas vidas” (López--Ruiz, 2007: 26-27). Torna-se, portanto, um valor social. Pierre Dardot e Christian Laval (2016) fazem também um resgate histórico para definir as bases da racionalidade neoliberal, inspirados na concepção de Michel Foucault sobre o neoliberalismo, delineada no livro “O Nascimento da Biopolítica” (Foucault, 2008). Os autores investigam como o Colóquio Walter Lipmann, de 1935, foi responsável por trazer as bases fundantes do pensamento neoliberal. Ele sintetizou debates teóricos entre o chamado ordoliberalismo alemão e o neoliberalismo americano, e possibilitou certa convergência a um modelo que seria posto em prática décadas depois. O neoliberalismo que surge como estratégia de governamentalidade (Foucault, 2008; Dardot e Laval, 2016) preconiza a economia de mercado e a superioridade da lógica de concorrência para o ajustamento da sociedade. Para que isso se concretize, seria necessário um processo de desproletarização e formação de pequenas unidades produtivas. É essa economia de mercado que permite com que se aflore o sujeito empresarial. Dessa maneira, o empreendedor que emerge no neoliberalismo é uma empresa de si mesmo condicionada pelo funcionamento da lógica de mercado.

O empreendedor não é um capitalista ou um produtor nem mesmo o inova-dor schumpeteriano que muda incessantemente as condições da produção e constitui o motor do crescimento. É um ser dotado de espírito comercial, à procura de qualquer oportunidade de lucro que se apresente e ele possa aproveitar, graças às informações que ele tem e os outros não. Ele se define unicamente por sua intervenção específica na circulação de bens. (Dardot e Laval, 2016: 145, grifo nosso)

Surge aqui mais uma diferença entre o empreendedorismo de Schumpeter (1961) e aquele gestado pela forma neoliberal de governo das condutas. Para além de ser uma categoria massificada, não se busca mais a inovação e a mudança das condições de produção, mas, sim, oportunidades de lucro que podem ser aproveitadas pelos indivíduos. Dessa maneira, o impulso empreendedor não advém mais do prazer de criar coisas novas, mas de achar brechas lucrativas. Essa diferença é o que permite que expliquemos o fato de que, embora as narrativas mobilizadas em ambientes corporativos, revistas especializadas e influencers sobre o empreendedorismo tratem mais do espírito aventureiro e disruptivo que nos remete ao empreendedor schumpeteriano, os exemplos assumidos por essas pessoas e tidos como referências empreendedoras carregam em si nada mais do que uma busca por oportunidades aparentemente lucrativas no mercado[5].

Para além desta dissonância, há também outros aspectos que se mostram ilusórios sobre o discurso propagado pela alternativa empreendedora. A tradição marxista e os estudos sobre o trabalho oferecem contribuições relevantes sobre tais aspectos. Autores como Antunes (1999; 2018) e Tavares (2018) buscam argumentar como o empreendedorismo propagado enquanto a possibilidade de uma vida profissional autônoma e emancipatória é, na verdade, um mito, uma espécie de mascaramento da relação entre capital e trabalho.

Da nossa perspectiva, o empreendedorismo é uma estratégia pela qual é transferida ao trabalhador a atribuição de gerar postos de trabalho, de modo a garantir “ordem e progresso” capitalistas; é um ardil engendrado pelo capital e viabilizado pelo Estado, para confundir a oposição das classes sociais; é uma tentativa de obscurecer a figura do trabalhador proletário e, desse modo, pôr fim ao sujeito revolucionário; é, enfim, uma forma pela qual se quer combater o desemprego, sem possibilitar a relação de emprego, na acepção de um contrato pelo qual o trabalhador vende força de trabalho e em troca recebe um salário e a proteção social que, por lei, ainda é garan-tida aos trabalhadores percebidos como assalariados. (Tavares, 2018: 110)

Assim, o discurso empreendedor seria um remédio aplicado para mistificar a profusão de ocupações profissionais precárias e buscar eliminar o desemprego. Isso seria um remédio que, segundo Ricardo Antunes, “só fará alimentar a doença” (Marchesan, 2019).

Temos, portanto, um empreendedorismo próprio do neoliberalismo que é assumido como alternativa profissional e enquanto valor social. Ao observarmos o movimento histórico que dá origem a essa concepção, e inclusive pela influência de uma literatura e pensamento ocidentais, muito associados aos países do Norte Global, é comum pensar na influência que o empreendedorismo exerce sobre o universo do assalariamento. Diante da desproteção de direitos sociais e de uma reorganização do mundo empresarial pelas bases toyotistas, o trabalhador assalariado se torna um empreendedor individual. É a narrativa comum na crítica contemporânea que descreve uma pessoa formada, que trabalhou durante anos como contratada de grandes empresas, e hoje se vê como motorista de aplicativo ou vendedor informal, por exemplo. Guy Standing (2013) é um autor britânico que busca trabalhar a figura que chama de precariado, e que é própria deste período. Esse sujeito, destituído de direitos próprios do sistema fordista, se vê pouco identificado com sua atividade profissional; expressa uma subjetividade anômica, alienada, ansiosa e raivosa, diante do bloqueio ao acesso para uma vida digna.

No entanto, até aqui, mesmo partindo de diferentes óticas, a classe trabalhadora parece estar representada como um grupo enganado ou encantado, em que a verdade sobre suas condições de vida não está sendo contada ou percebida. A ideia de que o empreendedorismo faz o indivíduo acreditar que ele é sua própria empresa e que, assim, o distrai do verdadeiro projeto emancipatório de classe, concede pouco espaço analítico para o modo como essas pessoas de fato mobilizam as práticas e comportamentos associados à narrativa empreendedora. Mais do que isso, não nos permite enxergar a miríade de racionalidades políticas e formas de organização da vida que estruturam o cotidiano dessa mesma classe.

O trabalho de Foucault (2008) sobre governamentalidade pode ser resgatado para a compreensão dessas múltiplas formas de governo que coexistem com a neoliberal. Ao pensar em estratégias de governamentalidade, Foucault joga luz a práticas e maneiras de guiar, ou governar, a conduta de indivíduos, que não são inauguradas com o advento do neoliberalismo. Em diferentes períodos da histó-ria, certas racionalidades políticas prevaleceram como organizadoras das vidas dos indivíduos, atravessando estes sujeitos e instituições, como o próprio Esta-do, entendido por Foucault (2008) como um correlato de maneiras de governar, uma forma que reúne diferentes técnicas de governo das condutas individuais. É essa concepção compósita sobre as estratégias de governamentalidade que nos permite pensar a noção de um neoliberalismo híbrido. Ou seja, uma racionalida-de que convive e se compõe com outras em diferentes cenários sociais.

Sobre este aspecto, poderíamos tomar emprestado trabalhos como os de Peck, Theodore e Brenner (2012), que abordam como o neoliberalismo não é capaz desfazer por inteiro aquelas formações sociais e institucionais que lhe precedem, necessitando parasitá-las como condição de sobrevivência. Também podemos voltar a Ong (2006; 2007) para afirmar como o neoliberalismo pode ser introduzido em configurações sociais enquanto uma exceção, e não neces-sariamente como regra, selecionando alguns grupos como exemplos mais per-feitos de uma subjetividade associada a tal racionalidade. Ainda, Gago (2018) também trabalha com a ideia de um neoliberalismo “desde baixo”, que dialoga com os modos de vida já existentes e traz sociabilidades e práticas das classes populares para conceder um caráter polimórfico ao neoliberalismo.

Se pensarmos, portanto, o neoliberalismo como essa estratégia de governo das condutas individuais, que, apesar de prevalecer em certos cenários, compõe-se com outras formas de governo, e se tomarmos esse hibridismo do neoliberalismo como ponto de partida para pensar a maneira como o empreendedorismo se faz presente nas práticas cotidianas, torna-se possível avançar para uma compreensão de um empreendedorismo realmente existente.

O(s) empreendedorismo(s) da sociedade brasileira[editar | editar código-fonte]

Para falar do empreendedorismo pensado na sociedade brasileira, ou numa realidade distinta daquela vivenciada nos países do Norte Global, convém, primeiramente, pensar na ideia de informalidade e nas diversas formas de ganhar a vida que compuseram horizontes de trabalho a indivíduos e suas famílias ao longo de décadas.

No contexto brasileiro e latino-americano, a noção de informalidade foi muito mobilizada ao longo do século XX para – com influência de uma visão mais associada à concepção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) (Rabossi, 2019) – descrever a construção do mercado de trabalho, quando a inclusão de trabalhadores em formas estáveis e protegidas socialmente foi a exceção e não a regra. Assim, a informalidade era mobilizada para tratar desse contingente não abarcado pelo “sonho da carteira assinada”. De todo modo, é interessante resga-tar, por meio de Rabossi (2019), os estudos de Keith Hart, um dos primeiros a utilizar o conceito de informalidade, para indicar que esse autor não procurou trabalhá-lo sob a mesma mirada que a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Keith Hart pontuou a informalidade como forma de jogar luz a ativida-des econômicas auto-organizadas que, mesmo sendo algumas delas irregulares, transformavam o debate econômico daquele contexto (Rabossi, 2019).

Nesta mesma linha iniciada por Keith Hart, a noção de estratégias de vida, proposta no trabalho de Luiz Antonio Machado da Silva, nos é útil para construir esse panorama, uma vez que ela carrega consigo uma concepção afirmativa das ações empreendidas pelas camadas populares para sua reprodução social. Ao adicionar a complexidade devida a essas ações, busca-se recusar uma acepção negativa da ideia de informalidade, no sentido de que esse conceito foi muitas vezes utilizado como o oposto exato do trabalho formal (Guimarães, 2011), ou seja, para identificar uma incompletude, uma caracterização sobre aquilo que não é (formal), ao invés daquilo que se é: um mercado que, embora não formalizado, está permeado por diferentes estratégias de conduzir e organizar a vida.

Lima (2009) analisa que nas últimas décadas do século XX e no século XXI a informalidade passou a ser a face mais acabada do trabalho precário. Machado da Silva (2018) entendeu que a discussão passou a se dar mais em torno do conceito de empregabilidade ou de empreendedorismo e do ar positivo que evocava, com a informalidade perdendo sua precisão conceitual. Antunes (2018), por sua vez, enxergou uma grande aproximação entre precariedade e informalidade, para concluir que estamos vivendo uma era de precarização estrutural do trabalho, em que a própria informalidade passou a ser a norma também no centro do capitalismo. É o que desenvolve Abílio (2020) ao tratar do conceito de uberização como um processo de universalização do informal, não apenas no sentido espacial geográfico, mas dentro da estrutura social, sendo a era de um trabalhador integralmente disponível, o que chamou de trabalhador just-in-time, observável em diferentes classes sociais e ocupações profissionais.

Conceber uma chave afirmativa sobre as formas de trabalho assumidas pelas camadas populares ao longo da história na sociedade brasileira significa, assim, visibilizar a diversidade e as diferenças existentes em cada uma destas formas, assim como nos permite romper com o binômio formal/informal, que concedia ao assalariamento um espaço que não correspondia ao real no contexto brasileiro. Essa chave afirmativa é também fundamental para que pensemos como se dá a introdução do empreendedorismo enquanto prática de organização da vida. Tal entrada parece ser responsável por ampliar a dimensão precária do informal, ou por expandir a sua abrangência, de acordo com a literatura aqui trazida. Mas em que sentido essa precariedade, representada por condições de trabalho extenuantes e incertezas quanto aos ganhos obtidos, dentre outros aspectos, já não fazia parte do universo popular?

Machado da Silva (2018) chamou a atenção para a instabilidade ocupacional, sobretudo a partir da década de 1980, que passou a atingir as camadas médias da sociedade brasileira, estabelecendo, para este grupo, uma condição de vida “radicalmente nova”. Contudo, o autor lembra que “para as camadas populares, embora a mudança implique um forte incremento na dificuldade de acesso a empregos regulares (além de um rebaixamento da remuneração), a natureza das atividades laborais continua aproximadamente as mesmas” (Machado da Silva, 2018: 16). Mais à frente, elabora um pensamento que, aqui, torna-se fundamental: “transformações nas relações de produção podem conservar a vigência de relações mais antigas que, nas novas condições, adquirem também novo significado histórico” (Machado da Silva, 2018: 17).

As pesquisas etnográficas desenvolvidas por Luiz Antonio Machado da Silva corroboram para uma visão que nos permite pensar numa simultaneidade de formas de trabalho entre as classes populares. Embora o horizonte do assalariamento tenha permeado as estratégias de organização econômica das famílias, formas como o trabalho doméstico, o trabalho a domicílio e o trabalho por conta própria constituíram importantes, e muitas vezes centrais, fontes de renda, sobretudo aos mais pobres. Mais do que isso, elas se combinam ou se alternam variadas vezes com o trabalhado assalariado regular. Machado da Silva (2018) mostra como um olhar concentrado nos pequenos negócios enquanto atividade econômica relevante para a análise social nos permite identificar que a própria abertura de pequenos estabelecimentos conta com um capital acumulado, di-reta ou indiretamente, em empregos regulares. Assim, busca-se tentativas de “conciliar a condição de independência ou autonomia e seus respectivos riscos com as garantias do emprego regular, ao menos durante um período de experi-ência” (Machado da Silva, 2018: 45).

Expandir a análise para além do emprego assalariado nos permite, também, inserir um componente muitas vezes negligenciado na perspectiva histórica sobre as formas de trabalho no Brasil, que é o trabalho feminino. Se por muitos anos foi excluída a possibilidade de participação ampla das mulheres no mercado de trabalho formal, suas atividades econômicas sempre estiveram presentes com grande relevância em outros campos. Por exemplo, no trabalho a domicílio, em seu modelo clássico ou assalariado, dedicado a atividades de costura, cozinha e beleza. Ou no trabalho doméstico não-remunerado, no qual a literatura sobre atividades de cuidado desempenha fundamental papel de visibilização[6], ou remunerado, remontando a ocupações como as empregadas domésticas, por exemplo.

Nas atividades que escapam ao modelo do trabalho assalariado regular, emerge uma série de práticas econômicas que organizam as diferentes formas de trabalho. Na gestão de pequenos comércios, por exemplo, é recorrente a necessidade de lidar com cálculos e projeções que contam com variados riscos. O mesmo ocorre em trabalhos a domicílio desempenhados por mulheres, que precisam conquistar novos clientes e manter a clientela existente. A ascensão econômica a partir dessas formas conta com uma rede de ajudas estabelecida em torno desses negócios, além de formas de ingresso da renda advindas de outras atividades e/ou de outros membros da casa, mas com pouca ou nenhuma intervenção estatal.

É este terreno que a alternativa evocada pelo empreendedorismo encontra ao se disseminar como forma de organização econômica dos indivíduos. A ressonância do encontro entre essas práticas produz separações como as do binômio oportunidade/necessidade, que é recorrente para explicar as escolhas profissionais de indivíduos no Brasil contemporâneo. Antônia Colbari (2007) busca decantar três eixos analíticos para o significado do empreendedorismo neste contexto mais recente. Um primeiro se relaciona a uma nova socialização e qualificação para o trabalho, que incorpora atributos antes exclusivos do empregador ao empregado, além de inserir os valores empreendedores nas atri-buições das corporações. Um segundo eixo aborda a reestruturação do mercado de trabalho, reduzindo-o e desverticalizando-o. Esse componente apresenta, de um lado, uma face promissora ao converter trabalhadores assalariados em microempresários de sucesso, e de outro lado, produz um grupo de indivíduos que precisa “se virar” nas alternativas precarizadas que surgem. Por fim, um ter-ceiro eixo está associado a um projeto político alternativo ao trabalho assalaria-do, que pode propiciar arranjos que não são exclusivamente pautados por uma lógica mercantil. Operam como um “mecanismo de preservação da integração social mediante arranjos de trabalho fora do assalariamento, como a produção familiar, a produção artesanal, a cooperativa, as variantes da economia solidá-ria, etc.” (Colbari, 2007: 85).

Sendo assim, se a narrativa empreendedora contemporânea, como vimos na seção anterior, preconiza a busca individualizada por oportunidades lucrativas que exigem uma constante criatividade e o enfrentamento de condições ambientais adversas, ao deparar-se com as diferentes estratégias de vida das camadas populares na sociedade brasileira, surge uma gama de empreendedorismos, no plural, que possuem significados e impactos variados. Em alguns casos, isso não inaugura novas atividades laborais ou novas condições de vida, como ressaltou Machado da Silva (2018), embora possa haver impacto na maneira como as atividades econômicas são representadas. Em outras situações, há, de fato, uma profunda reorganização da subjetividade associada ao trabalho, ao assumir trajetórias profissionais mais individualizadas e propensas a maiores riscos e incertezas. De todo modo, trazer à tona esse contexto laboral brasileiro nos faz ver que o empreendedorismo encontra formas diversas de organização da vida econômica, e com elas se compõe e se ressignifica, ganha e perde espaços, adquire potência ou se esvazia de sentido, conforme as realidades encaradas.

Essas racionalidades resultantes podem evocar, por exemplo, uma rede de solidariedade em torno de pequenos negócios que se distancia do individualis-mo associado ao empreendedorismo. Também podem representar estratégias econômicas mais próxima a uma ideia sobrevivência ou a uma busca por viver vidas que merecem ser vividas (Narotzky e Besnier, 2020), distanciando-se da noção de uma incessante procura pelo lucro[7]. E mesmo assim, podem carregar consigo a alcunha de empreendedorismos, seja pelos sujeitos que as vivenciam, seja por olhares externos da sociedade.

Experiências em pesquisas sobre economias populares[editar | editar código-fonte]

Em um artigo de 2019, buscamos trabalhar a noção de um empreendedo-rismo híbrido que surgia no Brasil pós-lulismo (Penteado e Cruz Junior, 2019). Fruto de minha dissertação, essa pesquisa entrevistou pessoas das camadas populares que possuíam negócios próprios. As conclusões giraram em torno de um empreendedorismo que surgia mais para dar conta de explicar as estratégias de sobrevivência dos entrevistados do que efetivamente um grupo de sujeitos que enxergavam a si como empresas-indivíduo. Havia elementos meri-tocráticos, que exaltavam a trajetória individual na ascensão profissional, mas também práticas populares que transbordavam o esquema neoliberal, como a ausência de um senso acentuado de concorrência nos negócios analisados. Em uma das pessoas que entrevistei, o empreendedorismo era bastante mobilizado, só que como um projeto alternativo ao trabalho formal, que propunha uma relação diferente e mais saudável entre indivíduo e trabalho. Além disso, possibilitava a expressão e afirmação de identidades muitas vezes sufocadas pelo mercado de trabalho; no caso, a de mulher negra.

De lá para cá, dei continuidade a algumas dessas investigações e interesses de pesquisa. Em artigo para o Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), voltei a alguns de meus interlocutores do mestrado para identificar as principais mudanças em seus negócios e suas vidas, considerando a pandemia do novo coronavírus (Cruz Junior, 2021). Nesse contexto, as fontes de renda regulares, como o trabalho assalariado, vindo de outros membros da casa ou combinado com o já desempenhado trabalho por conta própria, foram essenciais para a manutenção dos negócios e, principalmente, para a sobrevivência familiar. Isso não significou uma desistência da atividade econômica desempenhada por meio desses pequenos negócios, mas mostrou a constante necessidade de reajustes nos cálculos e estratégias de vida das classes populares, além de uma simultaneidade de práticas e pensamentos ligados às atividades econômicas. As práticas associadas ao trabalho assalariado e aquelas ligadas ao trabalho por conta própria eram, ambas, relevantes para explicar as maneiras com que os indivíduos organizavam suas vidas, sobretudo diante de um período marcado por profundas incertezas.

Numa pesquisa sobre a subjetividade ligada ao trabalho manifestada por trabalhadores shoppers, que passaram a fazer compras em supermercados e entregá-las às pessoas que solicitavam o serviço intermediado por aplicativos, identificamos práticas mais próximas à forma empreendedora de organização da vida econômica (Cruz Junior; Penteado e Souza, 2022). A maneira como as plataformas organizam o trabalho por aplicativos faz com que os trabalhadores se preocupem constantemente em achar novas fontes e oportunidades de lucro. No entanto, alguns elementos manifestados não eram próprios dessa racionalidade empreendedora. A despeito de uma certa assunção dos riscos e responsabilidades, havia uma contestação das condições de trabalho colocadas pelas plataformas, assim como também se formou uma rede, muitas vezes impulsionada por canais virtuais, de trabalhadores dessa natureza, que se ajudavam por meio de dicas, ensinamentos e estratégias para aumento dos ganhos.

Desde o ano de 2021, participo de pesquisas que investigam as dinâmicas econômicas de pessoas que possuem pequenos negócios informais no Conjunto de Favelas da Maré, no Rio de Janeiro. Aprofundei meu contato com duas interlocutoras e suas respectivas famílias. Falarei brevemente sobre elas[8].

Simone possui uma pequena loja de roupas próxima à sua casa. Seus principais produtos são de vestuário feminino, mas ela também vende algumas roupas masculinas, artigos de sex shop, bilhetes de loteria e perfumes e cosméticos de revenda, que expõe em parceria com uma amiga. Ela abriu a loja em 2019, assim que foi demitida de um emprego assalariado numa loja de materiais de construção. Era a oportunidade, segundo aconselhou sua comadre, de ter “algo seu”. Ela é casada com Vagner, que é motorista de táxi, e que foi apresentado na introdução deste artigo. Vagner também buscou ter algo próprio, assim que foi demitido de seu emprego numa empresa que administrava convênios de saúde. Apesar das incertezas que encara e das dificuldades de obtenção de renda du-rante a pandemia, a fala trazida na introdução demonstra que ele prefere seguir como autônomo.

Uma conversa recente que tive com Simone é bastante elucidativa de como ela se situa diante da estratégia de vida assumida por ela. Perguntei se ela se considerava uma empreendedora: “Às vezes, sim. Outras vezes, eu acho que sou só insistente mesmo.” Pareceu creditar à ideia de insistente o fato de não pros-perar economicamente, enquanto o empreendedorismo fica associado ao êxito nessa seara. Além dessa resposta, Simone me descreveu porque, mesmo diante dessa instabilidade, não considerava o retorno ao mercado de trabalho formal como uma saída desejável: “Se eu trabalhasse de carteira assinada, ia ganhar a mesma coisa que ganho como comerciante”. Ela comentou que não desejava mais “trabalhar para os outros”, pois o esforço não é reconhecido. Ainda, segundo ela, as mulheres acabam sofrendo mais no trabalho de carteira assinada, pois também não reconhecem a necessidade de cuidado dos filhos: “Quando querem, demitem a gente”.

Carla, minha outra interlocutora, possui um negócio com Jean, seu marido. Os dois gerem um carrinho de espetinhos de churrasco, na comunidade onde moram. Ela sempre trabalhou em restaurantes, com vínculos formais. Ele também sempre lidou com comida, desde que chegou ao Rio de Janeiro (ambos nasceram no Ceará). Jean mantém seu trabalho como garçom em uma chur-rascaria e divide as jornadas com o negócio familiar, que foi aberto após Jean tirar férias e decidir investir um dinheiro que havia guardado até então. Já Carla resolveu pedir demissão do restaurante em que trabalhava, para se dedicar so-mente ao empreendimento recém-criado.

Carla e Jean também manifestam incômodo com as condições que encararam em sua trajetória profissional como assalariados. A ideia de trabalhar para os outros é mobilizada constantemente de maneira negativa, como forma de explicar a estratégia de vida escolhida pelo casal. Carla fala de como o trabalho que desempenha atualmente acaba sendo bastante cansativo, mas sente alívio pelo fato de não precisar sair mais da Maré para trabalhar, encarar ônibus cheios e grandes deslocamentos. Jean comenta com frequência das precárias condições que encara na churrascaria que trabalha, com poucas folgas, rendimentos injustos e jornadas cansativas. Ele aspira aumentar o negócio que possui para não ter de depender mais dessa fonte de renda, ou então passar a trabalhar nas churrascarias como autônomo, ganhando por meio de diárias trabalhadas.

Todavia, a ideia de trabalhar para os outros não implica formas individualizadas de condução dessas atividades econômicas. Os negócios de Simone e de Carla e Jean contam com uma intensa rede de ajudas, que possibilita suas divulgações, consumos, compras de estoque e uma série de mutualidades que nebulizam as fronteiras entre a intimidade e a economia, como pontuou Viviana Zelizer (2011). O dinheiro circula incessantemente e em variadas formas, mas não é o único responsável por intermediar as relações, que contam com elementos de confiança e de reciprocidade.

Dessa maneira, o empreendedorismo que se coloca nesse contexto revela práticas como a busca por novas soluções e o enfrentamento de condições adversas e das incertezas que surgem na gestão dos pequenos negócios. Porém, a natureza das atividades desempenhadas também mostra que essas estratégias de vida sempre tiveram de lidar com tais elementos, pois fazem parte de um universo amplo e duradouro de práticas econômicas que escapam do assalariamento. Da mesma forma, os interlocutores aqui citados não optaram por abrir seu negócio porque não conseguiram mais se inserir no mercado de trabalho formal. Embora no caso de Simone e de Vagner tenha havido a demissão de onde trabalhavam, as opções por ocupações autônomas vieram sem que se desejasse o retorno ao assalariamento. É evidente que a narrativa empreendedora atravessa as práticas e pensamentos desses sujeitos. Um exemplo é a diferenciação entre insistente/ empreendedora feita por Simone. Só que essa narrativa parece se hibridizar com questões materiais concretas, como as condições árduas vivenciadas no trabalho formal, e com uma gama de estratégias econômicas que há décadas são parte do horizonte econômico das classes populares. Esse fato pode ser notado por meio das semelhanças existentes entre as atividades desempenhadas por meus interlocutores, e aquelas mapeadas pelo trabalho de Luiz Antônio Machado da Silva (2018), que inclusive chamava a atenção, ainda na década de 1970, para o pouco espaço que a análise econômica dava para a gestão de pequenos comércios como relevante forma de trabalho das camadas populares.

Mais do que somente depurar o que é próprio da normatividade empreendedora e o que pertence a outras formas de organização da vida, esse exercício analítico reforça a importância que o empreendedorismo assume na explicação das estratégias de vida contemporâneas. Mas não emerge nem como solução para todos os males de um mercado de trabalho em transformação, nem como um falseamento das condições profissionais encaradas pelos indivíduos. As experiências práticas aqui mencionadas evidenciam como a possibilidade de agência dos sujeitos e um exame das práticas econômicas reais em seus cotidianos pode ser levada em conta para mapear os diferentes empreendedorismos que surgem neste cenário. Em certas ocupações, sua racionalidade adquire maior importância. Em outras, embora o termo possa ser empregado, poucas transformações materiais e subjetivas ocorrem. O que parece não ter sido alterado é a recorrência do termo para descrever atividades econômicas antes delegadas ao universo da informalidade, como ressaltou Machado da Silva (2018).

Conclusão[editar | editar código-fonte]

O pensamento crítico sobre as formas de trabalho no século XXI, solidificado numa afirmação recorrente e pessimista de que “Agora todo mundo é empresário de si mesmo”, embora carregue fundamentos teóricos sólidos sobre a profusão do discurso sobre o empreendedorismo em uma sociedade pautada por práticas e formas de governo neoliberais, também tem causado um diagnóstico, de certa forma, homogeneizador das estratégias de vida de indivíduos de diferentes classes e grupos sociais. Se há uma profusão de discursos, partindo de variados canais midiáticos, grupos interessados e do meio corporativo, que pensam motoristas de aplicativo, vendedores ambulantes, cozinheiras e manicures, todos como empreendedores, sem distinções, cabe à análise sociológica identificar as práticas econômicas e as formas de organizar a vida dessas ocupações como modo de as colocar em profundidade e diferenciar suas realidades. Do contrário, corremos o risco de assumir como verdadeiro o próprio discurso homogeneizador que estamos a criticar.

Esta tarefa não implica, necessariamente, buscar outra terminologia teórica para cunhar os trabalhadores informais da contemporaneidade. As ressonân-cias e maneiras de lidar com a ideia de empreendedorismo não são as mesmas para todas as ocupações profissionais. Em certos casos, a prática empreendedora de organizar a vida pode apresentar pouca ou nenhuma mudança no co-tidiano de algumas pessoas, que sempre estiveram habituadas a um cenário de incertezas e constantes redefinições de estratégias econômicas. Em outros, pode representar um horizonte emancipatório e de saída de um contexto em que o assalariamento também significa submissão a jornadas extenuantes, as-sédios morais e explorações de todo o tipo. Já em outros casos, que também são muitos, pode implicar a precarização de ocupações que antes possuíam garantias e direitos sociais que, por sua vez, condicionavam uma certa maneira de organização da vida.

Compreender o empreendedorismo não precisamente como um mito ou como conceito a ser abolido, mas como um universo complexo que engloba formas de ganhar a vida das mais diversas, pode permitir que nos aproximemos da maneira como este discurso é encarado pelos que o vivenciam, ou seja, de um empreendedorismo realmente existente, ao invés de nos ater a como ele é propagado pela razão neoliberal. A própria ideia do empreendedorismo como uma racionalidade política, que se conforma a outras maneiras de governar a vida, que se adequa a realidades sociais e é transformada ou cede espaço a outras racionalidades, ensejando um hibridismo, mostra-se produtiva enquanto estratégia política e analítica sobre o neoliberalismo, inclusive para identificar as suas brechas e possibilidades de resistência. Não se renuncia, portanto, a denúncia das maneiras contemporâneas de expropriação da classe trabalhadora, mas busca investigar os diferentes modos em que esta organiza sua vida econômica, concedendo-a importante papel de agência e de ressignificação das práticas de governo da vida, que se conformam de maneira fluida e simultânea a outras que escapam da avalanche neoliberal. Assim, este texto buscou argumentar que o uso do termo empreendedorismo para designar algumas das formas de trabalho da sociedade contemporânea, em especial aquelas antes entendidas sob o guarda-chuva da informalidade, não implica a aceitação de uma racionalidade que subjuga e expropria a força de trabalho em prol de um discurso sobre autonomia e liberdade. Pelo contrário, reconhecê-lo enquanto pertinente significa procurar entender sua forma realmente existente, buscar mapear os diferentes empreendedorismos, formados constantemente por meio dos encontros entre diferentes práticas de organização da vida econômica. A tarefa de compreensão analítica do empreendedorismo e a assunção de sua forma complexa e multifacetada possibilita que pensemos o mercado de trabalho formal de maneira menos idealizada e uniforme, e consideremos as racionalidades e estratégias que partem dos próprios indivíduos, ao invés de apenas levar em conta aquilo que parte das teorias econômicas.

Referências[editar | editar código-fonte]

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Referências gerais[editar | editar código-fonte]

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  2. https://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/1178
  3. Martes (2010: 260) complementa: “Adaptar, crescer, administrar eficientemente a rotina de uma empresa não significa empreender. O ponto mais importante a ser resgatado é a ideia subjacente ao texto de que nenhuma das atividades citadas acima significa inovar.”
  4. É importante destacar que, a despeito do termo “homem” aqui ser utilizado no sentido de indivíduo, as representações dos sujeitos próprios dos estágios capitalistas estão muito associadas com a figura masculina, com pouco ou nenhum espaço para o papel da mulher nesses ambientes e representações, e tampouco para outras formas de trabalho generificadas e delegadas ao feminino.
  5. Em minha dissertação de mestrado, busco mapear e analisar alguns dos espaços e agentes difusores do discurso empreendedor. Ver Cruz Junior (2019).
  6. Sobre isso, ver Guimarães (2020) e Guimarães e Vieira (2020).
  7. Trabalhos como os de Campos (2022) e Rangel (2017) mostram como há, atualmente, diversas ambigui-dades na organização da vida econômica de sujeitos que não estão inseridos no universo do assalaria-mento. Campos (2022) evidencia como o que chama de corre da arte associa aspectos individualistas a uma ajuda mútua entre artistas de rua na busca por fazer dinheiro e garantir sua sobrevivência. Rangel (2017), por sua vez, mostra como o comércio ambulante na Feira da Madrugada em São Paulo reflete uma conduta empreendedora permeada por criticidade e contradições.
  8. Os nomes aqui utilizados são todos fictícios.