Necropolítica
Necropolítica é um conceito alcunhado por Achille Mbembe, filósofo, teórico político, historiador, intelectual e professor universitário camaronês. No texto a seguir, Almir Felitte debate elementos importantes do termo e os relaciona com a realidade brasileira.
Autoria: Almir Felitte, em Outras Palavras.
Sobre[editar | editar código-fonte]
Ao criar conceito, pensador africano pensou muito além de figuras grotescas, como Bolsonaro. Quis enxergar interação entre república e colonialismo, num mundo eurocêntrico. Tensão explode agora. Resolvê-la exigirá novas formas de política
É sempre interessante quando as escritas acadêmicas passam a atingir o grande público. Nem toda pesquisa, é claro precisa ter esse objetivo, mas é excelente quando grandes obras cumprem este papel. Com os desastres anunciados do governo Bolsonaro, por exemplo, a obra do camaronês Achille Mbembe tem sido cada vez mais citada nas redes sociais, principalmente seu conceito de “necropolítica”. Como todo conceito amplamente difundido (ou, talvez, como tudo aquilo que cai nas redes), porém, há sempre o risco de esvaziamento de conteúdo.
Afinal, o que seria, então, a necropolítica? Uma primeira citação do próprio Mbembe dá o pontapé inicial para seu entendimento:
“A ideia segundo a qual a vida em democracia é, no seu fundamento, pacífica, policiada e desprovida de violência (nomeadamente sob a forma da guerra e da devastação) não nos convence. (…) a brutalidade das democracias nunca foi senão abafada. Desde as suas origens, as democracias modernas mostraram tolerância perante uma certa violência política, inclusive ilegal. Integraram na sua cultura formas de brutalidade levadas a cabo por uma série de instituições privadas agindo como mais-valia do Estado, sejam elas corpos francos, milícias ou outras formações militares corporativistas”.
A citação acima é recheada de sentidos. Percebe-se, por exemplo, que, para Mbembe, as democracias modernas não devem ser enxergadas como sistemas teoricamente perfeitos que, vez ou outra, são atingidos por violências e falhas externas. Para o autor, seja ela estatal, seja ela privada (ainda que igualmente ligada aos mesmos interesses do Estado), a violência é parte integrante da própria democracia. E isto não é fruto de alguma degeneração ou crise dos Estados democráticos, mas característica original e fundante dos mesmos.
Exemplificando a afirmação, Mbembe lembra que os EUA, berço da democracia liberal nascente ao fim do século 18, caracterizaram-se por muito tempo como uma “democracia de escravos”, ou seja, uma sociedade em que os princípios democráticos conviveram por longos anos com a escravidão negra. Situação parecida com a da Constituição imperial brasileira de 1824, na qual o trabalho escravo coexistiu com a adoção de princípios liberais. Mas como se dava essa relação entre democracia e escravidão? O pulo do gato pra compreender o pensamento de Mbembe está justamente na resposta a esta pergunta. Mas, antes, é preciso examinar em profundidade outros termos importantes.
Isso porque o pensador camaronês não trabalha apenas com a ideia de “necropolítica”. Outras palavras-chave para se aprofundar em suas ideias são as “relações de inimizade” e o “estado de exceção”. Neste segundo, vale a leitura de outro importante autor: Giorgio Agamben. Explicando de forma bastante resumida, este escritor italiano parte de uma análise crítica à teoria do estado de exceção do nazista Carl Schmitt, classificando o conceito como um espaço vazio de lei criado de forma fictícia para que a própria lei se aplique. Em outras palavras, no estado de exceção, de forma até paradoxal, o Estado suspende a ordem jurídica para manter a própria ordem jurídica.
Agamben analisa, porém, que, principalmente após as experiências nazifascistas na Itália e na Alemanha, os Estados democráticos de direito contemporâneos passaram a conviver de maneira permanente com o estado de exceção. Ou seja, de forma sistemática, as democracias modernas passaram a adotar medidas que suspendem diariamente direitos de camadas inteiras das populações, sob a justificativa de manter a própria ordem democrática. Um exemplo clássico citado pelo italiano seria a vigência do Patriot Act, nos EUA, lei antiterrorismo que desaplica direitos básicos a acusados pelo crime.
Assim, Agamben chega à conclusão de que o estado de exceção, este espaço vazio de direito, depende da estrutura jurídica dos Estados democráticos de direito, ao mesmo tempo que estes precisam, para a sua manutenção, da suspensão de suas próprias normas através da imposição do estado de exceção. Em outras palavras, o italiano compreende que as democracias modernas e o estado de exceção convivem em relação de dependência mútua.
Como Agamben, Mbembe também enxerga o estado de exceção como este espaço vazio de direitos em relação de interdependência com a própria democracia, o que responde à pergunta feita mais acima acerca da “democracia de escravos” norte-americana. Porém, para o camaronês, não são as experiências nazifascistas europeias que inauguram esta relação nos Estados modernos:
“Como ascendente da democracia, o mundo colonial não era a antítese da ordem democrática. Sempre foi o seu duplo ou, até, a sua face noturna. Não há democracia sem o seu duplo – a colônia, pouco importa o seu nome e estrutura. Esta não é exterior à democracia nem está necessariamente situada fora de portas. A democracia contém em si a colônia, tal como a colônia contém a democracia, muitas vezes mascarada”.
Portanto, para Mbembe, é no colonialismo que a relação de dependência permanente entre a exceção e a democracia se estabelece. É curioso, por exemplo, o fato citado pelo autor de que, desde o século 16, o Ocidente tentava criar regras para as guerras que travava entre si, consolidando, ao fim do século 19, as bases de um direito internacional humanitário. Tais regras, porém, jamais se aplicaram ao mundo colonial, que ficou sujeito ao que ele chama de “guerras sujas”, onde o inimigo, o colonizado, é um inimigo absoluto.
No mesmo sentido, Mbembe também destaca a submissão das colônias ao sistema de plantation: “Qualquer relato histórico do surgimento do terror moderno precisa tratar da escravidão, que pode ser considerada uma das primeiras manifestações da experimentação biopolítica. Em muitos aspectos, a própria estrutura do sistema de plantation e suas consequências manifesta a figura emblemática e paradoxal da exceção”.
Enfim, Mbembe acaba por resumir a colônia como o espaço de exceção das democracias nascentes: “Como tal, as colônias são o local por excelência em que os controles e as garantias de ordem judicial podem ser suspensos – a zona em que a violência do estado de exceção supostamente opera à serviço da ‘civilização’. O fato de que as colônias podem ser governadas na ausência absoluta de lei provém da negação racial de qualquer vínculo comum entre o conquistador e o nativo”.
Dessa maneira, o autor camaronês acaba por identificar o colonialismo, baseado na relação de inimizade essencialmente racista, como traço fundante das democracias modernas, e as colônias como espaços de estado de exceção permanente que serviram à construção dos Estados democráticos de direito na Europa. E é nesta relação que Mbembe vai analisar a construção da figura da soberania destes Estados modernos “expressa predominantemente como o direito de matar”, sendo que “o estado de exceção e as relações de inimizade tornaram-se a base normativa do direito de matar”. Exatamente neste ponto reside o conceito de “necropolítica” ou “necropoder” pensado pelo autor.
Se o colonialismo racista foi o estado de exceção que serviu de base de sustento para a formação das democracias modernas, certo é que as marcas das relações coloniais se perpetuaram nas práticas dos Estados democráticos de direito contemporâneos. A necropolítica persistiu: “A ‘ocupação colonial’ em si era uma questão de apreensão, demarcação e afirmação do controle físico e geográfico – inscrever sobre o terreno um novo conjunto de relações sociais e espaciais. (…) Esses imaginários deram sentido à instituição de direitos diferentes no interior de um mesmo espaço; em resumo, o exercício da soberania”.
Ora, qualquer brasileiro que tenha acompanhado, ao vivo, a ocupação de favelas cariocas para a implantação das UPPs, com imagens de corpos negros fugindo do território dominado, com direito a hasteamento da bandeira ao som do hino nacional, sabe bem reconhecer estas marcas, de direitos diferentes em um mesmo espaço, deixadas pelo colonialismo em nosso país.
Aliás, quando cita a Palestina como “forma mais bem-sucedida de necropoder”, a cena descrita por Mbembe é visão diária para milhares de brasileiros moradores de favelas: “enquanto o helicóptero de combate Apache é usado para patrulhar o ar e matar a partir dos céus, o trator blindado bulldozer (Caterpillar D-9) é usado em terra como arma de guerra e intimidação”. Impossível não pensar nos helicópteros usados como base de tiro e nos caveirões da PM carioca.
Diferenciando-se da ocupação moderna, esta contemporânea é, para Mbembe um encadeamento ainda mais complexo de poder disciplinar, biopolítico e necropolítico, possibilitando “a dominação absoluta sobre os habitantes do território ocupado. O ‘estado de sítio’ em si é uma instituição militar. Ele permite uma modalidade de crime que não faz distinção entre o inimigo interno e o externo. Populações inteiras são o alvo do soberano. As vilas e cidades sitiadas são cercadas e isoladas do mundo. A vida cotidiana é militarizada. É outorgada liberdade aos comandantes militares locais para usar seus próprios critérios sobre quando e em quem atirar. O deslocamento entre células territoriais requer autorizações formais. Instituições civis locais são sistematicamente destruídas. A população sitiada é privada de suas fontes de renda. Às execuções a céu aberto somam-se matanças invisíveis”.
Novamente, cenário bastante familiar ao Brasil.
Logicamente, toda a obra de Mbembe deve ser lida em suas especificidades. A experiência colonial da qual o autor parte é a africana, a qual subsistiu até meados dos anos 1970, tornando os resquícios coloniais de suas análises mais visíveis do que no continente americano, por exemplo. Porém, suas visões acerca do sistema de plantation e mesmo sobre a “democracia de escravos” dos EUA permitem que sua crítica ao colonialismo ganhe uma amplitude maior e se adapte a outras realidades, como a nossa.
Assim, para compreender a “necropolítica” pensada por Mbembe, é necessário aprofundar-se em outros conceitos como soberania, relações de inimizade e, talvez principalmente, estado de exceção. O “necropoder” pensado pelo autor explica as origens da democracia a partir das relações coloniais racistas e capitalistas que a fundaram. O Estado democrático de direito e o estado de exceção, a democracia liberal e a violência, ideias e estruturas aparentemente contrárias, na verdade, não só coexistem como dependem uma da outra para existirem.
Mbembe não separa a democracia liberal contemporânea de sua origem violenta e entende a necropolítica como ponto comum e cada vez mais intenso desta no contexto neoliberal: “a época privilegia a separação, os movimentos de ódio, de hostilidade e, sobretudo, a luta contra o inimigo, e tudo isto é consequência daquilo a que, num vasto processo de inversão, as democracias liberais, já amplamente branqueadas pela força do capital, da tecnologia e do militarismo, aspiraram”.
Portanto, a necropolítica pensada por Mbembe não se resume a este ou aquele governo ou presidente. Aliás, ela não se resume nem mesmo ao poder estatal. Ela não é apenas um conceito usado para apontar algum conjunto de “políticas públicas de maldade” ou certo “governante maléfico”. A necropolítica é uma crítica às próprias democracias liberais contemporâneas como um todo, ainda profundamente marcadas pelas relações raciais, de classe, de trabalho, de produção e de inimizades tipicamente coloniais. <footer> </footer>