Favela como margem, território da violência e território de negócios
Autoria: Márcia Pereira Leite e Ramon Chaves Gomes.
O verbete examina as diferentes modalidades de construção social das favelas cariocas como “margens do Estado” (Das & Poole, 2014), ao longo de seus mais de cem anos de existência. Analisa como as modalidades de identificação (Noiriel, 2007) aplicadas a essas localidades e a seus moradores os configuram como o “outro” da cidade, em diferentes contextos históricos em que as favelas são objeto de políticas públicas variadas. Demonstra como essas modalidades de identificação embasam e, simultaneamente, justificam formas específicas de gestão estatal desses territórios e populações, através de dispositivos que delimitam as possibilidades de acesso aos equipamentos urbanos e serviços públicos e reproduzem dinâmicas segregatórias no Rio de Janeiro. O verbete distingue e analisa três momentos dessa construção social do lugar das favelas na cidade.
O primeiro, ao final do século XIX, quando as favelas são percebidas como um problema social, higiênico e estético que se opõe à utopia de uma cidade limpa e sem miseráveis, alimenta discursos, propostas e políticas de erradicação desses "territórios da pobreza" e da marginalidade que dela derivaria através da destruição desses assentamentos habitacionais e da remoção de seus moradores para outras áreas (distantes) dos bairros mais valorizados da cidade (Valladares, 2005). Discursos, políticas e propostas que se concretizam timidamente, nos anos 40, com a experiência dos parques proletários e, de forma expressiva, nos anos 1968/1975 (período remocionista), com a destruição de cerca de sessenta favelas pelo governo do estado, afetando em torno de cem mil pessoas alocadas em conjuntos habitacionais na periferia do Rio de Janeiro (Burgos, 1998).
O segundo momento pode ser localizado a partir dos anos 1980, quando o tráfico de drogas enquistado nas favelas se internacionaliza e passa a gerar fluxos financeiros vultuosos decorrentes do comércio ilegal da cocaína e intensas disputas pelos seus pontos de venda a varejo, levando os bandos de traficantes fortemente armados a exercerem um domínio militar sobre essas localidades. As favelas passaram, então, a ser representadas como "territórios da violência", tematizadas quase que exclusivamente pela violência e insegurança que trariam aos bairros, e seus moradores são identificados como "classes perigosas" (Chevalier, 1984). No contexto anterior, favela e favelado também representavam um "perigo" para a cidade, mas por sua associação a trabalhadores não plenamente inseridos no mercado de trabalho formal e ao potencial explosivo dos conflitos de classe (como as formulações sobre a "marginalidade" de seus habitantes expressam). Nesse novo contexto, entretanto, o "perigo" representado pelas favelas perdeu sua dimensão política anterior, referindo-se doravante à segurança individual, física e patrimonial dos habitantes dos bairros. As representações desses espaços urbanos incidem sobre a proximidade territorial de seus habitantes com os traficantes, traduzindo-a como expressão de uma cumplicidade dos primeiros em relação aos segundos, da mesma forma que a vulnerabilidade econômica e social dos favelados é interpretada como indicador do risco de adesão à criminalidade (Leite, 2008; Machado da Silva, 2008). A construção social da favela como "território da violência" passou a orientar e legitimar a divisão da cidade entre favela e asfalto. As reivindicações de seus moradores por acesso à cidade e à cidadania deixaram de ser apreendidas como expressão dos conflitos de classe para serem tematizadas como uma questão de segurança pública (Leite, 2001). Produziu-se, assim, uma leitura restrita da cidadania que justificou o escopo das políticas públicas implementadas nesses territórios: políticas de urbanização limitadas, estímulo e financiamento de projetos sociais pontuais e direcionados sobretudo aos jovens, considerados os segmentos mais seduzidos pelo crime violento (Rocha, 2015) e uma política de segurança pública baseada na guerra contra traficantes de drogas e no extermínio dos "favelados violentos" como modalidade de controle social desses territórios (Leite, 2013).
Por fim, o terceiro momento foi inaugurado em dezembro de 2008, com o projeto estadual de "pacificação" das favelas, através da implantação de Unidades de Polícia Pacificadora em algumas dessas localidades. A novidade dessa política de segurança pública em algumas favelas deveu-se, como se sabe, à intencionalidade de produzir um “cinturão de segurança” em determinadas áreas da cidade no contexto dos “grandes eventos” então realizados no Rio de Janeiro. Contudo, paralelamente, essa política pública também esteve associada à identificação das potencialidades do mercado (imobiliário, turístico e de serviços) de algumas dessas localidades e a diversos agenciamentos, efetuados pelos governos municipal e federal, para viabilizá-las como novos territórios de negócios: formalização de serviços e da habitação, patrocínio e financiamento a projetos de ONGs e empresas, entre eles; bem como estímulo ao empreendedorismo local (Leite, 2018). Argumentamos que se trata (ou tratou – considerando sua crise) de um experimento sobre uma nova modalidade de gestão desses territórios, combinando controle policial do território e da população (e não meramente controle dos/repressão aos traficantes de drogas ilícitas) e diversos dispositivos governamentais que tanto operam pelo controle e coerção (Cunha e Mello, 2011; Ost e Fleury, 2013; Magalhães, 2013; Leite, 2014, entre outros), como visam produzir consenso em torno do que foi denominado pelo Estado como "inclusão social" dos moradores de favelas: a transformação de algumas dessas favelas em territórios de negócio para alguns de seus moradores (aqueles que obtiverem sucesso em adaptar seus pequenos negócios e/ou habilidades como micro-empreendedorismo), mas sobretudo para grandes e médias empresas não necessariamente vinculadas à economia local (Gomes, 2016; Leite, 2015).