Mariluce Mariá de Souza - artivismo no Complexo do Alemão
O texto ressalta a criatividade linguística nos bailes funk do Complexo do Alemão, exemplificando com a música "It's Automatic" chamada popularmente de "Itcho Tcho Mery". Aborda a variação linguística, resistência a preconceitos e traça a evolução do funk desde sua origem nos EUA até os celebrados "Bailes das Antigas" no Rio de Janeiro, destacando sua importância cultural nas favelas.
Autoria: Tatiana Lima - Núcleo Piratininga de Comunicação
Introdução[editar | editar código-fonte]
Mariluce Mariá de Souza tinha tudo para “dar errado”. Essa é a opinião de quase todas as pessoas que convivem ao seu lado. Mas, contrariando as estatísticas, a perda da memória e as dificuldades de sobrevivência e existência, ela se tornou uma liderança comunitária do Complexo_do_Alemão ao longo dos últimos dez anos. Atuando no campo da comunicação popular e comunitária de forma intuitiva, ela ergueu a voz usando as mídias sociais para defender a justiça social, desafiando o discurso da pacificação de favelas no Rio de Janeiro dentro e fora dos muros visíveis e invisíveis do Complexo do Alemão. Autodidata, tornou-se artista plástica e passou a pintar nas telas sua própria interpretação da comunidade onde nasceu e foi criada.
Mas, para compreender como uma moradora do Complexo do Alemão que era só uma “estatística” se tornou sujeito e ergueu sua voz no mundo, sendo convidada a ministrar palestra na Universidade de Stanford (EUA) - com tela exposta permanente na universidade – e uma das lideranças locais mais procuradas por jornalistas e pesquisadores no mundo, é preciso mergulhar na sua trajetória pessoal e familiar.
Origem e família[editar | editar código-fonte]
A família de Mariluce Mariá tem fortes laços históricos com o território. Ela nasceu e foi criada no Complexo do Alemão por sua avó, Alexandrina Maria de Souza, a segunda moradora do Alemão e uma missionária cuja vida foi dedicada a ajudar e abrigar moradores de favelas. Oficialmente, ela tem 38 anos, porém, o que consta nos seus documentos é apenas parte de um quebra cabeça complexo. Mari, como é conhecida por todos, nasceu em 26 de outubro de 1979, mas foi registrada pela avó somente dois anos depois, em 1981. Como ela nasceu com um problema de arritmia cardíaca aguda e a mãe biológica era adolescente (16 anos) e tinha diversos problemas de vulnerabilidade social, sua avó além de decidir criá-la, também registrou a neta como se fosse sua filha.
“Na época que eu nasci você não tinha como registrar uma criança na idade que ela tinha, quase 80 anos. Ela teve que esperar uma oportunidade de um amigo no cartório para poder me registrar. Daí resolveu mentir o ano”, conta Mariluce, hoje com 40 anos. No registro de nascimento também consta que ela nasceu no hospital, mas ela nasceu em casa, no Morro da Alvorada.
Mari é mulher baixa com um tom de pele bem moreno avermelhado, que mostra suas raízes indígenas. Sua avó era de uma tribo da Confederação de Tamoios da região do Espírito Santo, em Guarapari. Ela veio para o Rio de Janeiro com 12 anos, trazida por um comerciante português para “cuidar” dela. “Na verdade, meu avô se aproveitou dela. Ele apostava minha avó no cassino e, inclusive, até os filhos”, conta Mari. O próprio registro de nascimento da avó de Mariluce, assim como o dela, também contém erros. Alexandrina Maria de Souza nasceu em 1910, mas só vou registrada quando chegou ao Rio de Janeiro, em 1922, ano que se tornou a data de seu nascimento. Quando decidiu cuidar de Mariluce como filha já tinha quase 80 anos, mas oficialmente para o governo brasileiro, sua idade era 68.
Filha de um homem com envolvimento com o tráfico de drogas de uma facção criminosa oposta a do Complexo do Alemão. Por causa disso, sua avó decidiu que ela não frequentaria a escola. “Ela tinha medo que o meu pai me sequestrasse e me levasse embora”, explica. Por isso, ela foi alfabetizada pela avó em casa com jornais, revistas e a Constituição Brasileira de 1988. Só entrou para a escola aos 10 anos, por muita insistência dela, quando conseguiu convencer a avó.
“Eu via todas as filhas da patroa da minha avó indo pra escola e as poucas crianças da favela que estudavam indo, mas eu ficava em casa. Para mim, a escola era um lugar divertido, que a gente jogava, aprendida e brincava. Eu queria ir”. O problema é que Mari nunca havia frequentado a escola. O ensino público não tinha à época um lugar para casos como o de Mariluce. Foi quando a patroa da avó resolveu pagar uma escola particular para ela receber alfabetização formal até poder entrar na escola pública. Ela ingressa no 3º do ensino fundamental e cursa até a 6ª série.
Vida Adulta[editar | editar código-fonte]
Com 15 anos, ela abandona a escola, sai da casa da avó, e casa com o primeiro marido. Ela tem o primeiro filho com 16 anos. Ela engravida de novo de gêmeas, mas as crianças nascem com problemas de saúde. Uma das gêmeas morre uma hora depois do nascimento, e a outra, três meses depois. Com o trauma da morte das filhas, Mariluce perde a memória. “Quando a gente perde a memória, a gente perde a noção de tempo. Você não sabe quem é e não consegue imaginar quem pode ser”, explica.
Por mais de um ano, Mari ficou sem memória e perdeu o rumo: ela caiu na farra dos bailes funk e arrumou um namorado que a espancava. “Minha avó me explicava todo dia quem eu era, mas eu ficava confusa. Mas, foi perdendo a memória e a noção de tempo que eu depois me encontrei”, lembra. Suas experiências e o conhecimento do território a levaram a começar a ver a favela com outros olhos, principalmente no diz respeito ao futuro daquele lugar. Surgiu a vontade de trabalhar para e com a comunidade.
Ela nesta época já trabalhava como faxineira e manicure. Ela abre um pequeno salão de beleza que passa a servir suporte a jovens vítimas de abuso por parte dos traficantes de drogas. Mariluce passa a “resgatava” mulheres que iam para os bailes e não tinham como voltar para casa, abrigando elas no salão de beleza. Ela volta a morar com a avó e já em contato com a mãe, missionária evangélica, aceita o convite dela para trabalhar no centro de recuperação da igreja para usuários de drogas e também mulheres vítimas de violência doméstica. Ela também passa depois de um tempo a promover oportunidades de vida para mulheres no Alemão (Núcleo de Mulheres Brasileiras em Ação).
A virada comunitária[editar | editar código-fonte]
Com a chegada do teleférico no Complexo do Alemão, ela e o marido Cleber Araújo, começaram um negócio defavela tour, chamado Turismo no Alemão, com o intuito de mostrar sua comunidade aos turistas. A intenção do casal era trazer estrangeiros interessados em conhecer as favelas cariocas para dentro do Alemão para estimular a economia da comunidade e promover o intercâmbio cultural. A ideia de proporcionar turismo no Alemão deles era uma oposição à chegada de agências de turismo que apenas levavam os turistas para fazer uma espécie de “safari aéreo”. Isto é: os turistas apenas andavam no teleférico, chegavam à última estação, tiravam foto no mirante e iam embora, sem consumir dentro da favela e pior: vendo apenas a favela de cima.
Na atividade de turismo deles, a intenção era fazer o visitante andar por dentro das favelas a pé. No auge, cada passeio, que incluía até pequenas reformas em casas no roteiro e atividades como futebol, movimentava até R$ 10 mil na comunidade. Foi aí que teve o insight de criar um souvenir com a cara do Alemão. Ela nunca tinha pegado antes em um pincel. “Eu não sabia fazer nem um coração, mas resolvi tentar a aprender a desenha”, conta.
Não apenas aprendeu como criou uma forma própria de se expressar e interpretar a favela, que conquistou turistas de mais de 30 países. Ao pintar a favela, Mari, não consegui enxergar as casas marrons, cor de tijolo. Para ela, casa expressava uma pessoa, uma vida. Por isso, ela só conseguia enxergar e pintar as casas, a favela, colorida. “Cada cor expressava um sentimento. Eu imaginava como seria se os turistas viessem aqui e pudessem conhecer essa favela: a favela de verdade, feita de pessoas. Então, eu desenhava isso para eles levarem para casa essa favela feita de gente colorida”.
A Comunicação Popular[editar | editar código-fonte]
Paralelamente, Mariluce, e o marido, Cleber Araújo, também passaram a ser responsáveis por um conglomerado de páginas nas mídias sociais:Alemão Morroe Complexo Alemão, abrigadas no Facebook; @novoalemão, Twitter; e @complexoalemão, no Instagram, e posteriormente, @favelaart e @marilucemaria, no Facebook e Instagram. Na maior parte do tempo, os canais lembram uma versão mais tecnológica de um meio de comunicação comunitário, como um jornal mural ou uma rádio poste: anúncios de pessoas desaparecidas e campanhas de vacinação.
Uma das táticas da comunicadora era usar o Google tradutor para traduzir suas mensagens de denúncias da violência da pacificação em várias línguas. Em 2014, na Copa do Mundo, por exemplo, a programação de otimismo foi interrompida quando a página Complexo Alemão postou: “O maior símbolo do PAC foi parado na bala”, em referência ao tiroteio que interrompeu o serviço do teleférico. Na sequência, a ocupação policial e a troca de tiros com traficantes motivaram uma nova publicação no mesmo tom: “Estamos sitiados. Há muito tempo não via nossa favela assim. ESTAMOS PEDINDO SOCORROOOO.” As postagens seguintes culminavam com a frase “A pacificação da mentira”, publicada em várias línguas, com a ajuda da ferramenta de tradução do Google e marcava com o símbolo hastag vários veículos de jornais internacionais e brasileiros.
Com o agravamento do quadro de violência direta no Complexo do Alemão, as páginas passaram a trata de uma notícia de maior gravidade, cumprindo uma função de uma agência de notícias direta do front, pautando os grandes meios de comunicação comercial dentro e fora do Brasil. As cores da pintura da artista plástica também começaram a mudar. “Com a violência não dava mais pra pensar nas casas coloridas, no lado bom da coisa. Foi quando comecei a pintar as casas mais escuras, aí sim, marrom”. Produtora de uma arte ativismo enquanto meio de comunicação comunitária radical, Mariluce Mariá afirma que o objetivo de suas publicações é, sobretudo, alertar a população local dos lugares de perigo, avisar sobre os tiroteios em andamento.
"A ação radical de comunicação comunitária dela chamou atenção do pesquisador em Linguística Aplicada pela Unicamp Junot Maia. Em sua tese de doutorado, ele defende a ação de comunicação popular de Mariluce como um letramento de sobrevivência. Nomeia o ato comunicativo produzido por ela para avisar os moradores sobre os tiroteios de "fogos digitais". Uma metáfora relacionada ao ato dos traficantes de drogas de soltar fogos de artifícios para informar ao tráfico local e também aos moradores da entrada da polícia nas favelas".
Algumas das iniciativas nas quais ela esteve envolvida ao longo dos anos incluem também a liderança nas reivindicações residenciais dos moradores após a pacificação, e por fim, Mariluce Mariá passou a desenvolver um trabalho conjunto de educação popular pela arte, comunicação e liderança comunitária com o projeto Favela Art.
Favela Art[editar | editar código-fonte]
No dia a dia de visitas ao teleférico a partir de 2011, umas grandes quantidades de crianças passaram a pedir dinheiro aos turistas ou vendiam água e picolés na região da estação Palmeiras do Teleférico. A falta de um real desenvolvimento de políticas públicas sociais na comunidade agravou ainda mais a situação e cotidianamente mostrava a desigualdade social. Para piorar, o retorno da rotina de violência passou afetava principalmente as crianças mais pobres do conjunto de favelas expandindo ainda mais a situação de vulnerabilidade.
O Favela Art, passou a integrar as crianças na faixa etária de 2 a 11 anos. Todas as telas produzidas nas oficinas com as crianças são vendidas para turistas quando possível: 50% do valor é investido em materiais para o projeto, e 50% é dado ao autor da tela, demostrando aos jovens que o fruto do seu trabalho é valioso. Ao longo dos anos, as crianças e Mariluce também passaram a pintar as telas em muros e paredes de casas no Complexo do Alemão para colorir a favela e também apagar as marcas da violência do confronto entre o tráfico e policiais das Unidades de Polícia Pacificadoras. No total, o projeto atende e acompanha atualmente 300 crianças. Ela acompanha o desenvolvimento das crianças, inclusive, em parceria com a escola.
Mari não tem ONG, nem ligação com partidos político. Também não atua em coletivos. Mas, é uma das vozes mais ativas do lugar. Em 2015, foi convidada para falar na conferência da Universidade de Stanford “Iniciativas Educacionais e Empreendedoras para Apoiar Jovens em Áreas de Violência”. Denunciou o abandono do Complexo do Alemão e a violência. Mas, mostrou que os moradores vivem da esperança. Uma de suas telas foi adquirida por Stanford e faz parte do acervo exposto na universidade. Mari conheceu a equipe da universidade durante um estudo sobre segurança no Rio de Janeiro. Sem papas na língua, Mari faz uma série de queixas: dos serviços da Comlurb aos prejuízos da violência. Em debates e palestras, é comum ela tirar da bolsa a Constituição Brasileira de 1988 e o Estatuto da Criança e Adolescente como argumento e armas para conscientização sobre como os direitos humanos e constitucionais na favela são desrespeitados.
Erguendo a Voz[editar | editar código-fonte]
Mariluce é atualmente responsável por gerenciar duas páginas do Facebook dedicadas ao complexo, com um público combinado de quase 100 mil seguidores. Ela transformou as ferramentas de mídia social em plataformas importantes para denunciar violações dos direitos humanos de parte da polícia, compartilhar notícias e atualizações de interesse comum à comunidade e abrir um espaço para que os moradores possam ouvir suas vozes. As páginas têm sido particularmente importantes em termos de servir como instrumentos de "alerta" para os moradores do Alemão, já que quase diariamente ocorrem guerras e tiroteios entre criminosos e a polícia na comunidade, colocando em risco a população e reivindicando vidas.
Seu artivismo (arte + ativismo) e atuação como liderança comunitária e sua trajetória de vida levou ela ser convidada a participar do TED Talks Somos Humanidade, em 2014. Na palestra “O que eu aprendi quando eu esqueci quem eu era”, ela conta como a perda da memória a levou a perder o rumo e, com o passar do tempo, ela conseguiu resgatar a si própria quando se voltou a ajudar a comunidade. A palestra tem mais de 250 mil acessos.
“A essência do que eu aprendi veio da minha avó que me ensinou a viver, além do amor do meu marido e meu filho. Se não fosse eles três, ninguém teria me conhecido. Minha cabeça era muito louca. Eu fui salva diversas vezes, porque pessoas não desistiram de mim. Então, eu não desisto de ninguém. Eu podia ter morrido quando criança, mas não morri. Depois eu podia ter morrido porque me coloquei em risco diversas vezes e não morri. Veio à granada do beco e também me salvei. Depois o atentado da polícia. Então, eu tenho que fazer a pena vale a existir. Não vou ficar fazendo peso na terra”, conta Mariluce Mariá de Souza.
Devido ao seu trabalho de ativismo e denúncias de violências dentro do Complexo do Alemão, ela e o marido sofreram um atentado em 2016. De lá pra cá, ela diminuiu o ritmo e buscou outras formas de atuar no território. Segue trabalhando como comunicadora popular, mas seu principal canal hoje de informações é um grupo de whatsapp de moradores do Complexo do Alemão. A página no Facebook @ComplexoAlemão e Mariluce Mariá seguem sendo alimentadas, mas as informações postadas agora são sobre o trabalho de artivismo de Mariluce e do projeto Favela Art, além de informações que podem ser úteis para os moradores do Complexo do Alemão.