Mulheres negras e o cuidado
Todas as noites eu olho pro céu na esperança de esbarrar com ela: Minha estrela Dalva. Que ao contrário do que eu pensava os cientistas dizem que pela lógica não é uma estrela, mas o planeta vênus marcando presença ao amanhecer. Igualzinha à ela que não passava despercebida em lugar nenhum. Chamam também de estrela matutina. Ficando cada vez mais parecida porque é assim que eu lembro dela. Saia tão cedo pra trabalhar e voltava tão tarde que na minha inocência de criança achava que ela nem existia. Sumia e aparecia tal qual magia. Eu até comparava com os filmes que passavam na televisão e achava que aquilo tudo era de mentira. Por que a criança do lado de lá tem uma avó diferente da minha? Por que ela limpava, passava e cuidava da neta de outra família? E no seu tempo livre arrumava sua casa que já tava limpa. Poucos anos de idade é claro que eu não entendia. Não entendia que toda mulher preta tem uma história triste pra contar, e essa é a dela. Mais de 30 anos trabalhando de doméstica. Tive que me acostumar com a sua ausência. Sua patroa até falava que você era como da família, mas sua individualidade não existia. Essa herança escravocrata nos rodeia até hoje. Mesmo eles tentando apagar nossa memória, nossa história. Eu via com meus próprios olhos a chibata batendo nas suas costas. Um sofrimento calado aceitando um lugar que a vida toda disseram que era seu. E enquanto isso acontecia, não sei se percebeu que sua neta cresceu. E como eu vou te culpar por isso? Seria injusto demais. Seria ignorar todo amor, carinho e preparo dedicado mesmo com o cansaço acumulado. Seria diminuir sua dor. Seria não enxergar com cuidado tudo que você passou e todo legado que deixou. E essa homenagem não passaria de uma história mal contada. E eu não faria isso pois devo muito a você. Nos criou em casa de bamba onde todo mundo bebe e todo mundo samba. Enxergou minha conexão com a música, com a bossa e me deu meu primeiro violão. Final de semana era certo ouvir o som do pandeiro, cavaquinho e percussão. Devo minha musicalidade a você. Devo a arte, a força de vontade. E foi triste ver um coração que não cabia dentro do peito parar de bater. Ela nos deixou. Deixou livros de receitas disputados por toda família. Todo mundo queria o ingrediente secreto daquele bolo de limão que só ela sabia. Nos deixou coragem. Nos deixou saudade. É por isso que hoje eu faço essa homenagem. Obrigada por ter me ensinado a viver e não ter a vergonha de ser feliz. Tocar e cantar. Me ensinou a beleza de ser uma eterna aprendiz. Me ensinou que a vida devia ter sido bem melhor pra senhora, Vó. Mas pra mim será. Porque hoje nada impede que eu repita “É bonita, é bonita e é bonita”.