Favelas e Comunidade Política – A partir dos anos 1960
Autoria: Editora Fiocruz e Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
O presente verbete é uma parte do capítulo 06 do livro “A sociologia do Brasil urbano”, intitulado “Favelas e Comunidade Política: a continuidade da estrutura de controle social”. O capítulo é de Anthony Leeds e Elizabeth Leeds e o livro é publicado pela Editora Fiocruz. A utilização do texto foi gentilmente acordada entre a Editora Fiocruz e a equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco.
A Era do Controle Renovado, da Erradicação e da Repressão[editar | editar código-fonte]
Os meses restantes de 1962 assistiram a uma completa reorganização dos serviços sociais do Estado. O Serfha foi desfeito e, em agosto, suas funções passaram ao Serviço Social das Favelas e suas atividades físicas para o Departamento de Recuperação de Favelas (CRF).
O Serviço Social, por sua vez, autorizou cada administração regional a tratar de suas próprias favelas, exceto em caso de presença da Fundação Leão XIII,32 que Lacerda, por sua série de manobras, havia transformado em dezembro de 1962 de seu estatuto 1960 de pessoa jurídica privada operando sob o controle e financiamento do Estado em uma subordinada inoperante da Companhia de Habitação Popular do Estado da Guanabara (Cohab),33 e em 1964 em um órgão estatal semiautônomo subordinado à Secretaria de Serviços Sociais (entrevista com Josefina Albano, 1966). Também foram incluídos sob a secretaria, na ampla reorganização posterior da administração do estado feita por Lacerda,34 em dezembro de 1962, a Cohab, o Departamento de Recuperação de Favelas e o antigo Serviço Social.
A criação da Cohab inicia uma era de erradicação na política relativa à favela tanto estadual quanto nacional, apesar dos objetivos expressos da Cohab de assistência às favelas para melhorar, construir casas e, com a ajuda da subordinada Fundação Leão XIII, urbanizar. A criação de uma autoridade de construção habitacional de baixo custo podia apenas significar uma intenção de construir casas de baixo custo em grande escala. Sugeriu-se que a Cohab foi criada, em parte, para arrecadar uma soma considerável de dinheiro por meio do Acordo do Fundo de Trigo Estados Unidos-Brasil, dando assim ao orçamento do estado da Guanabara um auxílio significativo em dinheiro isento de tributação. Essa observação é de especial interesse em vista da criação do Conselho Federal de Habitação, em 25 de junho de 1962, pelo governo Goulart (Decreto Federal n. 1, 281, 1962).
As cláusulas do decreto parecem orientar-se, em primeiro lugar, para a abertura de canais ao pobre (art. 2, I e X, art. 3, parágrafo 4), provavelmente uma continuação do populismo getulista bem como parte da tentativa multifacetada do presidente Goulart de lançar uma base política firme no seio do proletariado urbano, especialmente durante o período em que foi bloqueado pela imposição do parlamentarismo. Segundo, parece orientar-se no sentido do estabelecimento do controle federal sobre o dinheiro vindo do exterior, uma característica importante nas jogadas de poder político no Brasil, quando era possível aos governadores estaduais – como Lacerda e Aluísio Alves – agir como chefes de países soberanos para a obtenção de empréstimos de outras nações soberanas (os Estados Unidos) (ver art. 2, III, XIII, parágrafo único). O Conselho Federal de Habitação deveria também encorajar a pesquisa habitacional (art. 2, VII, VIII) e criar pessoal técnico.
A criação da Cohab pode ser vista como uma resposta à criação do Conselho Federal de Habitação e suas cláusulas porque, em um sentido formal, foi organizado para fazer exatamente as coisas estabelecidas pelo decreto federal. Ao mesmo tempo, ela criava, em um sentido informal, um corpo independente sob o controle de Lacerda (cujo vice-governador, Rafael de Almeida Magalhães, e o genro, Flexa Ribeiro, controlavam 49% da percentagem permitida a acionista privados) com acesso direto às massas proletárias urbanas que ele tentava mobilizar desde a “Batalha do Rio”, em 1948. A Cohab, que, por seus estatutos, podia receber subsídios, forneceu uma base organizacional para a constituição de uma oposição às forças de Goulart. Essa base foi fortalecida e expandida pela captura e incorporação da Fundação Leão XIII ao aparato do Estado nos vários movimentos de 1960, 1962 e 1964. O Serfha, como expressão dos regimes de Kubitschek e de Quadros (sendo que com o partido do último, a UDN, Lacerda havia também chegado ao poder como governador), representava uma base remanescente da ameaça das massas urbanas ao controle político de Lacerda. Ele foi desfeito, uma vez que sua política significava uma crescente independência e participação do proletariado nas decisões políticas e socioadministrativas, um desenvolvi- mento antagônico aos interesses representados por Lacerda: partido, Igreja, negócios e os seus próprios.
Voltemos ao acordo do Fundo do Trigo. Os termos do acordo entre Lacerda e a AID especificavam que, conforme o título 1 da Lei 480 da República dos Estados Unidos da América, um bilhão de cruzeiros (US$ 2.857.000) obtidos pela venda de produtos agrícolas ao Brasil seriam usados para a urbani- zação parcial de algumas favelas, para a urbanização completa de uma grande favela, para a construção de 2.250 casas de baixo custo, para a “reacomodação” dos moradores das favelas e para a construção de um grande posto de saúde em uma distante região do estado. O estado da Guanabara também contri- buiria com 3% de sua renda anual (Usis, 1962). Deve-se observar que um pedido anterior de dinheiro ao BID, feito em maio de 1961, não havia sido aceito na época do acordo com a AID (Fundação Leão XIII, 1962).
A jogada de Lacerda para a obtenção de apoio internacional e a tentativa, à qual se deu grande publicidade, de reconstrução em grande escala das favelas e sua posterior remoção devem ser vistas no contexto da política nacional brasileira pré-golpe, nos inícios dos anos 60. Interessado na Presidência, Lacerda, o ex-jovem jornalista radical, julgou oportuno seguir uma linha mais conservadora nos anos 60. Rios (1964: 168) observa:
A candidatura de Carlos Lacerda para a Presidência da República, num contexto claramente antirreformista e de direita, mobilizando grandes recursos, parece anunciar... a fusão de partidos do centro em torno de seu nome, numa reformulação das posições conservadoras que tendem a ir para os extremos de modo a facilitar o ataque aos adversários.
A coincidência parece sugerir que Lacerda já buscava a Presidência desde os fins de 1961, ou em 1962 (ver Skidmore, 1967: 274, passim).
Apesar de sua atribuição, nos termos do Acordo do Fundo do Trigo da AID (ver Apêndice II), de reconstruir e urbanizar assim como de erradicar as favelas, declarações em documentos da Cohab criticam as administrações anteriores por não terem pensado em termos de erradicação, sugerindo ser esta a única política realista:
Depois de 1955, o Estado voltou seus olhos mais uma vez para o pro- blema. Criou vários órgãos e instituições que tentaram por várias formas e meios minimizar os efeitos das pressões socioeconômicas que atuaram sobre a população favelada. Nenhum deles tinha como objetivo a erradicação dessas aglomerações. O atual governo (Lacer- da) foi o primeiro a enfrentar o problema em termos de erradicação (Estado da Guanabara, Cohab, 1963-65: 4).
A política de erradicação ganhou amplo apoio econômico e institucional com a criação, em 1964, após o golpe militar, do Banco Nacional da Habitação (BNH), com Sandra Cavalcanti, primeira secretária de Serviços Sociais de Lacerda, como sua primeira presidente (Lei 4.380, 21 de agosto de 1964). A orientação do BNH era decididamente a da escola monetarista do ministro da Fazenda Roberto Campos (que, em conexão com o Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas, Ipea, e conselheiros americanos, propôs a ideia de um esforço habitacional maciço como forma de dar impulso à economia e foi instrumento da criação de um banco da habitação); os monetaristas basea- vam o planejamento e a ação predominantemente em políticas fiscais mais do que nas institucionais, características especialmente dos anos Kubitschek e de economistas como o ministro do Planejamento Celso Furtado, ex-diretor da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste e ex-membro da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), órgão das Nações Unidas.
O banco, operando no interior desse quadro, argumentava que colocando grandes somas de dinheiro, como política fiscal de investimento, na habitação iria (a) criar muitos empregos; (b) contribuir para elevar os níveis de qualificação dos trabalhadores, e consequentemente a produtividade;
(c) estimular a indústria nacional;35 (d) estimular a indústria do aço; (e) rea- tivar o mercado de capitais, que durante um longo período antes de 1964 estivera notadamente em depressão, por causa da manutenção das leis de controle de aluguel pela administração federal – ambas medidas populistas e tentativas de manter suficientemente baixos os custos da habitação dispo- nível para acomodar a contínua migração para as cidades. O efeito havia sido, todavia, o de desencorajar novas construções – uma combinação de circunstâncias. O BNH, assim, argumentava que a construção de habitações em massa resolveria o “problema da favela” e contribuiria poderosamente para o renascimento da economia – em má situação, segundo o BNH, desde as desastrosas políticas de João Goulart (e mesmo em razão delas), mas segundo economistas como Werner Baer, desde os fins dos anos 50, por causa dos processos a longo prazo de superexpansão das capacidades de produção em relação aos mercados consumidores. Para alcançar esses objetivos, percebia-se também como essencial a eliminação da duradoura inflação – o monstro monetarista –, cuja abrupta subida em 1963 foi também atribuída a Goulart e tem sido enganosa e sistematicamente utilizada como base para a comparação de cada administração desde 1964. Enquanto a inflação estava sendo controlada, instituições especiais, tais como a “correção monetária”, que mantinha o valor dos capitais investidos, foram utilizadas pelo BNH.
Pouca reflexão e ainda menos pesquisa foram dedicadas à capacidade dos moradores da favela de pagar pelo “embrião” construído pela Cohab, ou pelas casas mínimas nos projetos habitacionais como a Vila Kennedy. A capacidade de pagar era, e ainda é, concebida como uma simples função percentual da renda familiar, e não como uma complexa política de alocação a longo prazo levada adiante pela família. Assim, por exemplo, a inclusão da “correção monetária” – uma contínua correção na soma paga sobre amortizações das casas-embrião e dos apartamentos, baseada na taxa de desvalorização do dinheiro – nos pagamentos de amortização produziu mais ou menos um acréscimo de 60% nos pagamentos dessas casas mínimas, porque as políticas de financiamento a longo prazo para pessoas de baixo nível de renda sempre consideraram a queda tanto dos custos absolutos quanto dos custos relativos dos pagamentos onde não houvesse “correção” em um sistema de pagamento por prestação. O problema tornou-se mais grave em virtude do fato de que, desde 1964, os aumentos salariais não foram concedidos nem na mesma época, nem na mesma medida em que o custo de vida aumentava.
Essa situação deriva diretamente do salário nacional, do controle da infla- ção e das políticas de investimento dos governos militares na forma como são realizadas, no caso em questão, por intermédio do órgão estatal da Cohab e, mais tarde, por intermédio deste e da Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Rio de Janeiro (Chisam) (ver adiante), ambas capazes de usar a política ou a força militar quando necessário. Os interes- ses imediatamente ligados a essas políticas eram os da indústria da constru- ção e do mercado de capitais, ambos tendo apoiado vigorosamente Lacerda e as políticas nacionais.
Além disso, nem a Cohab nem Lacerda refletiram sobre o fato de que remover famílias faveladas para enclaves proletários isolados, distantes dos mercados de trabalho da cidade, criaria uma forte pressão econômica sobre famílias cujos orçamentos já eram esticados até o limite máximo. Produzi- riam também fortes pressões sociais devido ao tempo de transporte neces- sário para chegar ao trabalho, de modo que os homens geralmente permaneceriam na cidade durante a semana. Muitas famílias removidas de favelas para vilas desfizeram-se, tendo os homens encontrado novas famí- lias, voltando a inchar outras favelas, e suas mulheres ficado isoladas, sem trabalho e com crianças, ou também voltado para favelas na cidade.
Nessa última etapa da história da relação favela-administração, as favelas são novamente vistas como aberrações sociais nocivas, devendo ser removi- das do playground de elite da “gente boa” (ver nota 9, itens d, e, f, e a discussão sobre texto da Fundação Leão XIII adiante). As poucas tentativas de oposi- ção a essa política encontraram vigorosa e efetiva reação por parte dos órgãos governamentais tanto a nível estadual como federal, como descre- veremos abaixo.
As realizações mais notáveis da Cohab encontram-se na área da remoção e transferência das populações das favelas e da construção das vilas Kennedy, Aliança, Esperança e Cidade de Deus (!!), embora tenha havido algumas tentativas ao longo de 1965 de urbanização in loco de algumas poucas favelas.36 Uma das duas primeiras favelas a serem removidas pela Cohab foi a do Morro do Pasmado, localizado em uma área turística por excelência com vista para a baía de Guanabara. Correu amplamente o rumor de que essa favela extraordinariamente visível foi removida para dar lugar a um hotel Hilton, e, com efeito, o Relatório Geral da Cohab lista, entre seus projetos, “Morro do Pasmado – construção do Hotel” (Estado da Guanabara, Cohab, 1963-65: 27).
A reação da população favelada às remoções iniciais e à ameaça de novas remoções foi muito negativa. Estudo de Salmen feito em 1966 relata um grau significativo de insatisfação por parte dos moradores da favela remo- vidos para as vilas Kennedy e Aliança (Salmen, 1969). O fracasso do candi- dato de Lacerda na eleição governamental de 1965, Flexa Ribeiro, seu con- traparente, parece ser, em grande parte, atribuível a essa reação negativa.
O maior número de votos contra Flexa Ribeiro foi sistematicamente das áreas proletárias que incluíam o maior número de favelas. A distribui- ção estatística reforça as impressões que tivemos em algumas favelas com base em entrevistas, sendo praticamente todas explicitamente anti-Lacerda, contra o governo nacional militar a quem ele e as dificuldades econômi- cas estavam associados, a seu ver, e, evidentemente, contra o “pupilo” de Lacerda, Flexa Ribeiro.37
O resultado da eleição de 1965 na Guanabara levou ao poder Negrão de Lima, um governo que, apadrinhado pelo PTB-PSD, tornou-se oposição ao governo federal e, consequentemente, a suas políticas expressas a nível estatal. Este reagiu imediatamente, em crise, suprimindo todos os velhos partidos políticos e criando a miragem do aparente sistema bipartidário atual.
As privações, que atingiram não apenas os entrevistados no estudo de Salmen mas também os milhares de removidos desde 1966, são de natureza econômica, social e emocional. Um breve estudo de caso de duas espécies de problema tipicamente encontradas ilustrarão essas dificuldades. A família que descrevemos está talvez em melhor situação do que muitas retiradas à força das favelas, mas seus problemas são típicos. Sua favela situava-se em uma área de elite do Rio, mas com um pequeno enclave de indústrias com salários comparativamente bons e algumas embaixadas que requeriam trabalho doméstico. Eduardo, 29 anos, ia a pé para o seu trabalho em uma fábrica têxtil; trabalhava das 16 horas à meia-noite, ganhando três salários mínimos na fábrica. Esse horário lhe permitia ter uma série de trabalhos secundários (biscates, ver Silberstein, 1969) como pintor de casas em suas horas vagas pela manhã. Vilma, sua mulher, 26 anos, ia também a pé para seu trabalho matinal como empregada em uma embaixada, o que deixava livres as suas tardes para dar almoço ao marido e tomar conta do filho de 4 anos e da sogra idosa e doente que morava com eles. Não pagavam aluguel, tendo construído a casa, e, com o salário de ambos e uma pequena pensão de sua mãe, podiam apenas se virar, gastando principalmente com alimenta- ção, abastecimento doméstico, remédios, peças de vestuário ocasionais e alguma ajuda à mãe de Vilma. Em março de 1966, a favela foi removida e a população colocada em um conjunto habitacional em um distante distrito do Rio, o que exigia duas horas de viagem de ônibus de ida e duas de volta, oito passagens por dia (cerca de 50-60% de um salário mínimo), pagamento de cuidadora para o filho, de uma amortização mais cara do que eles podiam arcar e a redução dos biscates de Eduardo devido às dificuldades de horário, e aumentava a tensão emocional entre marido e mulher porque seus horários só coincidiam aos domingos. Para muitas outras famílias, tal mudança signi- ficou também a perda de uma parte ou de todo o salário da mulher, uma vez que os empregos domésticos mais bem pagos encontram-se apenas na distante Zona Sul, longe dos novos conjuntos habitacionais. Além disso, significou a perda do dinheiro de reserva obtido pelas crianças como carregadores para as matronas de classe média nas feiras da Zona Sul, ou como engraxates ou meninos de recado nas áreas comerciais da cidade.
A era de erradicação, controle e repressão é também bem exemplificada pela história e atividades da Fundação Leão XIII nos anos 60 e por sua subsidiária de curta vida, o Bemdoc (Brasil-Estados Unidos – Movimento para o Desenvolvimento e Organização de Comunidades).
Nos fins da década de 1950 e início dos anos 60, a fundação estava moribunda, tendo as suas atividades e muitas outras sido englobadas pelo Serfha e pela Coordenação de Serviços Sociais dirigida por Rios. Toda a ativi- dade que a fundação desenvolveu havia sido, em sua maior parte, financiada pelo Estado (Berson, 1964: 28). Assim, na verdade, ela já era instrumento do Estado, embora ainda existisse como pessoa jurídica privada sob a influência conservadora de dom Jaime de Barros Câmara e possuísse ainda oficialmente centros em um grande número de importantes favelas, como assinalamos anteriormente.
Esse estatuto permaneceu durante os primeiros dois anos do governo Lacerda na Guanabara. Ainda não desemaranhamos completamente a teia política que lhe permitiu conquistar essa estrutura organizacional em 1960, porém ela envolve, entre outros, os elementos que se seguem. Lacerda já havia sido intimamente ligado à Igreja e ao seu chefe da ala direita no Rio, o cardeal Câmara, em muitas questões políticas, especialmente no concernente às batalhas em apoio às escolas paroquiais sob a nova lei nacional de educação (Maciel de Barros, 1960: 442, 504-522), enquanto era ainda deputado federal (ver também Skidmore, 1967: 200, 299, com seus pontos de vista semelhantes).
Em segundo lugar, Lacerda assegurou a candidatura de Quadros à Presidência da República, em 1959, pela legenda da UDN. O próprio Lacerda – talvez, em parte, às custas de Quadros – obteve a vitória sob a legenda da UDN, embora essa aliança, como tantas de Lacerda, fosse provisória. Assim, Lacerda foi pioneiro em uma arena política nova – a cidade-estado do Rio de Janeiro, não mais um apêndice nacional como o Distrito Federal, mas um estado autônomo, maduro, política e administrativamente igual aos demais estados.
Dessa forma, Lacerda chegou ao poder com o múltiplo apoio, por um lado, da ala direita da Igreja e dos interesses corporativos de grandes empresas, e por outro de um certo populismo, derivado das posturas de Quadros no governo e na campanha, e das próprias declarações anteriores de Lacerda que pediam reforma administrativa, bom governo e maiores benefícios para o povo. A história dos cinco anos do seu governo pode ser entendida nos termos da predileção bastante clara de Lacerda pelo primeiro conjunto de interesses, conexões e influências; da crescente e dissonante oposição entre os dois conjuntos de interesses a nível federal durante os regimes de Quadros e Goulart; do explícito e abrupto movimento em direção ao primeiro conjunto, começando com o golpe de 1964 (no qual – como na queda e Quadros – Lacerda, esperando alcançar a Presidência, desempenhou um papel ativo), e de sua tentativa, entre 1964 e a posse de Negrão no cargo, em 1966, de fixar raízes permanentes de poder na ampla população urbana, e especialmente proletária, da Guanabara.
A Fundação Leão XIII tem uma história interessante com relação a essa sequência. Como dissemos, ela foi originalmente, e permaneceu até 1962 (ver Decreto [GB] n. 1041, 7 de junho de 1962) como uma instituição privada, escorada pela Igreja, para o bem-estar social. Como o Apêndice II indica, por volta de 1961 ela havia se tornado – em virtude do amplo apoio financeiro estatal e da “compreensão” do cardeal Câmara – um órgão estatal de facto. Lacerda escolheu esse órgão ambiguamente situado para representar o Estado e para ser o canal para a verba da AID fornecida pelo acordo. A fundação foi também designada como órgão responsável por desenvolver atividades de urbanização. Assim, a organização privada, religiosa, de bem-estar social, estabelecida originalmente com o objetivo principal de combater a influência comunista e ainda supervisionar 34 favelas importantes, tornou-se, por curto período, o instrumento oficial de urbanização e o receptor dos fundos internacionais concedidos ao estado.
Na reforma administrativa geral de agosto-dezembro de 1962, depois da extinção da Coordenação e da criação da Secretaria de Serviços Sociais, a Fundação Leão XIII foi absorvida pela então recente Companhia Estadual de Habitação Popular da Guanabara, ou Cohab. Documentos da época são rotulados “Cohab – Fundação Leão XIII” ou, ocasionalmente, vice-versa. No intervalo entre a assinatura do Acordo do Fundo do Trigo e sua absorção pela Cohab, a fundação havia começado a trabalhar na primeira das cidades proletárias – Vila Aliança –, cujo estabelecimento, sob a direção da Cohab, já começara no início de 1963. Outros “projetos” de “vilas” e o de urbanização da favela da Penha, listados no acordo, foram desenvolvidos sob a direção da Cohab.
A Cohab permanece, hoje, como um organismo basicamente habitacional. Sua relação específica com o Estado e, após 1964 – com a fundação do BNH e sua divisão a nível federal (também chamada Cohab) como autoridades em habitações de baixo custo –, com os governos federais mudou muitas vezes.
O que variou nessas mudanças foram suas atividades subsidiárias, como serviço de bem-estar social. A fundação permaneceu adormecida por cerca de ano e meio, mantendo serviços médicos e sociais muito básicos em algumas favelas tradicionalmente sob seu controle, como uma espécie de ramificação de bem-estar social da Cohab.
A renovação das atividades da Fundação Leão XIII começaram com a pro- posta da AID para um projeto de demonstração de desenvolvimento comunitário baseado em pesquisa supondo-se que (a) as favelas continuariam a existir por muito tempo; (b) a necessidade de fundos era inesgotável;
programas de desenvolvimento comunitário poderiam ser feitos para a diminuição dos custos em áreas pobres, e (d) com novas abordagens e práticas demonstrativas eles poderiam ter um efeito multiplicador significativo (Leavitt, em Leeds, 1966: 1). A proposta foi, eventualmente, apresentada ao estado da Guanabara através da então secretária de Serviços Sociais de Lacerda, Sandra Cavalcanti, que lhe deu sua “entusiástica aprovação e subsequente apoio” – com o aval de Lacerda, ao que se supõe (ibid.).
É interessante observar que a primeira formulação da proposta foi feita em outubro de 1963 – em meio às intensas atividades populistas do presidente Goulart e do deputado federal Leonel Brizola, eleito pela Guanabara em 1962, embora tivesse poucas ligações neste estado, por um recorde de votos, na mesma eleição que trouxe ao poder Elói Dutra, “um franco opositor de Lacerda” (Skidmore, 1967: 230) como vice-governador da Guanabara. Brizola estava presumivelmente desenvolvendo seu Grupo dos Onze e preconizando mu- dança radical e atividades de esquerda no Brasil. Assim, do ponto de vista de Lacerda, de seus objetivos políticos e de sua política estatal, ele se confrontava com um vice-governador antagonista, um deputado federal radical, da Guanabara, aparentemente muito poderoso, ativo entre a população, e um presidente esquerdista que tentava radicalizar as massas urbanas. O “entusiasmo” de Sandra Cavalcanti, então, é mais do que compreensível, uma vez que a ela, como agente de Lacerda, se apresentava uma proposta de canalizar dinheiro para os cofres do Estado, de criar um organismo cujas realizações redundariam em crédito para o governador, enquanto neutralizariam o ônus das remoções de favelas já iniciadas e forneceriam um canal adicional de influência nas favelas, muitas da quais eram sabidamente ligadas às atividades inspiradas por Brizola e Goulart.
O presidente da Fundação Leão XIII, que, já havia algum tempo, era de algum modo subsidiária da Secretaria de Serviços Sociais (SSS), induziu a AID a se colocar sob a égide da fundação devido à sua flexibilidade e autonomia administrativa e financeira; porque ela executava “importantes planos da Secretaria de Bem-Estar Social”; e devido a seus longos anos de ligação com o problema das áreas pobres (carta à AID, 16/3/1964, apud Leavitt e em Leeds, 1966: 2). A fundação era também a escolha de Sandra Cavalcanti.
A dotação inicial relacionada à Lei 480, de fundos do trigo, era de Cr$ 424.000.000, com a promessa de uma soma posterior maior, dependendo de uma avaliação ao fim de dois anos; um subsídio adicional de Cr$ 270.000.000 era concedido (um total bruto de cerca de 450.000 dólares na época). O projeto chamou-se Bemdoc e iniciou suas operações por volta de outubro de 1964.
À altura de dezembro de 1966, o Bemdoc estava morto. Uma análise desse desaparecimento, bem como dos últimos meses do regime de Lacerda e do primeiro ano do governo de Negrão de Lima, clarifica a continuidade e as alterações na forma do controle que é o tema do nosso trabalho. Esse último começou de modo não auspicioso sob a ira do derrotado Lacerda, chuvas catastróficas, crise militar,38 repressão dos partidos políticos, tentativas de se iniciar uma investigação policial militar contra ele e acusações de corrupção e de brandura para com o comunismo.
O Bemdoc nunca teve estatuto jurídico de instituição, exatamente como a Fundação Leão XXIII, que permanecera por muito tempo, equivocada- mente, um órgão do Estado – e o era ainda quando a AID fundou o Bemdoc, sob sua supervisão. A fundação devia fornecer sede para o projeto, incluindo pessoal de secretaria e padres; manutenção de veículos e equipamentos; controle fiscal, incluindo a manutenção de contas, abertas à AID, de todas as operações do projeto. Assim, na suprema questão financeira, embora a AID alo- casse fundos especificamente ao Bemdoc, foram abertos canais para a utilização por parte da fundação de tais fundos para objetivos que não os do Bemdoc. O fracasso em tornar o Bemdoc juridicamente independente deixou-o, na verdade, simplesmente como um programa desprotegido, muito rico, da fundação.
Toda a história do projeto é a história da utilização do Bemdoc pela fundação como um veículo para se autopromover e promover os interesses do Estado relativos às populações faveladas. O Bemdoc publicava um boletim informativo para divulgar suas atividades, no qual a fundação insistia em lançar comunicados sobre suas próprias ações. O Bemdoc, usando apropriada- mente os fundos da AID, conforme o acordo, fez vários tipos de melhoria nas favelas. A fundação fez com que estas lhe fossem creditadas por meio de sua presença nas cerimônias de inauguração e colocando placas com a ênfase no seu nome. Os exemplos eram inúmeros.
Além de se promover, a fundação, especialmente em 1966, começou a pressionar tanto o Bemdoc como a AID para que o primeiro operasse em todas as suas favelas – contrariamente à intenção e à carta dos objetivos originários do projeto (ação-pesquisa piloto em duas a quatro favelas). Sendo a única parte da fundação que, na época, funcionava efetivamente, e a única seção rica, essa pressão pode ser vista como um esforço importante para estender os laços de Bemdoc e sua influência substantiva (embora limitada, como real- mente o era) nas favelas àquela proporção muito importante da população favelada da Guanabara que sempre estivera sob o domínio da fundação.
Isso foi especialmente importante em 1966, quando Negrão precisou consolidar sua posição política na Guanabara pela erradicação do pessoal de Lacerda das posições de liderança, cultivando apoio real no seio da população favelada, e tudo isso ao mesmo tempo que evitava constantemente qualquer antagonismo com os segmentos médios e superiores, e acima de tudo não provocando nenhuma resposta do governo central e seus homens de confiança (especialmente o secretário de Segurança Pública) no governo do estado.
Assim, em 1966 e por algum tempo mais, a Cohab declinou em importância e se restringiu no alcance de suas atividades, ao passo que a fundação expandiu suas atividades e renovou sua ação nas favelas através de todo o Rio, inicialmente tentando usar o Bemdoc e, depois do desaparecimento deste, por sua própria conta. Começou a ter crescente controle sobre a autorização de melhorias habitacionais e outros problemas, reativou seus centros médicos e educacionais, e tentou exercer um controle sobre as organizações das favelas (ver Medina e Valadares, 1968: 204-5).
A extinção do Bemdoc teve como causa imediata a intransigência, por um lado, do pessoal do Bemdoc e da AID em insistir em que ele devia permanecer como um projeto-piloto de pesquisa de comunidade operando em três ou quatro favelas, ou seja, uma operação limitada, experimental, técnica. Por outro lado, deveu-se à intransigência da fundação, ou mais provavelmente de seu comando extraordinário, em insistir em que o Bemdoc expandisse suas atividades para muitas favelas, alterando a forma de suas atividades – ou seja, que ele se tornasse uma ampla operação política. Esse objetivo é coerente não apenas com as necessidades do governador de ampliar seu controle na época, mas também com os interesses de controle populista da facção de Yara Vargas no PTB, cuja representante no governo de Negrão era Hortênsia Dunshee de Abranches, então secretária de Serviços Sociais. A intransigência da fundação manifestou-se em uma série de conversações instigadoras com a AID, levou à criação de facções dentro do Bemdoc, à retenção de fundos para o pagamento de pessoal, e assim por diante. A AID finalmente encerrou o projeto em dezembro de 1966.
Em um sentido amplo, a extinção resultou da dissonância de um novo contraponto que emergiu com a eleição de 1965: aquele entre o governo militar cada vez mais controlador e repressivo e o governo de oposição de base populista de Negrão de Lima, que havia sido eleito pela coalizão PTB-PSD. Por volta do fim dos anos 60, este era o único governo nominal- mente de oposição que restava no Brasil, uma relação dissonante a que voltaremos abaixo. A extinção do Bemdoc foi função do contraponto político que, na época governava a política relativa à favela.
É interessante observar uma tentativa paralela de utilização do Bemdoc por outro organismo estatal. A Comissão Estadual de Energia (CEE) foi estabelecida por volta de 1963 durante o regime de Lacerda, oficialmente para fornecer eletricidade às favelas e para tratar de outras necessidades de energia do estado da Guanabara que não se enquadrassem nas obrigações legais da companhia privada, a Light canadense. A CEE deveria também tentar acabar com a exploração dos moradores da favela (a “indústria das favelas”) por pessoas que possuíam relógios e redes de luz, moradores ou não das favelas, e cobravam taxas exorbitantes pelo uso dessa eletricidade.
Usando como base muitas das favelas organizadas cujas associações haviam sido estabelecidas durante o período de Rios no Serfha, a CEE pro- moveu a organização nas favelas de Comissões de Eletricidade que deviam ser separadas das associações de favela existentes. Ela optou explicita- mente por esse procedimento e também pelo controle das finanças das comissões por meio de relatórios financeiros quinzenais à CEE, de forma a evitar a corrupção que era sabidamente frequente nas associações dos mora- dores de favelas (entrevista com o coronel Leitão, diretor da CEE, 18 de novembro de 1969).
A implantação das Comissões de Luz foi entendida por muitos mora- dores e líderes de favelas como uma tentativa de enfraquecer ou acabar com as associações existentes, de modo a estender o controle estatal às favelas por meio da criação de dissidências e facções no interior das favelas (Primeiro Congresso de Favelas, 1964).39
Pode-se notar também que, além de pagar pela instalação do equipa- mento de eletricidade estatal (transformadores, postes, relógios etc.) com seu próprio dinheiro, os moradores das favelas tinham que pagar uma taxa extra de 20% sobre o total da conta de luz de cada favela (da Companhia Light), a ser depositada na conta de cada Comissão de Luz, aparentemente para serviços de manutenção. As contas deveriam ser mantidas no Banco da Guanabara. As contas do banco estadual não precisam ser examinadas pelo Tribunal de Contas da União. Ao exigir que os fundos de manutenção fossem deposita- dos no banco estadual, o estado dispunha dos 20% acumulados da CEE e de outras fontes, como uma verba secreta a ser mobilizada para objetivos políticos não divulgados. Uma parcela significativa desses fundos estava sendo obtida pela exploração da necessidade de eletricidade dos moradores das favelas e de sua necessidade de pagar mais por isso do que as pessoas de fora de favela.
Embora a CEE já houvesse estabelecido algumas Comissões de Luz por volta do fim de 1964 (Primeiro Congresso de Favelas, 1964), a mudança na administração do estado, no início de 1966, iniciou um período de rápida irradiação da CEE nas favelas, processo paralelo à revivificação da Fundação Leão XIII.
Por volta de meados de 1966, a CEE dirigiu-se ao Bemdoc requerendo sua assistência para ajudá-la a persuadir 17 favelas a aceitarem e cooperarem com a CEE. A administração do Bemdoc viu o pedido como um desafio tanto às suas capacidades de trabalho social como aos seus objetivos de desenvolvimento comunitário. O fato de esse órgão jamais ter trabalhado na verdade com a CEE talvez se deva à rápida deterioração de sua posição e à sua morte iminente. Todavia, o episódio é mais uma vez ilustrativo da tentativa essencialmente provocadora de usar a base técnica, o fundo e os objetivos sociais do Bemdoc para fins de controle político.
O empenho de Negrão para tomar em mãos todas as rédeas no início de 1966 podia ser também percebido na reconcentração do controle sobre as administrações regionais, mediante a reatribuição às repartições públicas centrais do governo do estado de tarefas que haviam sido transferidas às repartições regionais por Lacerda. Apenas mais tarde naquele ano, e em 1967, houve novamente uma descentralização, acompanhada por uma reorganização, tendo já Negrão estabelecido suas linhas de comando.
Essas linhas de comando com relação às favelas são de especial interesse para nosso tema do contínuo controle sobre essas populações. Os elos de comando através da Fundação Leão XIII e da CEE já foram discutidos. Outro elo – a tentativa de vigiar a atividade política na favela – vinha da SSS, através de suas subdivisões semiautônomas em cada uma das repartições regionais, para as favelas. Os serviços regionais de bem-estar social deviam ajudar a organizar as associações de favelas, supervisionar suas eleições, aprovar seus estatutos, aprovar reparos nas construções, enquanto as associações deviam ser responsáveis diante deles por levantamentos cadastrais das favelas, pelo controle de reparos nos “barracos”, pela prevenção de novas construções (!!) e assim por diante (Decreto “N”, n. 870, 15 de junho, 1967, Diário Oficial [GB], 19 de junho de 1967, ver Apêndice III).
Além disso, de acordo com essa medida, o Estado reconhece apenas uma associação como o corpo representativo oficial da favela. Essa associação deveria representar mais do que 50% da população da favela. Se a associação existente age de má-fé (por exemplo, deixando de apresentar quinzenalmente relatórios financeiros ao Estado ou não depositando os fundos da favela especificamente no Banco do Estado da Guanabara), a secreta- ria pode designar uma junta da favela de sua própria escolha. O Estado, então, tentou exercer controle substancial sobre as atividades das associações de favelas, bem como sobre suas populações. A realização da medida, como em muitos dos planos relativos a favelas, foi ineficiente e inconsistente, mas a medida em si mesma é indicativa do ponto de vista de que as favelas devem ser controladas.
Os administradores regionais, além disso, deviam criar um conselho de representantes de diferentes categorias sociais (organizações de classe) – uma de cada negócio, favela ou grupo de interesse. Esses conselhos deviam ajudar a formular e a executar a política administrativa regional. Apenas dois ou três, como na região de Copacabana, chegaram a funcionar. Certamente, um representante de todas as favelas de uma administração regional era muito pouco representativo da diversidade de problemas, interesses, necessidades e objetivos das favelas em muito diferenciadas e de suas populações igualmente diversificadas (ver A. Leeds, 1969). Esse solitário representante parece ter sido completamente apagado pelos outros grupos representativos nos conselhos – nos poucos que funcionaram. Aqui, novamente, somos leva- dos à conclusão de que o objetivo era o controle, de que o pretendido era a cooptação; e de que a difusão dos interesses políticos do Estado para as favelas por intermédio desses conselhos era desejado pelo governador e seus conselheiros.
Nos últimos anos da década de 60 e nos primeiros da década de 70, sobre- pairam a ameaça e a possibilidade de remoção e relocalização forçada, em massa, contrárias ao desejo enfaticamente vociferado e insistentemente expresso pelos próprios moradores das favelas e pela Federação das Associações das Favelas da Guanabara (Fafeg), à qual voltaremos mais adiante.
O que é curioso, nessa atmosfera de coerção governamental e de violência desenvolvida na base da política nacional estabelecida pelo BNH com a – digamos, coagida – cooperação do governo estadual, é a contínua tentativa, em pequena escala, de oferecer uma solução alternativa à remoção pelo organismo experimental do Estado, a Codesco (Companhia de Desenvolvimento Comunitário), criada no início de 1968.
A Codesco foi, em parte, uma continuação ou modificação da experiência da AID com o Bemdoc. Em meados de 1966, três especialistas em habitação (ver Wagner, McVoy e Edwards, 1966, doravante chamados “Plano Wagner”) trazidos de Washington pela AID, tendo visitado favelas e revisto os programas urbanos e de favelas, propuseram suas ações principais, concebi- das como um único plano: o governo deveria (a) promover um programa de ajuda mútua de desenvolvimento habitacional-comunitário e (b) criar uma autoridade da área metropolitana para tratar de todos (e não apenas da favela) os problemas do Rio de Janeiro e suas cidades-satélites mais ou menos importantes (Nova Iguaçu, Nilópolis, São João de Meriti, Duque de Caxias, Niterói, São Gonçalo, cada uma com 400.000-500.000 habitantes, e algumas cidades menores como Queimados, Belford Roxo etc.) com uma população, no total, de cerca de 3.000.000 de habitantes espalhada por ambos os lados da baía de Guanabara.
A AID levou ao governo do estado essas propostas. Depois de grande demora e de manobras consideráveis – que podemos entender como relacionadas às manobras políticas do governador no tratamento das propostas em vista de todo o contexto político que circunscrevia o seu acesso ao cargo –, Negrão designou os presidentes da Cohab e da Sursan (Superintendência de Urbanização e Saneamento), a CPO (Coordenação de Planos e Orçamento do Estado da Guanabara, a comissão estadual de planejamento) e a Copeg (Companhia para o Progresso do Estado da Guanabara) como uma comissão para avaliar essas propostas e considerar um estudo de viabilidade do programa de ajuda mútua de desenvolvimento comunitário.
Em suma, os três primeiros órgãos, como era de se esperar pelo que dissemos antes sobre um deles, não mostraram interesse. A Cohab, nessa época, estava sob o controle político do BNH, apesar do fato de seu presidente ser designado pelo governador do estado. Nem a Sursan nem a CPO eram de forma alguma órgãos adequados para realizar a tarefa proposta, embora fossem relevantes para alguns de seus aspectos. Foi a Copeg, da qual uma das funções principais era estimular o setor privado – indústria, finanças, construção e afins –, que encampou o projeto com interesse.
Isso é particularmente interessante em vista dos contrapontos que vimos discutindo, porque o pensamento econômico orientador da liderança da Copeg era institucionalista, apesar das formas monetaristas e dos tipos de operação; seus chefes de então haviam tido importantes ligações com ambos os campos do pensamento econômico nas épocas em que estiveram no poder do governo federal. É também significativo que tenha sido a Copeg a tomar para si essa tarefa, porque (a) a Copeg era mais livre do que outros órgãos estatais que tinham uma ligação anterior com as forças agora controla- doras do governo federal e (b) seu quadro de diretores contava com o governador e muitos secretários-chave de seu gabinete (alguns dos quais posteriormente forçados pelo governo federal a se retirar).
Esses pontos nos parecem importantes porque todos os procedimentos de Negrão quanto a essa questão são coerentes com seus esforços de 1956 e 1957, e de seu governo de 1966-1970, para fazer algo útil para as favelas, mas no último período todas as possibilidades foram cada vez mais restringi- das pelo governo federal. Por exemplo, pelo seu controle direto sobre o secretário de Segurança de Negrão, França, que frequentemente contradizia diretamente as ordens e compromissos de Negrão, agindo cada vez mais de forma independente; ou pelas remoções de outros secretários por pressão do governo central; ou pela substituição sob pressão do chefe da Casa Civil de Negrão, Luís Alberto Bahia, antigo populista de tradição mais ou menos getulista, por Carlos Costa, primo do então presidente do Brasil, Marechal Costa e Silva. Sob as condições políticas de então, fazer algo pelas favelas significava também a extensão do controle sobre elas – compreende-se assim a utilização de Negrão, como argumentamos, da Fundação Leão XIII e da CEE, seu Decreto n. 870 e sua presença na inauguração da Ação do Brasil.40
A Codesco foi estabelecida como uma subsidiária autônoma da Copeg, com membros do quadro desta última ocupando funções de presidente e membros do seu quadro. Baseada no estudo de viabilidade de três favelas da Zona Norte (Brás de Pina, Mata Machado e Morro União), a Codesco, com alguns jovens e imaginativos sociólogos e arquitetos, começou a completar planos de urbanização para duas das três favelas estudadas, e outra acrescentada posteriormente.41 A urbanização incluía regularização, pavimentação e iluminação das ruas, instalação de redes de água, esgoto e eletricidade, auxílio financeiro e mínima supervisão da reconstrução de casas (geralmente em mutirão), além da administração da venda de terras que haviam sido expropriadas pelo Estado.
Do ponto de vista dos moradores da favela, o programa da Codesco tem rigoroso sentido econômico. Eles permanecem na área, ou com fácil acesso a seu mercado de trabalho, minimizando assim os custos de transporte. Podem construir casas sólidas mais apropriadas a seus orçamentos domésticos, no ritmo de suas possibilidades econômicas; podem projetá-las de modo adaptado às suas necessidades domésticas e ao seu estilo de vida. Um estudo das atitudes dos moradores com relação à tentativa da Codesco de urbanização mostrou uma reação geralmente favorável ao programa.
[...]
O plano da Codesco está intrinsecamente em contradição com as suposições subjacentes e com os interesses imanentes nos tipos de cálculo envolvidos nas abordagens monetaristas do governo federal, como representado pelas políticas e ações do BNH, com relação à “habitação” ou ao “problema da favela”. Tal plano, baseando-se em grande medida nos recursos e julgamentos dos moradores das favelas, não é um programa que favoreça os interesses da indústria de construção civil, nem do BNH, embora este último tenha financiado em parte a Codesco, tampouco das instituições financeiras.
Inerente a essa contradição, nos contrapontos do Estado federal e nas dissonâncias monetaristas-institucionalistas que temos traçado, estava o surgimento de um órgão administrativo federal em oposição à Codesco. É uma curiosa ironia que a Chisam – a Coordenação de Habitação de Interesse Social* da Área Metropolitana do Grande Rio de Janeiro – se tenha desenvolvido a partir de, ou conforme a, segunda recomendação do “Rela- tório Wagner”, aquela relativa a uma autoridade metropolitana para tratar conjuntamente de alguns problemas em escala regional, inclusive favelas e suas causas. É claro que a tentativa do “Relatório Wagner” era um plano que envolvia dois níveis de ação baseados em um ponto de vista comum e em objetivos, estratégias e formas de implementação comuns. É claro também que o programa de favelas foi proposto não apenas como uma experiência de reabilitação, mas como modelo-base, generalizável, para o tratamento da maior parte das favelas dentro de um quadro de referência de planeja- mento metropolitano racional e reorganização regional.
A Chisam, criada pelo Decreto Federal n. 62.654, de 3 de maio de 1968, quatro meses depois da criação da Codesco, tinha como diretor-chefe nessa época o então ministro do Interior, general Afonso de Albuquerque Lima, sob cuja égide também ficou o BNH. Foi criada, ao que se disse (Chisam, 1967: 78), em função do reconhecimento de que o problema da favela – encontrado praticamente em toda cidade do Brasil, não apenas no Rio – é um problema nacional, que requer ação nacional para resolver problemas criados pela falta de recursos, pela diversidade de órgãos, por políticas habitacionais inadequadas por outros fatores que contribuem para o surgi- mento de favelas. Reconhecia-se, finalmente, que esses problemas não podiam ser resolvidos em nível local, municipal ou estadual, mas apenas em nível nacional, em cooperação com entidades estaduais ou municipais. Em parte, as soluções pareciam envolver o controle dos fluxos migratórios, o que não podia ser resolvido no nível dos governos estaduais Não ficou claro por que apenas a Chisam foi criada, não tendo sido criados organismos análogos em outras importantes áreas urbanas, ao que nos consta. As razões parecem ser principalmente políticas, como indicamos, uma vez que outras cidades, como Recife e Salvador, têm conjuntos de áreas invadidas por posseiros de tamanho comparável às do Rio e geral- mente em piores condições. A criação do BNH e de seu Sistema Financeiro da Habitação (ibid.: 7) abriu novas possibilidades, inclusive a da Chisam.
[...]
No Rio de Janeiro, existem 283 favelas, a maioria delas – 36 (sic!) – localizada na 6ª Região Administrativa [isso está errado; havia apenas 16 nessa região – ver Cedug, 1963, Apêndice 4: 60], que abrange os bairros de Ipanema, Leblon, Lagoa, Jardim Botânico e Gávea, precisamente a região mais aristocrática da Guanabara, onde se situam as casas mais luxuosas, as terras mais valorizadas e os clubes mais finos (...)
Mais adiante apresentamos um artigo de Gilberto Coufal, diretor do BNH e coordenador da Chisam, no qual são estudadas as discussões sobre urbanização e remoção, e se conclui afirmando que a política seguida pelo Governo tornará possível a modificação do programa físico e estético das áreas faveladas, integrando terras por elas ocupadas aos bairros em que se situam, e transformando a mentalidade de seus moradores que, não se considerando mais como favelados, serão também vistos pela comunidade como cidadãos normais.
Outro ponto que vale a pena assinalar é que a Chisam estabeleceu como política, em suas primeiras reuniões, que ela seria um corpo coordenador, porém não executivo dos trabalhos. A Chisam orientaria:
... o trabalho conjunto de setores do Estado de tal forma que suas tarefas se complementem umas às outras. Para a execução des- sas tarefas específicas deverão ser creditados por nomeação dos governos dos dois estados [Rio de Janeiro e Guanabara] aqueles órgãos especializados em cada setor de atividade necessária para o desenvolvimento de cada tipo de programa a ser executado (Chisam, 1969: 13).
No âmbito dessa política, os seguintes organismos foram autorizados a agir na esfera social: a SSS da Guanabara, a Fundação Leão XIII, a Secretaria de Trabalho e Serviços Sociais do Rio de Janeiro e Ação Comunitária do Brasil. Para agir na criação de novas habitações: as Cohabs de ambos os esta- dos. Para atuar na produção de casas nas favelas para a substituição dos barracos: Codesco (apenas na Guanabara; nenhum órgão foi designado para o estado do Rio, o que indica que a Chisam não tinha intenção de prosseguir a urbanização lá).
[...]
Essas ações podem ser rapidamente resumidas. Elas consistem na remoção total de pelo menos as seguintes favelas – (todas na Zona Sul): Jóquei Clube (cerca de 200 pessoas), Rio Rainha (+ 200), Alto Solar (+ 600), Ilha das Dragas (+ 1.800), Babilônia-Chapéu Mangueira (+ 3.500), Macedo Sobrinho (+ 4.000), Praia do Pinto (+ 7.000), Catacumba (+ 12.000) e partes do Parque Proletário no 1 da Gávea – um total de cerca de 30.000 pessoas. Estas foram relocalizadas em projetos como a Cidade de Deus, no longínquo e inacessível distrito de Jacarepaguá; na Cidade Alta, no distante Cordovil; no conjunto do Guaporé, e outros. Aqueles que não tinham capacidade de pagar por essas unidades habitacionais eram mandados “temporariamente” para os Centros Habitacionais de Bem-Estar Social e para os mal equipados albergues.
Os efeitos dessas remoções e relocalizações – em todos os casos forçadas, contrárias à vontade dos moradores e em alguns casos acompanhadas de ação policial, tratores, fogo (que se dizia acidental) e outras formas de pressão, incluindo ameaças de não pagamento das indenizações pelas casas (isto é, propriedade privada dos moradores da favela) destruídas – foram a profunda desestruturação, para um grande número de pessoas, de sua organização de vida e um desequilíbrio nas estratégias domésticas para lidar com a difícil estrutura econômica que os moradores das favelas tiveram que enfrentar (ver A. Leeds, 1970: 243-48). Particularmente agudo foi o declínio na renda, acompanhado de uma desconcertante alta dos custos, especialmente das amortizações e dos transportes.50 Os ex-moradores das favelas são engolfados por uma interminável onda de novos gastos, contra a qual a política salarial do governo federal, junto com a correção monetária sobre as amortizações, torna impossível qualquer reação para uma grande parcela deles. Sua única solução é voltar para as favelas, ou criar novas delas em outro lugar. A situação é vividamente descrita em um longo e detalhado artigo do Correio da Manhã51 (21/1/1971), que transcrevemos em parte:
[...]
Em suma, a Chisam, quando criada – seja deliberadamente com este fim ou não –, representou de facto uma proposta oposta à ênfase de Negrão e do Estado na urbanização: a da construção habitacional em massa para permitir a relocalização dos moradores da favela.52 A oposição das aborda- gens foi claramente reconhecida pelo pessoal da Codesco (Machado e Santos, 1969: 55):
Os dois órgãos responsáveis pela política habitacional das favelas na Guanabara têm poderes básicos e princípios diametralmente opostos. Essa situação indica não uma flexibilidade e adaptação à realidade por parte do poder público [le Pouvoir], mas sobretudo sua ambiguidade. E, para complicar ainda mais os dados do problema, a plataforma da campanha do atual governador (eleito em 1965) desenvolveu-se em torno da defesa da urbanização, ao passo que a Chisam, órgão do governo central, opta pela expulsão, muito embora de modo mais flexível do que os primeiros esforços da Cohab.
A criação de dois organismos, com um intervalo de poucos meses entre um e outro, que tratam dos mesmos problemas, ainda que com orientações radicalmente diferentes e bases de apoio tão nitidamente diferentes, é um fenômeno muito revelador não apenas com relação à favela, ou, em um âmbito mais geral, com relação à política social e econômica, mas do conflito nas políticas nacionais brasileiras. A criação da Chisam, um braço do BNH e do Ministério do Interior, reflete a institucionalização a nível nacional das políticas econômicas e sociais e uma ideologia que funciona para intensificar o controle exercido pelas elites, servir a seus interesses políticos e econômicos, concentrar a riqueza em poucas mãos e para controlar e reprimir qualquer pessoa que busque impedir esses desenvolvimentos. A política relativa à favela é um espelho de todas essas institucionalizações, operações, controles e repressões; na área do Rio, a Chisam é o agente da hierarquia nacional, como o BNH o é para o país como um todo.
Como um toque final desse processo de controle e repressão, crescente e centralizado, e a correspondente política relativa à favela em âmbitos nacional e estadual, podemos voltar rapidamente à Fafeg. A Fafeg reagiu asperamente às políticas da Chisam, como reagira às do CEE e do Decreto n. 870. A Federação das Associações das Favelas do Estado da Guanabara, a única confederação de favelas existente em âmbito estadual, foi fundada em 1964. Por volta de 1968, depois de alguns altos e baixos, ela se tornara um corpo cada vez mais articulado e de peso, representando ao menos cem favelas do Rio.
[...]
Coerente com as posições tomadas no congresso, a Fafeg tratou imediatamente de impedir a ação contra a primeira favela (Ilha das Dragas, próxima a um clube social de elite na lagoa Rodrigo de Freitas, na Zona Sul) a ser ameaçada de remoção pela Chisam, que agia por intermédio de seus órgãos executivos subordinados. Quase que imediatamente, todos os direto- res foram presos em uma ação policial que incluiu sua localização nas favelas e grande coordenação para que a pressão anterior de um não permitisse aos outros escaparem. Estava bastante claro que a polícia estava muito bem informada com relação às identidades dos líderes (nunca ocultadas), suas atividades e localização em momentos específicos. Obviamente, os líderes foram mantidos incomunicáveis por alguns dias, e ameaçados de severas consequências caso a oposição continuasse.54 Os homens foram soltos por causa da pressão da ala mais liberal da Igreja católica no Rio, que, com outros setores da Igreja por todo o Brasil orientados para a ação social, só começaram a ser severamente reprimidos pelo governo federal em 1969.
Desde a prisão em massa, as atividades públicas da Fafeg praticamente cessaram e não houve nenhuma tentativa de impedir as remoções em andamento das favelas da Zona Sul. Se tal esforço tivesse sido feito, aquelas tentativas de impedir tal remoção teriam sido enfrentadas por soldados armados com revólveres, como aconteceu em 1964 quando o pessoal da Fafeg tentou impedir a expulsão do Morro do Pasmado, a primeira favela a ser removida pela Cohab (reportado nos jornais da época).
Conclusão[editar | editar código-fonte]
Os fatos e as relações apresentados neste trabalho para as favelas da Guanabara são, em certo sentido, apenas um diagnóstico da progressão de modelos maiores de eventos e relações na estrutura social brasileira como um todo.
O recente enfraquecimento da Fafeg, as remoções de favelas que prosseguem, as intervenções legais e administrativas de órgãos estatais, tudo isso acelerou o processo de eliminação dos meios pelos quais as favelas podem se comunicar com os níveis administrativos do Estado. A situação reflete as atuais tendências políticas elitistas nas quais a comunicação se tornou unilateral, de cima para baixo, para todo mundo. A coerção e repressão dos moradores de favela, assim como de seus líderes, e a erradicação das próprias comunidades, em um total desrespeito pela vontade explícita das pessoas envolvidas e pela consideração de alternativas, equipara-se com a coerção e a repressão, com o uso amplamente documentado de tortura, dos camponeses e suas ligas e sindicatos, dos sindicatos operários, dos estudantes e suas entidades, da Igreja e seus membros socialmente ativos, dos intelectuais e suas organizações e meios de expressão, dos jornais, dos negócios, das tribos indígenas (cujo etnocídio é justificado pelo interesse nacional por leis recentemente promulgadas que permitem remoções forçadas e ressocialização não diferentes daquelas impostas aos moradores de favela).
O esboço da história dos últimos trinta anos mostrou a correlação próxima entre forma, conteúdo e modalidades operacionais do governo federal com seus representantes em dado momento e as políticas administrativas dos governos locais (por exemplo, o Estado) com relação às favelas. Como a forma, as ideologias e os modos de operação, também mudaram as políticas administrativas locais. Assim, onde houve mudanças no que se chama “populismo controlado” (Estado Novo de Vargas; as fases iniciais do governo Jânio Quadros), “populismo democrático” (governo Vargas, 1951-54; Kubitschek; a segunda fase do governo de Quadros; o governo Goulart), o “elitismo nacionalista” (a presidência de Dutra) e o “elitismo de favorecimento dos interesses estrangeiros” (todos os governos desde 1964), essas mudanças têm seu paralelo em nível local, como mostramos.
Conforme a orientação do governo central exigiu mais ou menos controle sobre as massas, assim se manifestou essa exigência mutável em várias formas e operações de política e de ação com relação às favelas. Contudo, em qualquer governo, por mais populista e “democrático” que seja, um forte elemento de controle e manipulação sempre foi importante por pelo menos três razões. Primeiro, em pequena escala, o controle e a manipulação foram necessários por simples razões táticas e políticas, isto é, eleitorais. Segundo, o controle foi cada vez mais necessário porque as populações faveladas sabidamente já representavam uma ameaça à ordem política e social estabelecida. Terceiro, o controle e a manipulação foram necessários em termos da manutenção das fronteiras de classe por parte daqueles que têm acesso aos governos federal e estadual, dos quais todos, praticamente sem exceção, foram membros de uma ou outra facção de elite das classes superiores no Brasil. Em determinados momentos e locais, o controle tem sua rationale estabelecida com base nas várias combinações dessas razões, embora com pesos diferentes, dependendo do modelo político vigente na época.
Assim, as oscilações entre as várias formas de governo – às vezes abrindo superficialmente maiores possibilidades para as populações faveladas, em outras fechando-as novamente – deixaram as favelas e, mais geral e precisamente, o proletariado sem uma voz significativa nas decisões sobre seus próprios destinos.
Todas as tentativas feitas nesse período de trinta anos para garantir um grau de liberdade ou responsabilidade aos moradores de favelas ou ao proletariado como um todo têm se deparado sempre com o simples abandono ou falta de continuidade, ou com a oposição direta na forma de políticas e ações opostas que serviram, ambas, para anular essas iniciativas. Dada a falta generalizada de resposta e responsabilidade governamentais, os moradores da favela são forçados a continuar procurando melhorar sua condição através dos canais racionalmente elaborados, paternalistas, individualistas, para a obtenção de favores e a satisfação de interesses mediante a troca de benefícios. Quando tentativas de articulação de interesses das massas são tão sistematicamente reprimidas, o avanço pessoal, da favela ou da classe deve se desenvolver em níveis menos ameaçadores, até que a remoção de barreiras permita um fluxo ascendente de comunicação acerca de valores, opções e decisões, e um fluxo descendente de reconhecimento, serviços e bens.
Referência[editar | editar código-fonte]
LEEDS, Anthony; LEEDS, Elizabeth. Favelas e Comunidade Política: a continuidade da estrutura de controle social. In: LEEDS, Anthony; LEEDS, Elizabeth; LIMA, Nísia Trindade (org.). A sociologia do Brasil urbano. 2ª edição – Editora Fiocruz. Rio de Janeiro, 2015. p. 243 – 325.
Veja também[editar | editar código-fonte]
- Favelas e Comunidade Política - Até os anos 60
- Cadastramento e a produção da demanda social por apartamentos, no Programa Minha Casa Minha Vida (artigo)
- Participação Comunitária em projetos Habitacionais
- Aluguel Social
- Moradia
- Fundação Leão XIII
- Urbanização de Favelas: Duas Experiências em Construção (livro)