Favela é cidade - a emergência imagética da cidade periférica

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco


O verbete aborda a relação entre as favelas e a cidade do Rio de Janeiro, destacando como esses espaços se interligam e influenciam a vida urbana. Ele também discute o papel da comunicação comunitária e do acesso à cultura na transformação das favelas em parte integrante da cidade, ressaltando a importância do empoderamento das comunidades na produção de conhecimento e mídia.

Autoria: Adair Rocha.

Sobre[editar | editar código-fonte]

A singularidade da cidade do Rio de Janeiro pode ser identificada com a imagem invertida do espelho[1], que tem como identidade a sua diversidade.

Assim, Leblon tem Vidigal, Cantagalo tem Ipanema, Copacabana tem Cabritos e tem Guararapes, com a Babilônia e o “Chapéu”, enquanto Borel, Formiga e Salgueiro formam o anel da Tijuca, e Gávea e São Conrado enquadram a Rocinha, que também expande seu território.

Situação modificada já nos anos setenta, com o fenômeno das remoções como nos mostram Pilar e Quackem Remoção, documentário de 2105, quando Catacumba e Praia do Pinto deixam forçadamente a Lagoa Rodrigo de Freitas para as “soluções” dos Conjuntos Habitacionais da Cidade de Deus, o Cesarão em Santa Cruz e outros.

A proximidade favela/asfalto gera, sem dúvida, a intensidade da tensão da cidade, que desafia, sobretudo, o desempenho de seus papéis institucionais, que precisam cuidar da postura diante das diferenças e das desigualdades.

Diante disso evidenciam-se algumas posturas contraditórias: de um lado, o reconhecimento e o respeito da diferença. De outro, as manifestações e práticas, cada vez mais preconceituosas de racismo, homofobia, machismo, bem como a quebra da liberdade e autonomia no campo religioso, de gênero e na desqualificação da política. Portanto, torna-se necessário, isso sim, o rompimento com a normalidade da desigualdade.

Isso gera impasses que a mídia de massas chama de “guerra”. Qual o modelo de Estado ederegime econômico entra em cena?

O alinhamento hegemônico hoje vai na direção da conformação do estado mínimo, que atribui ao mercado e ao poder econômico, portanto, o papel de consumo que privatiza o acesso da população às necessidades básicas de saúde, educação, moradia, transporte e cultura. Tem na privatização seu objetivo central. O que se contrapõe, naturalmente, ao modelo de estado ampliado, que prioriza o acesso da população, especialmente a empobrecida, às políticas públicas básicas citadas.

O processo democrático é intrinsecamente inconcluso, onde cada conquista chama novas. Quanto ao Estado, pode-se falar da “incompletude”[2], na medida em que não dá conta de suprir a necessidade da população empobrecida. Muitas vezes, comumente se diz, prioriza a repressão como forma de controle, e as políticas sociais sempre ficam incompletas, como no caso da implantação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora).

A cidade do Rio de Janeiro e o seu entorno padecem da fragilidade da gestão territorial que definem município, estado e união na mesma tendência de rompimento com as políticas públicas e conquistas, especialmente dos setores empobrecidos. Situe-se como um dos exemplos mais evidentes e gritantes o tratamento de desmonte que vem sendo dado à UERJ a ao HUPE, sem condições do seu exercício acadêmico pela falta de pagamento aos professores, funcionários e alunos bolsistas, bem como as verbas de pesquisa e de manutenção.

Entre os papéis institucionais, vou me deter em um deles, realizado na PUC-Rio, mais especificamente, no projeto Comunicar, do Núcleo de Comunicação Comunitária.

Trata-se de um curso que se realiza nos últimos sete anos, e que coincide com a criação das UPPsCinema, Criação e Pensamento, dirigido, especialmentepara moradores das favelas. Iniciado com professores do Curso de Cinema da Universidade, já há hoje a incorporação de ex-aluno como professor, como é o caso de Itamar Silva, morador do Morro Santa Martae que participou ativamente da primeira edição do curso.

Que cidade é essa que o cinema e os meios de comunicação vão mostrar? A contribuição a partir de cineastas, produtores, pensadores, no lugar da radicalidade chamada favela.

O caminho da Comunicação Comunitária[editar | editar código-fonte]

Tal núcleo ou projeto nasce em função das perguntas e questões que a favela e a periferia traziam para a Universidade, ou que possibilitava a universalização dos encontros com a pesquisa e com a diversidade dos saberes, que, por sua vez, passam longe das mídias ditas de massa.

Assim, o projeto Comunicar e seu núcleo de comunicação comunitária vão assessorando eco-criandoformas de informaçãoe comunicaçãoque expressam o “local” em sua múltipla significação. Isto é, o resultado intenso e tenso das contradições econômicas, políticas e culturais do universo urbano, no “campus” representado, invertendo papéis de objetos submissos de produção de conhecimento e de mercado, para sujeitos que conquistam sua autonomia e independência. Aproxima-se do que Agamben afirma da Cidade de Deus e seus anticristos. Toda cidade é de Deus, inversão simbólica de sua afirmação e significação.

As 2 ½ décadas recentes se caracterizam pelo fenômeno do acesso de setores das favelas e das periferias às universidades. Destacam-se no Rio de Janeiro duas importantes experiências: a política de cotas da UERJ, que recebe 49,5% de seus alunos das escolas públicas; a prática da PUC-Rio com o estabelecimento de convênios com os pré-vestibulares comunitários, da Baixada inicialmente, mas que rapidamente se espalhou para todo o Brasil. Isso vai inspirar a criação de outra política pública – o Prouni, para o acesso às universidades particulares. Isso tem mudado a cara das universidades, com a tez muito mais parecida com a d acidade e com o país. O que muda significativamente o modo acadêmico e intelectual de ver e de atuar. Agora se pode falar da cidade desde ela mesma a partir de diferentes protagonistas.

Dito isto, é possível explicitar o que está em curso no projeto Cinema, Criação e Pensamento, dirigido especialmente aos moradores de favela.

Qual é a imagem de cidade que as telas devem revelar. A partir do Santa Marta, do Chapéu Mangueira e da Babilônia e ainda da Rocinha, da Cidade de Deus e do Vidigal, acosteando-se também no Alemão e suas favelas, bem como as da Maré. Uma série de documentários, ficções e espaços de produção vão sendo criados e fortalecidos, potencializando a cidade nas fraldas do seu infinito.

Pode-se dizer que, da mesma forma que as manifestações de 2013 no Brasil espelharam, entre outras novidades, o confronto dos noticiários das mídias de massa e seus métodos-grande parte das vezes, posicionados politicamente com o disfarce da neutralidade e da independência-, com a atuação da chamada "mídia ninja", que de dentro de cada movimento do evento, evidenciava, através de celulares e de pequenas câmeras, outra versão dos acontecimentos.

Assim, os próprios negros e empobrecidos, tendo à mão o poder ou a disposição da direção, do roteiro, da fotografia, enfim, poderão aproximar a imagem e sua leitura, cada vez mais, da realidade, cujo caos e contradição evidenciam a situação da cidade e da sociedade.

Poder-se-ia propor como exercício acadêmico a análise do que está em curso nas favelas e periferias, em termos de suas rotinas, cultura, sistema de trocas etc. Possivelmente haveria uma ‘disputa de imagens’ a partir desses resultados que, certamente confrontariam os discursos das mídias de massa.

Os ecos da liberdade e da escravidão[editar | editar código-fonte]

Alguns sintomas podem ser verificados, a olho nu, do efeito de políticas públicas existentes em favelas e em expressões marginais da cidade, particularmente com a presença do Programa Cultura Viva ou os Pontos de Cultura, criado pelo Ministério da Cultura, em 2005, no governo Lula, com Gilberto Gil, e posteriormente, com algumas parcerias locais, tanto em âmbito estadual como municipal, como se deu na capital do Rio, por exemplo.

Inicialmente, como assessor do Ministro Gil, pude participar da criação do Programa e, posteriormente, como chefe da Representação do MinC, no Rio e no Espírito Santo, cuidei da efetivação dos convênios, na consolidação da gestão territorial.

Partindo do pressuposto de que quem faz cultura é a população, em sua expressão diversa, plural, étnica, religiosa, política, de classe e em todo ar, o papel doestado e dos governos, portanto, é o de proporcionar e garantir as possibilidades de acesso aos que têm direito e à potencialidade emergente das sociedades urbanas, mas também do campo ou da 'roça'.

Nessa condição, pude acompanhar a evolução e a mudança que o acesso possibilita. Apenas citando alguns exemplos, o bloco carnavalescodo “Loucura Suburbana”, que se organiza a partir do Hospital Nise da Silveira, que trabalha a experiência da ‘loucura fora dos muros dos manicômios’, mostrou uma diferença considerável, por exemplo, na qualidade das letras dos sambas concorrentes aos desfiles do bloco pelas ruas do Engenho de Dentro. Diferença notada pelos componentes do júri nas escolhas dos sambas do “Loucura”, do qual faço parte, desde bem antes da transformação em Ponto de Cultura; assimcomo Noca da Portela;Luis Carlos Magalhães (atual presidente da Portela); Marisa, filha de Zé Kétti e outros/as que acompanhamos a eficácia dasoficinas que os Pontos proporcionaram.

Pode-se dizer o mesmo dos Pontos ligados ao jongo, da Serrinha aos demais, cujas exigências de qualificação levaram à criação do Pontão de Cultura, parceria do Centro de Estudos Sociais da UFF com o IPHAN.

Também as Folias de Reis adquirem novo ar de existência e criação, como diria Deleuze. As Folias, de fato, são pontos seculares de cultura e que, na maioria das vezes, não sobrevive à concorrência urbana, do trabalho e do consumo de cultura descartável, vendidos pela lógica do espetáculo.

A existência dos Pontos de Cultura como política pública vocacionada para o fortalecimento da diversidade cultural, que identifica favelas e periferias, chega também à zona rural e se inclui na perspectiva da redistribuição de renda e de equipamentos. Sua realização só se torna possível, como dito anteriormente, dentro de um no modelo de estado ampliado. Pode se dizer que a criação e a produção na área de cultura interferem na perspectiva política e cidadã dos processos de natureza democrática.

Saliente-se aqui que a experiência inédita na formação acadêmica do audiovisual para moradores de favela, descrita antes, torna-se também um Ponto de Cultura, exatamente em homenagem a um dos 'padrinhos originários' e inspirador desse projeto, o já saudoso cineasta e mestre documentarista Eduardo Coutinho. Coutinho participou de longa conversa com os componentes de Cinema, Criação e Pensamento poucos dias antes de sua trágica morte.

O debate em torno do acesso e da autonomia e independência da palavra e da imagem reviram a significação da cidade. Assim, a potência e a fragilidade da cidade estão em todo seu território.

Portanto, o cuidado com essa interação palavra/imagem é estratégia política nesse tempo de destruição arquitetada pela naturalização das formas de dominação com apoio e projeto das mídias de massa.
 

Bibliografia[editar | editar código-fonte]

  1. ROCHA, Adair. Cidade cerzida: a costura da cidadania no Morro Santa Marta. Rio de Janeiro: Ed. Puc-Rio, Pallas, 2012.
  2. SILVA, Jailson de Souza e; BARBOSA, Jorge Luiz; FAUSTINI, Marcus Vinicius. O novo carioca. Rio de Janeiro: Mórula Editora, 2012.

AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Ed UFMG, 2005.

CARVALHO, Cynthia Paes de (Org.). Favelas e Organizações Comunitárias. Petrópolis: Ed. Vozes, 1994.

DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora Escuta, 2002.

ROCHA, Adair. Cidade cerzida: a costura da cidadania no Morro Santa Marta. Rio de Janeiro: Ed. Puc-Rio, Pallas, 2012.  

Ver também[editar | editar código-fonte]