Interseccionalidade, uma questão sociológica? (artigo)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco


"Interseccionalidade, uma questão sociológica?" é um artigo de autoria de Julia S. Abdalla (UFRB) e originalmente publicado no Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS) em 10 de março de 2024.

Autoria: Julia S. Abdalla (UFRB)[1].

Introdução[editar | editar código-fonte]

Imagem: Lena Bergstein.

A ideia de “interseccionalidade” tornou-se menção frequente na boca de militantes, intelectuais e agentes institucionais no Brasil nas últimas duas décadas. Os vários sentidos, usos e genealogias possíveis para a ideia nos desafiam a refletir sobre as formas e chaves de análise por meio das quais podemos construir diálogos frutíferos entre essa categoria e nossos campos e áreas. Aqui, como forma de explorar e expandir esses diálogos, avaliando suas possíveis contribuições, proponho um exercício inicial de leitura de uma genealogia vinculada aos feminismos negros brasileiro e estadunidense a partir de três conjuntos temáticos de interesse sociológico.

Definições, genealogias e diálogos[editar | editar código-fonte]

Atualmente, a ideia de interseccionalidade remete ao reconhecimento de que formas de opressão vistas como distintas – como aquelas que resultam na desvalorização e marginalização racial – são empiricamente entrelaçadas com outras, como as de gênero, sexualidade, nacionalidade e religião (Kerner, 2012: 45), que elas se edificam uma em relação à outra, se reforçam mutuamente e que caracterizam e organizam a sociedade (Collins, 2000). O cruzamento dessas injustiças é complexo e não corresponde a uma sobreposição ou encontro geométrico e/ou hierarquizado. Irredutível a uma de suas vias e inseparável em sua apreensão, a forma de opressão a que estão submetidos os sujeitos situados nas intersecções é única, um produto singular e original. Por isso, o enfoque direto nos grupos “interseccionais” e a construção de um olhar capaz de perceber suas singularidades seria fundamental.

Para além dessas constatações, contudo, a ideia e as teorias da interseccionalidade (Rios, 2023)[2] contam com uma multiplicidade de genealogias e caminhos de reconstrução possíveis na produção teórica e no ativismo (Pereira, 2016; Collins & Bilge, 2016; Nash, 2019), os quais remetem a diferentes sentidos, podem ter diferenças temporais ou contextuais marcantes, além de variados objetivos e formatos nesses textos. Considerando o contexto intelectual e de mobilização social em que essa ideia se consolida no debate público no Brasil e as próprias produções mobilizadas em seus usos públicos, um caminho relativamente seguro é o do diálogo entre a produção mais constituída do black feminism nos Estados Unidos (Nash, 2019), em especial, a partir dos anos 1960, com o que foi produzido no Brasil da redemocratização para cá (Rios & Maciel, 2018; Sanchez, 2024). Todavia, vale pontuar que as conexões entre esses dois contextos são mais complexas do que permitem as comparações diretas e sugestões de influências unidirecionais (cf., p.ex. Cardoso, 2012; Ratts & Rios, 2012; Perry & Sotero, 2020).

As formulações iniciais da interseccionalidade são sistematizações e desenvolvimentos daquilo que, em fundamento, já estava expresso em manifestações ativistas e intelectuais, como a famosa fala de Sojourner Truth em 1851 e os textos de Maria Firmina Reis, que apontavam para o efeito combinado de diferentes formas de poder e opressão na experiência das mulheres negras. No diálogo genealógico proposto, as produções teóricas são indissociáveis do campo ativista, onde assumem diferentes sentidos, usos e encaixes.

Nos Estados Unidos, a questão se torna “incontornável para o pensamento progressista” (Biroli & Miguel, 2015: 30), a partir dos anos 1960, “em conversação/tensão com os movimentos por direitos civis, Black power, Chicano liberation, Red Power e Asiático-Americano” (Collins & Bilge, 2016), assim como com o movimento feminista. Imbricada com essas tensões e a inclusão de minorias na universidade, ideias como “vulnerabilização dupla” [jeopardy] (Beal, 1969), “tripla” (Third World Women’s Alliance, cf. Carasthatis, 2016) ou “múltipla” (Hull & Bell Scott & Smith, 1982) e “natureza interconectada [interlocking] da opressão” (Combahee River Collective, 1977) são abundantes nos textos e falas políticas da época. A crescente formalização do debate culmina, nos anos 1990, nos textos de Kimberle Crenshaw ([1989] 2000, 1991), e na primeira edição de Pensamento Feminista Negro, de Patricia Hill Collins (1990).

No Brasil, os debates mais sistemáticos sobre as intersecções estão relacionados à resistência à ditadura militar e à série de movimentos – feministas, negros e muitos outros (Silva, 2014) – que se reorganizavam nesse período. A partir do interior desses movimentos, militantes e intelectuais negras disputavam a inclusão de suas perspectivas e experiências na agenda política, ampliando a representatividade dos espaços políticos – como veremos, um esforço indissociável do deslocamento das interpretações dominantes sobre o país. Um ponto central nesse embate dizia respeito à relevância e à operação do gênero e da raça com relação à classe (Alvarez, 1990) – algo que enfadonhamente persiste nas formulações sobre o “identitarismo”. Começa a ser debatida nessa época uma série de ideias buscando correlacionar esses planos para compreender a “condição da mulher negra” como produto de uma simultaneidade de opressões – tais como a “superexploração”, a “dupla opressão e a “tripla opressão” (Gonzalez, 1979a, 1979b, 1982, 1984), além de perspectivas que, de forma mais diluída, discutem sua “especificidade” (Viana, 2010) ou o “agravamento de sua condição de servilidade por ser mulher, negra e pobre” (Silva, 2017: 8).

A inflexão política no período entre a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em 1995 em Pequim, e a III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, em Durban, em 2001, intensifica, nas décadas seguintes, as relações entre os dois contextos e, sobretudo, entre academia e ativismo no Brasil. Os avanços organizativos e políticos dos movimentos de mulheres negras, que logravam cada vez mais pautar a agenda do Estado, e os desdobramentos de Durban[3], levam à complexificação das concepções dominantes das intersecções, que se movem cada vez mais da noção de somatória para um investimento no perspectivismo e no conhecimento situado (Rodrigues, 2006). Considerando a amplificação substantiva dos debates sobre a interseccionalidade que se segue, que acontece tanto pelo ativismo (Rios & Perez & Ricoldi, 2018) como na academia, seja a partir dos diálogos com as formulações teóricas prevalentes nos estudos de gênero (Kergoat, 2010; Piscitelli, 2008) ou por meio da produção de estudantes e pesquisadores negros (Lima, 2018), esse momento constituirá, portanto, o limite temporal da discussão proposta.

Interseccionalidade e sociologia[editar | editar código-fonte]

As notas de leitura adiante buscam indicar caminhos para explorar semelhanças entre os conceitos, contextos e formulações, assim como possíveis ajustes necessários para que sejam mais rentáveis para uma discussão sociológica.

Trabalho e exploração[editar | editar código-fonte]

A construção de uma genealogia que privilegie uma tradição sólida e linear de pensamento onde, na verdade, parece haver uma série de vetores em variadas direções e com diferentes tempos e contextos pode levar à seletividade das categorias importantes. Este pode ter sido o caso da produção sobre trabalho e exploração, em que as tendências marxistas ou internacionalistas de uma época – dos anos 1940, nos EUA, aos 1980, no Brasil, ao menos – foram suprimidas ou não assumidas em sua continuidade (Biroli & Miguel, 2015). As discussões nesse sentido, que desembocam nas ideias de superexploração (Jones, 1949) e dupla/tripla discriminação (Gonzalez, 1979a), múltiplas opressões (King, 1988), entre outras, constituem um momento da bibliografia e da discussão ativista, gestadas e intensificadas em meio a movimentos como o panafricanismo, o sindicalismo negro, as organizações de favelas, o movimento negro e a resistência ao autoritarismo (Umoren, 2018; Santos, 2008; Perry & Sotero, 2020).

Apesar da diversidade que caracteriza esses momentos e conjuntos de reflexões, dois elementos importantes são compartilhados. O primeiro deles é a tomada da escravidão como ponto de conexão e inteligibilidade para os posicionamentos contemporâneos das mulheres negras no mercado de trabalho. Caracterizado por uma composição de atividades que Adrienne Davis (2003) nomeia a “economia política sexual da escravidão”, o exercício do trabalho pelas mulheres escravizadas é compreendido como composto por: trabalho produtivo, realizado pelos escravizados sem distinção de gênero e quaisquer suavizações relativas à feminilidade (Davis, [1981] 2016; Giacomini, 1988; Gonzalez, 1979); trabalho reprodutivo, isto é, doméstico e de cuidados, além da própria reprodução biológica da força de trabalho escravizada (Gonzalez, 1984; Abreu, 1996; Santos, 2016); e trabalho sexual, o que incluía a exploração sexual cotidiana e a predação sexual, os mercados de vendas de mulheres escravizadas para fins sexuais e outras práticas que tornavam o sexo, com caráter punitivo ou disciplinador, uma das exigências e expectativas dessa relação de trabalho. Essa tríade se encontraria reposta no período pós-Abolição e no contemporâneo, principalmente no trabalho doméstico, que congregaria de forma mais evidente essas dimensões, bem como na conformação mais ampla do mercado de trabalho para as mulheres negras (Jones, 1949; Gonzalez, 1979).

Nessa relação de continuidade entre os tipos de trabalho exercidos, as condições desse exercício, o acesso a direitos e as possibilidades de ascensão, “função trabalho” e “função sexo” (Gonzalez, 1984) estão imbricadas e se vinculam a outras dimensões da vida social, recebendo suporte de um aparato legislativo e institucional que sanciona ou acata essas práticas (Crenshaw, 1991). Essa conexão do trabalho com família, sexualidade, violência, maternidade, masculinidade e comunidade, entre outros, é o segundo elemento comum a essas reflexões. Salienta-se a influência das condições de trabalho sobre toda a vida comunitária: enquanto mantenedoras principais (frequentemente únicas) das famílias negras, ocupadas majoritariamente em empregos mal remunerados e irregulares, as mulheres negras estariam inscritas em um ciclo de pobreza e exclusão (Jones, 1949) que, por sua vez, sinalizaria a impossibilidade de um plano de ascensão vertical para a população negra em geral (Collins, 2000), uma vez que a prevalência indiscutível do trabalho doméstico restringiria a ampliação de sua escolaridade e a busca de empregos mais qualificados. Mesmo quando superada essa barreira, outros mecanismos, como a “boa aparência” assegurariam a seleção racial (Gonzalez, 1982). Simultaneamente, a perseguição aos seus filhos e familiares pela polícia e pelo Estado, as duplas ou triplas jornadas, a sobrecarga emocional (além da exposição ao assédio e violência sexual, que se perpetuam) e a ausência na vida familiar configurariam os efeitos da exploração de seus trabalhos nas comunidades negras (Gonzalez, 1982).

Esse quadro geral, por fim, ordenaria as teses da superexploração a partir de um modelo multiplicativo, que prevaleceria pela próxima década, explicado de forma privilegiada nesse excerto de King (1988: 47):

O modificador ‘múltiplo’ [múltiplas opressões] faz referência não apenas a várias opressões simultâneas, mas também às relações de multiplicação entre elas. Em outras palavras, a formulação equivalente seria o racismo multiplicado pelo machismo multiplicado pela diferença de classe.

Ideologia e dominação[editar | editar código-fonte]

A dimensão ideológica, a mais explorada nos textos, tem como cerne um conjunto de imagens sociais estereotipadas – entendidas por Collins (2000) como “imagens de controle” – que serviriam para justificar a exploração e a violência contra as mulheres negras e exercer controle sobre suas subjetividades, caracterizadas como patológicas, desviantes, anômalas. Informando as políticas públicas e os limites do tratamento aceitável para essas mulheres, essas imagens contribuiriam para mantê-las em lugares socialmente subordinados e seriam fundamentais para sua dominação enquanto grupo.

Collins destaca cinco imagens nos Estados Unidos. A mammy seria a “boa mãe negra”, doce, submissa, assexuada, que, abandonando sua própria família para cuidar da família branca, representaria a face positiva da escravidão. Já a “matriarca” representaria a “mãe negra ruim”, trabalhadora e ausente do cotidiano familiar. Agressiva e masculinizada, ela seria a principal responsável pelas “falhas” das famílias negras – monoparentalidade, ausência de provedores masculinos, desvios de comportamento entre a juventude –, reduzindo e performando o papel tradicional masculino. Na contracorrente, a “mãe” ou “rainha do welfare”, geralmente representada como uma mãe adolescente, solteira e negra, dependeria das bonificações do Estado para sua sobrevivência, expressando uma sexualidade perigosa e desenfreada que constituiria um peso sobre as contas públicas. De forma análoga, a Jezebel seria hipersexual, agressiva e fértil. Marcando os limites da sexualidade normal, essas duas figuras, associadas à “reprodutora” do período escravista, expressam o interesse de controlar a fertilidade das mulheres negras num período de recessão econômica e justificar seu abuso e violação sexual. Por fim, a “senhorita negra”, membro de uma classe média profissional e bem-sucedida, operaria para fortalecer um discurso alicerçado na meritocracia, contrário às ações afirmativas e relacionado de diferentes maneiras com a questão do trabalho e da sexualidade.

Alguns anos antes, Lélia Gonzalez já havia articulado em três categorias centrais as imagens estereotipadas e funções laborais desempenhadas por mulheres negras brasileiras. De um lado, a mucama seria a “amásia escrava” doméstica, responsável por “manter, em todos os níveis, o bom andamento da casa grande: lavar, passar, cozinhar, fiar, tecer, costurar e amamentar as crianças nascidas do ventre ‘livre’ das sinhazinhas” (Gonzalez, 1982: 93) e, além disso, submetida aos assédios sexuais do senhor branco e dos outros homens. Essa imagem se desdobraria contemporaneamente nas figuras da mulata carnavalesca, a face desejável e sexualizada da mucama, o elemento de “desordem na ordem constituída do cotidiano” familiar (Correa, 1996: 41), e, além dela, da doméstica, o outro lado do endeusamento carnavalesco, onde a ordem racial prevalente seria restabelecida com fortes doses de agressividade. Essas imagens seriam “atribuições de um mesmo sujeito” – nas palavras de Gonzalez, “vai depender da situação em que somos vistas” – e justificariam a opressão e a exploração dessas mulheres, inclusive no sentido sexual. Além da mucama, a mãe preta, semelhante à mammy, representa a cuidadora que sabe seu lugar e constitui modelo do comportamento aceitável na sociedade branca.

Ainda mais do que no caso estadunidense, essas imagens seriam centrais na composição do imaginário e das práticas próprias do racismo no Brasil, expressos nas ideias de (mito da) democracia racial, racismo denegado, assimilação e mestiçagem (Gonzalez, 1988a). Isso tanto no sentido de construir e encenar esse imaginário – o carnaval como o momento fundamental de sua atualização –, como nas práticas que, por vezes passivamente, refletem a resistência a esse estado de coisas. Para a autora, a mãe preta exerceria simbolicamente o papel da mãe da cultura brasileira, o que se percebe na africanização da língua, dos valores e costumes, que demonstram que o Brasil “não vem a ser o que geralmente se afirma: um país cujas formações do inconsciente são exclusivamente europeias, brancas” (Gonzalez, 1988b: 69).

Por fim, essas imagens seriam necessariamente relacionais. Isso porque, baseadas em “binarismos, dispostos como diferenças absolutas, hierarquizadas e com um elemento do par “objetificado como ‘o Outro’ e visto como um objeto a ser manipulado e controlado” (Collins, 2000: 70), se entrelaçam com as imagens de outros grupos sociais, demonstrando a ação do poder racializado e hierarquizante que opera “dentro e por meio dos corpos” e contribui com a conformação de hierarquias “não apenas entre as categorias de pessoas dominantes e subordinadas, mas também entre os integrantes de cada uma dessas categorias” (Brah, 1996: 3). Nesse sentido, é especialmente relevante a relação entre as imagens de mulheres brancas e negras, que fundamentou a construção de uma feminilidade hegemônica que incluía o impedimento de realizar determinadas formas de trabalho (Davis, 2016), pureza sexual e castidade, o exercício da maternidade (Giacomini, 1988; Gonzalez, 1984; Collins, 2000), entre outros. Contribuíram, nessa medida, para dar forma a noções de outros grupos sociais que “não subjugam apenas as mulheres negras […], mas são centrais na manutenção de opressões que se intersectam” (Collins, 2000: 69).

Voz, representação e ação coletiva[editar | editar código-fonte]

O terceiro conjunto temático comum à produção abordada nos dois países é o “arco constituído pelo encontro de uma voz para expressar uma perspectiva coletiva e autodefinida das mulheres negras” (Collins, 2000: 99). Aqui, abre-se uma gama de problemas interpretativos e políticos: o entrelaçamento entre autodefinição – “o poder de nomear sua realidade” – e autodeterminação – “o poder de decidir o seu destino” (Collins, 2000: 45) enquanto horizontes emancipatórios do feminismo negro; a fala (pública, política, social) a partir do lugar de “sujeitos não apenas de nosso próprio discurso, se não de nossa própria história” (Gonzalez, 1988a: 135); a constituição, a partir daí, de “outras formas possíveis ou desejáveis de expressão e representação do que fomos, do que poderíamos ter sido, do que desejamos ser, antes e além do eurocentrismo e suas pressões simbolizadas pelo racismo heterossexista, sua dominação econômica e seus ataques no plano simbólico” (Werneck, 2010: 16). O salto fundamental não está na substituição do conteúdo associado socialmente às mulheres negras, mas, como quer Collins (2000), no poder de que elas dispõem para se apresentarem a partir de seus próprios referenciais.

Por um lado, essa questão se atrela à representação política – em particular, no caso brasileiro, a atuação em movimentos sociais. Em grande medida, a formação de grupos autônomos de mulheres negras nas décadas de 1970 e 1980 esteve relacionada às limitações para sua inclusão nos movimentos negros, feministas, de esquerda, entre outros (Lemos, 1997). Nesses percursos, as formulações e o resgate de histórias de sobrevivência, resistência e rebelião se tornaram a marca do feminismo negro brasileiro, configurando o que Vilma Reis nomeou “o poder […] de contar história para escrever texto que o nosso povo entenda” (apud Cardoso, 2012: 272). A imagem da mulher negra guerreira, que trabalha arduamente pela sustentação material e simbólica da comunidade e tem papel central na articulação de revoltas, é encontrada tanto no ativismo brasileiro desse período como em momentos da história dos Estados Unidos, tais como o famoso discurso de Sojourner Truth e a obra de Angela Davis.

Entre nós, a “atualização seletiva de elementos da tradição afro-brasileira e de diferentes modelos que conferiram à mulher negra o poder de liderança e de agenciamentos” (Werneck, 2010:15) formam o substrato central dessas referências, refletem-se tanto a partir das yabas – orixás femininas, que, de diversas formas, subvertem as expectativas da feminilidade tradicional (Carneiro & Cury, 2008: 24) – como assumem um caráter ainda mais radical e transgressor com relação ao gênero ao tornar possíveis papéis invertidos, cruzados ou ressignificados de diversas formas a partir das identificações de mulheres com os oboros (orixás masculinos) e de padrões complexos de fluidez de gênero (Segato, 2003). Assim como as igrejas e salões de cabeleireiros da população negra nos Estados Unidos (Collins, 2000), as religiões afro-brasileiras aparecem como quadros de referência, arenas em que concepções alternativas de negritude e feminilidade são veiculadas e experimentadas (Perry, 2013). Mais recentemente, ainda, feministas negras jovens têm operado uma “guinada subjetiva” (Rios & Maciel, 2018), em que as exigências de representação pública dos “universos de mulheres negras” (Abdalla, 2023: 180) tomam preponderância. Além da formação de imagens alternativas, por fim, os agenciamentos possíveis incluem estratégias para a respeitabilidade e a estabilidade social que envolvem comportamento, trabalho, escolhas e relações afetivas e familiares, entre outras coisas.

De outro lado, a questão aponta para a produção de conhecimento para as mulheres negras e a partir de uma perspectiva situada. Considerando o “posicionamento diferencial” de mulheres negras “nos mundos econômico, social e político” e “física e culturalmente marginalizadas em relação à sociedade dominante”, para Crenshaw, “a informação [produzida] deve focar diretamente nelas para alcançá-las” (Crenshaw, 1991: 1250). Para Collins (1986: 19), em razão de sua localização em relação ao “poder masculino branco” – já que “ao contrário das mulheres brancas, elas não têm ilusões de que sua branquitude vai negar a subordinação feminina, e, diferentemente dos homens negros, não podem usar um apelo questionável à masculinidade para neutralizar o estigma de serem negras” – , as mulheres negras perceberiam com maior nitidez a estruturação hierárquica e desigual da sociedade, atentando-se para como os diferentes sistemas de opressão as afetam e a outros grupos sociais. Com isso, elas teriam “gerado uma perspectiva distintiva das relações de raça, classe e gênero que formam a base do ponto de vista feminista negro”. Ou seja, mais do que a produção de conhecimento para elas, trata-se de um conhecimento construído a partir de suas próprias experiências e perspectivas.

Dentre elas e com especial força para impulsionar o debate público estão as intelectuais negras, onde a questão da representação se encontra com a perspectiva situada. Para Collins (2000), independentemente de formação específica e integração no universo acadêmico, essas intelectuais representariam uma “consciência de oposição”, construída a partir de visões por dentro e por fora – inseridas sem pertencer – do “mundo branco” (Collins, 1986). Seu papel na formulação e veiculação de concepções não estereotipadas e emancipatórias das mulheres e da comunidade negra seria central. Já para bell hooks (1994), a produção teórica construída por intelectuais negras pode “dar sentido ao mundo” e servir para curar experiências traumáticas compartilhadas por essa comunidade. As condições do trabalho intelectual também são do interesse de ambas as autoras (Collins, 2000; hooks, 1995). No Brasil, esse debate entrou na pauta mais recentemente, a partir das transformações nas universidades brasileiras, que ampliaram o número de estudantes, professores e pesquisadores negros, com impactos sobre a produção científica (Lima, 2018; Lima, 2020), das perspectivas dos movimentos e da sociedade (Gomes, 2017) e da formação de intelectuais públicas que se tornam participantes centrais dessa interlocução (Rios & Maciel, 2018).

Conclusão[editar | editar código-fonte]

Essa primeira concatenação de ideias, bastante reduzida e centrada em textos de um determinado período, não visa – nem poderia – esgotar o debate, mas apenas colocar questões e pontuar algumas conexões entre a produção vinculada à noção de interseccionalidade e elementos centrais da teoria social. Vale notar que as áreas demarcadas breve e superficialmente nessa nota de pesquisa se colocam precisamente onde foram apontadas algumas das lacunas das teorias interseccionais – a historicidade, o caráter estrutural, o tratamento da classe social, a possibilidade de agenciamentos. Outros exercícios são necessários e bem-vindos para o desenvolvimento dessa interlocução – para começar, uma análise semelhante, mais aprofundada e levando em conta a produção mais recente e, sobretudo, uma discussão mais centrada nas proposições de método.

Referências[editar | editar código-fonte]

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