Fazenda Botafogo: memória e paisagem de tipologia habitacional da periferia carioca

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco


1. Histórico

Vista aérea do Conjunto a partir da Av. Brasil (site da Cehab)

Inaugurado em 1978 no bairro de Coelho Neto, o conjunto habitacional Fazenda Botafogo é constituído por 86 edificações de apartamentos. Realizado na década de 70 durante a Ditadura Militar, sua iniciativa se enquadrava na expansão econômica do então Estado da Guanabara com o chamado Projeto Integrado Habitação-Indústria, que previa a implantação de um Distrito Industrial e habitações residenciais para absorver os trabalhadores locais. O local de instalação do Projeto Integrado se deu nas terras da fazenda Botafogo, antigo engenho de açúcar, rapadura e água ardente no século XIX, na Baixada de Irajá. A fazenda abrangia os bairros de Costa Barros, Barros Filho, Coelho Neto e partes da Pavuna. Na década de 1970, um grupo de moradores ocupavam com seus casebres a área de Coelho Neto, localizada próxima à Avenida Brasil.

Casebres e moradores que ocupavam a área antes do Projeto Integrado (Página Acari sempre Acari)

Ocorrida em meio à política de remoção de favelas, a iniciativa do Projeto Integrado provocou a transferência dos então moradores para outros conjuntos habitacionais em área mais distantes da periferia carioca, como o da Estrada da Água Branca, Cidade de Deus e Vila Kennedy.

O conjunto habitacional Fazenda Botafogo pela sua implantação possui limites imediatos com áreas significativas e conhecidas dessa parte da periferia da cidade do Rio de Janeiro. Sendo a Avenida Brasil ao sul, as fábricas do Distrito Industrial a oeste, o Rio Acari a norte e parte da linha 2 do Metrô, na altura da estação Acari/Fazenda Botafogo, e parte do conjunto habitacional IAPC de Coelho Neto a leste. Numa escala maior ele integra todo um conjunto de favelas composto por Acari, Pedreira, Jorge Turco, entre outros, e com eles toda a região compartilha uma cultura vivenciada de experiências e realidades que, como tantos outras, configuram o caráter da periferia da cidade.

Mapa do entorno imediato do Conjunto (Google Earth, 2018)

Como afirma Norberg-Schulz, “Caráter” é um conceito ao mesmo tempo mais geral e mais concreto do que “espaço”. Por um lado, indica uma atmosfera geral e abrangente e, por outro, a forma e a substância concreta dos elementos que definem o espaço. Toda presença real está intimamente ligada ao caráter. [...] O caráter é determinado pela constituição material e formal do lugar. Devemos então perguntar como é o solo em que pisamos, como é o céu sobre nossas cabeças, ou de modo mais geral, como são as fronteiras que definem o lugar (Norberg-Schulz, 2013, p.451, grifo do autor).

Porém, mais do que isso, lugar é o que provoca as capacidades de orientação e identificação, funções psicológicas que quando ocorrem juntas, despertam significados que conduzem à identificação (Norberg-Schulz, 2013). No caso da periferia carioca, conjuntos habitacionais e favelas também constroem essa ambiência que dão o caráter suburbano da zona norte, com suas carências de serviços públicos, lazer, saneamento e transporte público, mas também com suas potências culturais, cotidianas, de samba e pagode, de funk, de luta e resistência.

Nas reflexões de Silva e Monteiro, A cultura ou o ambiente cultural é tido como arcabouço de onde emanam normas e valores que governam a atitude das pessoas em uma dada sociedade, sendo esta por sua vez, constantemente transformada na cotidianidade, pois as práticas sociais costumam alterar ou manter tais estruturas. Esta noção eminentemente interacionista se aproxima do sentido etimológico da palavra latina onde cultura se origina de “cultivo”, ou seja, a cultura vivenciada é a maneira com que pessoas cultivam “valores e padrões de atividades humanas e as estruturas simbólicas que conferem significado a estas atividades” (Silva; Monteiro, 2011, p.4).

2. Tipologia de edificação da periferia

Vista de rua do conjunto Fazenda Botafogo (Google Earth, 2018)
Visão área do Conjunto a partir do Rio Acari (Blog Coelho Neto: memórias de um bairro)

As 86 edificações do conjunto habitacional Fazenda Botafogo apresentam conformação de planta H com quatro pavimentos, cada uma delas possuindo 40 apartamentos de um ou dois quartos com, no máximo, 44m². As unidades foram financiadas em até 25 anos. Essas eram características comuns dos projetos de habitações do Banco Nacional de Habitação (BNH) durante a Ditadura Militar (1964-1985). Segundo Folz e Martucci, Em um universo de quarenta conjuntos com unidades de dois quartos apresentado em uma publicação do BNH (1979), trinta eram destinados para uma renda familiar de até seis salários mínimos. Destes trinta Conjuntos, onze eram formados por blocos de apartamentos cuja área variava entre 42,45m² e 56,91m² (Folz; Martucci, 2013, p.34).

Para conhecer mais sobre a política habitacional da Ditadura Militar, vale a pena assistir o documentário do IPPUR/UFR “BNH: Controvérsias de uma política habitacional”. [1]

Atualmente os edifícios ainda mantêm a maioria das características originais. De vez em quando sofrem intervenções da Companhia Estadual de Habitação do Rio de Janeiro (CEHAB), com recuperação de elementos estruturais e revestimento com pintura das fachadas e áreas internas comuns, de coberturas, de reservatórios de água potável inferior e superior, além da limpeza e desinfecção destes reservatórios e reparos nas instalações comuns de elétricas, de água e de esgoto.

3. Memória e Cotidiano

No conjunto habitacional Fazenda Botafogo, e em toda periferia carioca, memória e cotidiano são marcados por ausências e mínimos, principalmente quanto a serviços e segurança públicos. Mas também, e principalmente, pela potência da vivacidade das ruas, das esquinas e das pessoas. Três momentos podem demonstrar essa dualidade.

O Centro Empresarial Estub (Fundação João Mendes)

Lanchonete Fab's em 1987 (Blog Coelho Neto: memórias de um bairro)

Inaugurado em 1982, “a” Estub (como era conhecida) funcionou como centro de comércio e serviços no Fazenda Botafogo, abrigando um supermercado, agência bancária, loja de departamento, lanchonete, restaurante, farmácia, auditório de eventos e assistência médica. O centro empresarial era de propriedade do empresário João Mendes, fundador da empresa de estrutura tubulares de mesmo nome, instalada no Distrito Industrial.

Em fins década de 80 a Estub teve sua fase áurea com a inauguração das Lojas Fab’s, lojas de departamentos que tinha também sua própria lanchonete, no mesmo padrão de lojas como McDonald’s, que se tornou lugar de encontro dos jovens do bairro. No entanto, já no início da década de 90 a Fab’s fechou as portas, não conseguiu sobreviver aos pacotes econômicos e à hiperinflação.

Hoje, no prédio parcialmente fechado e em estado de decadênia da Estub funcionam apenas o supermercado, farmácia e algumas salas comerciais.

Vista do Centro Empresarial Estub (2018, Google Earth)

As enchentes do Rio Acari

Não só o conjunto habitacional Fazenda Botafogo, mas também parte das casas do IAPC de Coelho Neto, sofrem com alagamentos do Rio Acari ao longo dos anos. O assoreamento e o estreitamento da largura do rio na altura do conjunto fazem do fenômeno das enchentes algo sempre passível de ocorrer frente à ocorrência de chuvas fortes. No início de 2024, foi registrada a pior inundação até agora, com estragos e quedas de muros, inclusive o da Linha 2 do Metrô.

A Feira de Acari

A conhecida Feira de Acari é um acontecimento que marca não apenas o bairro de Acari, mas também os domingos do conjunto habitacional Fazenda Botafogo. Realizado ao lado de Coelho Neto da Linha 2 do Metrô, a feira ocorre semanalmente próximo aos edifícios de apartamentos, marcando a vivência e sendo referência na memória dos moradores do conjunto.

Vista da Feira de Acari a partir da estação do Metrô (@vinicius of jesuz)

Reconhecer o valor dessas potencialidades implícitas – da rua, das esquinas e das pessoas –, como afirma Jeudy (2005), reivindica olhar sob uma perspectiva invertida, como uma maneira de ver ao contrário. Tal inversão do olhar não visa apagar o que está explícito, nem inverter seu papel com o que está implícito, antes é um apelo a uma discreta revelação. Talvez o ideal seja fazer como Simas, No meio do fuzuê, entre sons de tiro, ladainhas, aleluias, sambas, tambores, tombos, tapas, ruídos de buzinas, espasmos de amor e ódio, flores de feira e punhais afiados, vou seguindo em um território em disputa, com a certeza de que o tempero da cidade é o sal da memória dos dias longos e da noite grande (Simas, 2023, p.119).

4. Referências

Acari sempre Acari. Sobrou para a favela Fazenda Botafogo - parte 1. Rio de Janeiro, 16 mai. 2019. Facebook: Acari sempre Acari. Disponível em: https://www.facebook.com/acarisempreacari/posts/sobrou-para-a-favela-fazenda-botafogo-parte-1a-fazenda-botafogo-%C3%A9-uma-%C3%A1rea-de-2-/2374578712562461/. Acesso em: 10 abr. 2024
FOLZ, R. R.; MARTUCCI, R. Habitação mínima: discussão do padrão de área mínima aplicado em unidades habitacionais de interesse social. Revista Tópos, [S. l.], v. 1, n. 1, p. 23–40, 2013. Disponível em: https://revista.fct.unesp.br/index.php/topos/article/view/2187. Acesso em: 14 abr. 2024.
JEUDY, H. O espelho das cidades. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005.
GALDO, R.; DAFLON, R. Moradores enfrentam condições precárias em conjuntos do BNH e dificuldades para pagar prestações. O Globo. 15 mai. 2015. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/moradores-enfrentam-condicoes-precarias-em-conjuntos-do-bnh-dificuldades-para-pagar-prestacoes-2770721. Acesso em: 10 abr. 2024
GARCIA, Cleydson. Caso da Fazenda Botafogo – Crime ao Patrimônio Histórico. Urbe Carioca. Rio de Janeiro, 31 mar. 2016. Disponível em: http://urbecarioca.com.br/caso-da-fazenda-botafogo-crime-ao-patrimonio-historico-de-cleydson-garcia/. Acesso em: 10 abr. 2024
NORBERG-SCHULZ, C. O fenômeno do lugar (1976). In: NESBITT, Kate (org.). Uma nova agenda para a arquitetura: antologia poética (1965-1995). São Paulo: Cosac Naify, 2013, p.443-461.
SIMAS, L. A. O corpo encantado das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2023.
Yes, Nós Tínhamos Shopping! Coelho Neto: memórias de um bairro. Rio de Janeiro, 11 ago. 2015. Disponível em: https://coelhoneto.wordpress.com/2015/08/11/yes-nos-tinhamos-shopping/. Acesso em: 10 abr. 2024