Mães que dizem "não aos assassinatos" nas favelas - artigo

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Este artigo aborda a situação de mães que perderam seus filhos devido à violência policial nas favelas do Rio de Janeiro. Ele destaca a dor e o sofrimento dessas mães, que muitas vezes enfrentam preconceito e falta de apoio das autoridades. O artigo também discute as políticas pró-armas do governo e o viés racial nas mortes causadas pela polícia. Além disso, destaca a luta dessas mães para preservar a memória de seus filhos e chamar a atenção para a violência policial nas favelas.

Autoria: Laís Martins
Este artigo foi originalmente publicado em Democracia Aberta e republicado em Nova Sociedade com autoria de Laís Martins. O texto foi traduzido para o português.
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O artigo[editar | editar código-fonte]

Os assassinatos de crianças e jovens nas favelas do Rio de Janeiro estão em erupção. A polícia mata garotos a sangue frio, acusando-os de criminosos. As mães se levantaram para dizer o suficiente. Mas a política pró-armas de Bolsonaro e o fortalecimento do regime repressivo não pararam.

Todos os dias, a partir de 6 de maio de 2021, Sandra Gomes dos Santos espera por um som familiar: o portão de entrada que abre e o grito de "Mãe, estou aqui!" Todas as manhãs desde aquele fatídico dia, Adriana Santana de Araújo se vê olhando para o telefone, esperando uma mensagem de "bom dia" do filho.

Ambas as mulheres esperam em vão. Seus filhos estão entre as 28 vítimas fatais da operação policial mais letal da história do estado do Rio de Janeiro. Policiais fortemente armados invadiram o Jacarezinho, uma das maiores favelas do Rio, em busca de traficantes. O ataque ocorreu poucos dias antes do Dia das Mães. Santos e Araújo eram apenas duas das muitas mães que passavam o Dia das Mães enterrando seus filhos.

E isso foi só o começo. Eles também têm que lidar com o transe estressante de seguir em frente com a vida. "Temos que sobreviver todos os dias", diz Araújo, enquanto Santos acena. Nossa entrevista aconteceu em uma escola de samba, a poucos metros da entrada do Jacarezinho. Santos, que ainda mora aqui porque não está em posição de alugar nada em qualquer outro lugar, vive com medo constante da polícia rondando a área. Os agentes pertencem à Cidade Integrada, programa que mantém policiais permanentemente estacionados dentro das favelas, supostamente para proteger os moradores da exploração financeira de gangues. Mas alguns desses policiais do Jacarezinho faziam parte da operação em que o filho de Santos foi morto.

Muitas mães em luto sofrem de ansiedade e depressão. Araújo não pode lamentar a morte de seu filho mais velho porque ela é consumida pela preocupação de que a criança será levada da mesma forma.

As mulheres recebem pouca ou nenhuma compaixão por suas perdas. Pelo contrário, eles são vilipendiados. "Você sabe como eles nos chamam?", pergunta Araújo. "Útero e depósito de membros de gangues. Não, eu não sou um reservatório ou um útero que produz criminosos", responde.

As mães das vítimas do Jacarezinho são praticamente invisíveis ao estado brasileiro. Seus filhos, vítimas diretas da violência do Estado, estão listados nas estatísticas, mas as demais mães, pais, filhos e filhas não são contados. Parentes das vítimas carregam cicatrizes profundas que na maioria das vezes passam despercebidas.

"Há muito sofrimento que vem da perda de entes queridos. Nessa lógica de violência por grupos armados, ter filhos, parceiros, parentes do sexo masculino, é, então, um sofrimento que afeta muito diretamente as mulheres", diz José Claudio Souza Alves, especialista em segurança pública e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). "Essas mulheres adoecem e acabam morrendo."

Esta afirmação não é um exagero. Jozelita de Souza morreu em 2016, sete meses após o assassinato de seu filho Roberto em Costa Barros, outra favela do Rio de Janeiro. Quatro policiais dispararam mais de 100 balas em um carro em que o jovem desarmado de 16 anos estava com quatro amigos. Mais tarde foi revelado que a polícia tentou fazer o massacre parecer um ato de legítima defesa. Os médicos determinaram que a causa da morte de Jozelita foi insuficiência cardiorrespiratória, mas como um relatório local descreveu na época: "Ela não podia suportar a morte de seu filho ... o cabeleireiro morreu de tristeza.

Uma história de violência repressiva[editar | editar código-fonte]

Operações policiais violentas não são novidade no Brasil, muito menos no Rio de Janeiro. Segundo dados compilados pela ONG Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 6.416 pessoas morreram nas mãos da polícia brasileira em 2020. No estado do Rio, houve 1.245 mortes no mesmo ano, segundo dados da Rede de Observatórios de Segurança. Entre 2013 e 2020, as mortes por policiais quase triplicaram.

Alves argumenta que o Rio de Janeiro é marcado por "política criminosa", à medida que grupos armados prosperam em decorrência de sua relação direta com o Estado. Em nome da "guerra às drogas", a polícia realiza operações em favelas controladas pelo tráfico de drogas. Especialistas há muito apontam que essa estratégia não resolve o problema, uma vez que os mortos e presos nas favelas pertencem, em sua maioria, ao menor elo da cadeia do tráfico. Além disso, as operações policiais também podem levar a uma mudança de mãos quando um grupo rival assume o controle do território dominado por outra facção ou grupo de tráfico de drogas, exacerbando conflitos e violência.

O modus operandi desses procedimentos, no entanto, é de aniquilação: grupos especiais, equipados como se estivessem indo para a guerra, invadem comunidades em veículos militares em busca de suspeitos.

Esses bairros densamente povoados são tratados como laboratórios para iniciativas de segurança pública, muitos dos quais falharam no passado. O teste do governo estadual da Cidade Integrada no Jacarezinho é um exemplo. O programa atual é inspirado nas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), que foram pioneiras na colocação de unidades policiais nas favelas do Rio há 14 anos.

No entanto, a presença policial criou um estado permanente de guerra, que está em ascensão à medida que ambos os lados adquirem armas mais poderosas e letais. Dani Monteiro, deputada estadual do Rio de Janeiro, explicou: "Sempre ouço de agentes de segurança pública: 'Compramos fuzis porque enquanto os criminosos tinham fuzis, tínhamos pistolas. Então eles tinham rifles e nós compramos rifles. Mas um dia eles apareceram com o 762 [um rifle mais poderoso]. Então também compramos 762, mas então eles apareceram com metralhadoras de longo alcance, então tivemos que comprá-los também."

Políticas pró armas[editar | editar código-fonte]

Especialistas sugerem que o crescente número de armas nas mãos de civis tende a produzir um estado de guerra permanente cada vez mais intenso nas favelas do Rio. Isso é resultado das mudanças políticas decorrentes da agenda pró-armas do presidente Jair Bolsonaro. Desde que assumiu o cargo, em 1º de janeiro de 2019, Bolsonaro introduziu mais de 30 mudanças legais que facilitam o acesso de civis a armas de fogo. Mas o relaxamento dos mecanismos de controle de acesso facilita o desvio de armas para grupos do crime organizado.

"O governo federal, na figura de Bolsonaro, argumenta que as políticas pró-armas ajudarão os cidadãos a combater a criminalidade, mas é o crime que está se beneficiando dessas políticas", explica Cecília Olliveira, jornalista, especialista em segurança pública e diretora executiva do banco de dados digital colaborativo Fogo Cruzado. A iniciativa coleta dados sobre a violência armada no Rio de Janeiro e Recife. Acrescenta que o acesso mais fácil às armas tem sido acompanhado de um relaxamento de controle e fiscalização, sem a correspondente ampliação da capacidade policial para investigar crimes com armas.

Em sua decisão de abril de 2021 de suspender partes de decretos presidenciais para ampliar o acesso às armas, a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber citou que 55% de todas as armas apreendidas com criminosos foram obtidas legalmente antes de serem roubadas ou vendidas ilegalmente. Os dados são consistentes com os do CCI Arms, uma comissão parlamentar do Congresso que investigou o tráfico de armas em 2006.

Alves, da UFRRJ, descreve o resultado da facilidade de acesso como "uma expansão de armas, o que, por sua vez, estabelece uma lógica de insegurança. Grupos estarão armados para autoproteção ou para fins lucrativos." E acrescenta que "a justificativa para o uso de armas é ampliada, porque é uma zona de conflagração. E em zonas de conflito, a lógica é a auto-proteção armada."

A justificativa policial para a operação de 6 de maio de 2021 no Jacarezinho é um exemplo dessa mentalidade de "zona de guerra". Segundo a polícia, a operação fazia parte de uma investigação sobre o recrutamento de menores por grupos de tráfico de drogas. Mas muitas das famílias das vítimas dizem que seus filhos eram inocentes. Em outros casos, como o do filho de Araújo, o mototaxista Marlon Santana de Araújo, as vítimas tiveram participação mínima como varejistas, jargão usado para se referir a pessoas no nível mais baixo da hierarquia do tráfico de drogas, explica a mãe. Ele também acredita que Marlon foi uma vítima porque, como um jovem negro de uma favela, ele sofreu racismo estrutural que o excluiu de muitas oportunidades.

Preconceito racial[editar | editar código-fonte]

Estatísticas de mortes nas mãos da polícia apontam para um claro viés racial. Em 2020, segundo dados compilados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), ONG que atua na área de segurança pública, 78,9% de todas as vítimas de intervenção policial no Brasil eram negras, número que se manteve constante há décadas. Segundo a FBSP, isso demonstra "o déficit de direitos fundamentais aos quais a população negra do país está sujeita".

Jovens negros detidos por pequenos crimes sempre correm o risco de serem perdidos para sempre, transformados tanto pela violência a que são submetidos quanto pela exposição às redes do crime organizado que operam dentro dos presídios brasileiros.

A ativista de direitos humanos do Rio Monica Cunha experimentou isso em primeira mão com seu filho Rafael. Preso aos 15 anos, ele passou cinco anos em uma penitenciária juvenil. Ele nunca mais foi o mesmo. "Vi o Rafael mudar, vi como ele entrou no sistema e no que se tornou", lembra. "Em 5 de dezembro de 2006, quando o corpo de Rafael foi jogado no chão com um tiro de fuzil, que Rafael não era mais Rafael. Foi transformado nesses cinco anos dentro desse sistema."

Mais tarde, Cunha fundou o Movimento Moleque, ONG que ajuda mães vítimas de violência do Estado a se organizarem. Ele também pede que não deixem que as pessoas chamem seus filhos mortos de criminosos. "Eu não fiz um cheque em branco para que ninguém falasse do Rafael", diz ele. "O único que pode falar do Rafael sou eu. Eu que dei à luz, eu sei como foi criá-lo, eu sei como foi amamentá-lo, eu vi quando ele começou a se transformar, então ninguém tem que falar sobre meu filho. Eis o que eu digo a essas mulheres: 'Não deixe ninguém dizer que seu filho é um bandido, porque ele não é, ele nunca foi. Ele pode ser um varejista, porque tudo o que temos aqui [na favela] são varejistas, mas não bandidos."

Após a operação no Jacarezinho, Bolsonaro foi ao Twitter difamar os parentes enlutados e parabenizar a polícia por matar "traficantes de drogas que roubam, matam e destroem famílias". No momento de seu depoimento, o inquérito policial sobre o verdadeiro envolvimento do falecido em atividades criminosas ainda não havia sido iniciado. O presidente também posou para uma foto com uma placa com a frase "CPF cancelado", expressão usada para se referir a pessoas mortas em operações policiais.

O número de mães enlutadas e parentes de vítimas de violência do Estado continua a crescer. Em maio, um ano após a operação policial no Jacarezinho, outra operação policial deixou 23 mortos na Vila Cruzeiro, favela na zona norte do Rio.

Sem ação, sem pesquisa[editar | editar código-fonte]

Enquanto isso, as mães de luto do Jacarezinho continuam asolidas pela inação das autoridades. A Procuradoria-Geral da República (MP) arquivou investigações sobre 24 dos assassinatos, acusando a polícia de homicídio e adulteração de provas em apenas três das mortes. O caso de Matheus, filho de Santos, é um dos que foram arquivados. Ela diz que ele estava sentado, desarmado, em uma cadeira de plástico enquanto sofria uma convulsão epiléptica quando foi baleado. "Eu não tinha drogas com ele e eles o mataram de qualquer maneira", diz ela.

Olliveira, do Fogo Cruzado, diz que o MP deve responsabilizar a polícia. "Eles são responsáveis por fiscalizar as ações da polícia. A omissão do MP significa manter o status quo de uma força policial que mata e morre muito, e neste caso, mata mais do que morre", argumenta.

De fato, acrescentou, o GAESP, unidade do MP destinada a fiscalizar ações policiais, perdeu pessoal e recursos, resultando em um atraso de casos pendentes de investigação.

O ataque ao Jacarezinho foi, de certa forma, um outlier. O evento atraiu atenção nacional e internacional e até levou a uma investigação. As mortes de muitas vítimas de violência armada nunca são investigadas. O que é pior, seus corpos não aparecem. Esse ônus é então transferido para as famílias das vítimas, geralmente mulheres, segundo Adriano de Araújo, sociólogo e coordenador do Fórum Grita Baixada, movimento social de luta pelos direitos humanos, segurança pública e justiça na Baixada Fluminense, região da região metropolitana da cidade do Rio de Janeiro.

"Geralmente são as mulheres que estão envolvidas no processo de busca, que vão a hospitais, necrotérios, colocam cartazes nas ruas, fazem rondas com seus amigos para tentar encontrá-los, são elas que vão para as bocas de fumo, atrás dos traficantes, dos milicianos", diz ela. "A violência dobra, porque além de não saber onde está seu neto, filho, irmão, eles têm que ouvir que foram negligentes, que não eram boas mães, que não eram boas esposas, que deixaram seus filhos abandonados."

Culpa e vergonha contribuem para o sofrimento das mulheres. Muitos deles já sofrem de problemas de saúde anteriores devido à falta de atendimento médico. "Eles param de se cuidar, param de ir ao médico, esquecem de tomar o remédio porque se envolvem emocionalmente com a busca", diz Araújo.

Eles também sofrem o ônus financeiro adicional de perder uma fonte de renda, o que faz toda a diferença para as famílias onde as mulheres já são o principal provedor.

Não há direito à memória[editar | editar código-fonte]

Um ano após a operação do Jacarezinho, a ferida ainda está aberta. Toda vez que há uma tentativa de cura, a ferida se abre novamente. Em 11 de maio de 2022, menos de uma semana após o primeiro aniversário do massacre, um simples memorial erguido por parentes de vítimas e outros moradores da favela foi destruído pela polícia. Em uma cena cheia de simbolismo, a pequena placa comemorativa com os nomes de todas as vítimas foi derrubada por um caveirão, já que o veículo blindado usado pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro é popularmente conhecido. "Nenhuma morte deve ser esquecida; nenhum massacre deve ser normalizado", dizia a placa.

"Memoriais como os do Jacarezinho são a prova de vida. É uma manifestação da esperança de que a brutalidade e a arbitrariedade sejam lembradas para que nunca mais se repitam", escreveu a proeminente jornalista Flávia Oliveira em sua coluna no jornal O Globo após a destruição do memorial. "Tudo isso foi tirado dos parentes dos mortos no massacre pelo mesmo poder público que o provocou", acrescentou.

Enquanto isso, as mães dos mortos do Jacarezinho e outras vítimas de violência policial estão fazendo de tudo para evitar que o Estado reescreva ou apague a história. No Rio de Janeiro e em outros lugares do Brasil, coletivos e grupos de mães e famílias de vítimas de violência do Estado servem como redes de apoio e também como memoriais vivos para a vida de jovens perdidos.

Cunha, do Movimento Moleque, diz que as mães têm uma inspiração: as mães de Acari. Essas mulheres da favela Acari, no Rio de Janeiro, embarcaram em uma missão para revelar as circunstâncias do sequestro e assassinato de 11 adolescentes pela polícia em julho de 1990. "Eles são uma bússola para nós", diz Cunha. "Mulheres que nos fazem ver que não podemos parar."

Para essas mães, o luto e a memória são territórios disputados, mas pelos quais continuam lutando. Para o Estado, são invisíveis: danos colaterais da violência armada. Mas um para o outro, eles são balizas no escuro.