Marielle foi morta por defender o direito à moradia (artigo)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Artigo editorial produzido pelo portal Rio On Watch sobre o assassinato político da vereadora Marielle Franco.

Autoria: RioOnWatch[1].
Marielle Franco.

Foi pelo direito à terra e à favela![editar | editar código-fonte]

Foram seis anos de frustração e cobrança por investigação eficiente e conclusiva, que respondesse à inquietação: Quem Mandou Matar Marielle e Anderson?

Como vereadora, Marielle Franco ativou o debate do direito à moradia e à terra. Foi seu mandato, em uma articulação coletiva, que cunhou o termo Direito à Favela. Em 2017, seu mandato reuniu cerca de 300 pessoas no Museu da Maré, no 1º Encontro de Direito à Favela. Muitos temas foram debatidos, inclusive o direito à moradia e à terra nas favelas.

O direito à moradia está previsto na Constituição Federal, no Artigo 6°, que fala dos direitos sociais dos brasileiros. O direito à moradia adequada foi estabelecido pela ONU e possui diversos elementos como acesso aos serviços urbanos, localização adequada, custo acessível e segurança da posse. Este último ponto diz respeito ao direito de permanecer no seu local de moradia e está intimamente relacionado com a política de regularização fundiária.

O Rio de Janeiro enfrenta um déficit habitacional histórico, com déficit de 500.000 casas. Isso no estado que ostenta o título de segundo mais rico do país. É neste contexto que o Projeto de Lei 174/2016, apresentado pelo então Vereador Chiquinho Brazão, flexibilizava as exigências para a regularização de parcelamentos do solo e construções irregulares em bairros com forte atuação das milícias. O que a princípio poderia parecer atender a uma demanda real de moradores de baixa renda em áreas irregulares, no fundo beneficiava a atuação de grupos milicianos, que viam na perspectiva da legalização o estímulo para seguir promovendo loteamentos clandestinos.

Marielle se posicionou publicamente contra o projeto, por considerar que ele não atenderia aos moradores de áreas socioeconomicamente vulneráveis com a moradia digna de seu direito, e sim aumentaria a vulnerabilidade destas mesmas pessoas. Além disso, muitos seriam empreendimentos de renda média ou alta, incorporados pelas milícias: os grandes beneficiados pela projeto de lei de Chiquinho Brazão, que contava com apoio inicial da prefeitura, à época administrada pelo Prefeito Marcelo Crivella. Depois de toda pressão popular e exposição midiática relacionando o projeto às milícias, Crivella se viu obrigado a vetar o projeto de lei. No entanto, o veto foi derrubado pelos parlamentares, resultando na legalização de 149 bairros sem planejamento apropriado.

Marielle e outros parlamentares de oposição denunciaram que o projeto de lei favoreceria a grilagem de terras, a expansão urbana sobre áreas de preservação ambiental e a construção e venda de imóveis irregulares por parte das milícias, e não o desenvolvimento e regularização das favelas. Essa cadeia imobiliária mafiosa e ilegal não acontece às escuras. As quadrilhas oferecem esses imóveis em imobiliárias, inclusive, ofertando a possibilidade de financiamento dos imóveis pela própria milícia. Eventualmente, o Ministério Público do Rio de Janeiro entrou com uma ação resultando na lei sendo declarada inconstitucional.

Além do custo ambiental, essas construções não obedecem a padrões de segurança e põem em risco a vida de moradores. Ao contrário das favelas, onde, em geral, as casas são feitas ao longo de anos, de acordo com a necessidade das famílias e por profissionais do território que ganham experiência naquele terreno e relevo, nos empreendimentos imobiliários das milícias, a lógica é puramente mercadológica, gerando unidades feitas a toque de caixa, com materiais duvidosos e impróprios, e mão de obra precarizada. A última preocupação é a segurança dos moradores. Além do evidente lucro com o mercado imobiliário, com a criação de novos bairros, condomínios e conjuntos habitacionais, as milícias ganham também novos territórios para extorquir.

Segundo o inquérito da Polícia Federal, a votação contrária ao projeto de lei por parte da vereadora mareense causou insatisfação profunda a Chiquinho Brazão. De acordo com o inquérito, este é o motivo que levou Chiquinho e Domingos Brazão, além do ex-chefe da Polícia Civil a encomendarem o assassinato da Vereadora Marielle Franco.

Outro fato que confirma a ligação apontada pela PF entre a máfia de terras do Rio de Janeiro e o feminicídio político de Marielle Franco é que o pagamento dos pistoleiros da vereadora seria feito com terras griladas da milícia. Em março de 2019, a PF prendeu os policiais militares Ronnie Lessa e Élcio Queiroz, acusados de serem os executores de Marielle e Anderson Gomes. Segundo a investigação, o próprio pagamento pela execução de Marielle seria feito por meio de lotes oriundos de grilagem de terras em áreas de milícia, que teriam uma expectativa razoável de serem legalizados posteriormente.

Milícias e terrenos grilados foram o motivo central do assassinato político de Marielle Franco[editar | editar código-fonte]

Cada vez mais, a atuação das milícias no Rio de Janeiro se articula com a questão fundiária. Segundo relatório de 2021 produzido pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni/UFF) e Observatório das Metrópoles do IPPUR/UFRJ, as atividades imobiliárias legais ou ilegais praticadas por grupos milicianos estão se tornando uma das suas principais fontes de renda.

Este urbanismo miliciano é praticado tanto a partir da apropriação de empreendimentos habitacionais públicos, especialmente condomínios do programa Minha Casa Minha Vida, quanto a partir da construção irregular de unidades residenciais, que são depois legalizadas pelo poder público, infiltrado pelas milícias.

Segundo os pesquisadores:

“Em linhas gerais, o urbanismo miliciano se vale da conivência das prefeituras, do suborno, cooptação ou ameaças de uso de violência de fiscais, da inserção de milicianos nas casas legislativas e em cargos de confiança do Poder Executivo, além do suporte, em diferentes níveis, das polícias civil e militar.”

Esses procedimentos de regularização fundiária são realizados através de legislações municipais que estabelecem diretrizes próprias de parcelamento do solo em determinadas regiões, facilitando a legalização de empreendimentos em áreas assoladas pela milícia. Segundo reportagem de O Globo, alguns vereadores, inclusive, se valem do instituto de Áreas Especiais de Interesse Social, deturpando seu sentido original, que é garantir o direito à moradia para famílias de baixa renda, para regularizar construções por parte de milícias.

As medidas do poder público para legalizar empreendimentos irregulares revelam o grau de infiltração no poder político das milícias cariocas. Segundo o relatório De Olho na ALERJ, da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, entre os anos de 2021 e 2024, 89% dos pedidos legislativos de regularização fundiária de empreendimentos se concentraram na Zona Oeste do Rio de Janeiro, área de forte atuação de grupos milicianos.

No âmbito municipal, a situação ocorre de maneira similar. O estopim que motivou o assassinato da vereadora, segundo relatório da Polícia Federal, foi sua atuação durante a tramitação do PLC 174/2016, de autoria do Vereador Chiquinho Brazão, um projeto que buscava regularizar áreas irregulares nas regiões de Vargem Grande, Vargem Pequena, Itanhangá e Jacarepaguá. Marielle se colocou contrária à proposta, argumentando que ela não favoreceria de fato áreas socioeconomicamente vulneráveis, mas sim empreendimentos de média e alta renda, em regiões controladas pela milícia. Este posicionamento feriu os interesses dos Brazão e das milícias através das quais foram eleitos e com as quais estão associados, levando-os a planejar o assassinato da vereadora.

Está comprovada a tese de que Marielle Franco foi vítima de um feminicídio político motivado por sua luta por direito à moradia, à terra e à favela.

Ver também[editar | editar código-fonte]

  1. Publicado originalmente em Rio On Watch.