Necropolítica e o adoecimento das favelas
Necropolítica e o adoecimento das favelas - As favelas constituem espaços marcados por elevados níveis de vulnerabilidade social, além de submetidos a constante violência e à desassistência estatal. Um estudo publicado em 2019 avaliando os efeitos da recessão econômica e das políticas de austeridade a partir de 2012 no Brasil, evidenciou impacto significativo do subfinanciamento do SUS sobre a mortalidade geral da população negra, bem como sobre os índices de desemprego gerando uma maior dificuldade de acesso a medicamentos e maior exposição a atividades trabalhistas de risco. A desassistência em saúde opera por uma lógica necropolítica, que determina cargas e experiências de adoecimento, causando a morte material e simbólica de indivíduos e comunidades. A desassistência mata porque antes de tudo tira também a perspectiva de ser.
Autoria: Laio Victor Tavares
A saúde pública e as favelas como território de exclusão[editar | editar código-fonte]
As favelas constituem espaços marcados por elevados níveis de vulnerabilidade social, além de submetidos a constante violência e à desassistência estatal. Cabe lembrar que a origem da ocupação de muitos dos morros e comunidades periféricas do Rio de Janeiro, remonta à implantação das políticas higienistas da Reforma Passos[1] no início do séc. XIX, na qual visando adequar a recém fundada república brasileira aos padrões europeus, expulsou-se os negros das regiões centrais da cidade. Além disso, somada a exclusão espacial, o processo de exclusão da vida política e da cidadania dos povos negros, segundo o sociólogo Clóvis Moura[2], teve início antes mesmo da abolição legal da escravidão em 1888, que alçaria uma imensa massa de ex-escravizados à indesejada posição de cidadãos livres. Como exemplo temos a Lei de Terras em 1850, quando o Império tornou as terras brasileiras mercadoria — até então, eram concessão estatal— e incentivou que fossem ocupadas por colonos livres descendentes das raças consideradas civilizadas da Europa, já antevendo a abolição da escravidão. De acordo com Moura, se a posse e o trabalho na terra eram fundamentais para a inclusão dos sujeitos na nova lógica capitalista que emergia, era preciso apartar os negros deste processo a todo custo. Seguiram-se a isso medidas de exclusão que se valiam das mais variadas justificativas, como a criminalização do samba e da capoeira, sob a justificativa da vadiagem, amparada pelas teses eugenistas da criminologia européia lombrosiana[3] e os despejos de Pereira Passos e posteriormente de Getúlio Vargas, justificados pelas medidas de saúde pública que viam nas comunidades negras apenas depósitos das mais variadas doenças[4].
Em pesquisa do IPEA[5] de 2008, constatou-se que a cobertura do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil abrangia 76% da população autodeclarada negra, ao passo que apenas 54% dos brancos eram dependentes do sistema público. Um estudo publicado em 2019[6] avaliando os efeitos da recessão econômica e das políticas de austeridade a partir de 2012 no Brasil, evidenciou impacto significativo do subfinanciamento do SUS sobre a mortalidade geral da população negra, bem como sobre os índices de desemprego gerando uma maior dificuldade de acesso a medicamentos e maior exposição a atividades trabalhistas de risco.
Simultaneamente ao desmonte progressivo do serviço público de saúde, observa-se um avanço quase proporcional do sistema de saúde privado, que cresce com incentivos estatais e aparta do direito à saúde uma parcela importante da população que não pode pagar por esses serviços. A desassistência mostra-se então como um mecanismo de extermínio de grupos específicos da sociedade e como parte do avanço das políticas neoliberais na organização do Estado.
A experiência de adoecimento nas favelas: muito além da doença[editar | editar código-fonte]
O adoecimento constitui uma experiência única de cada indivíduo ou povo. Ainda que o corpo humano reproduza sinais e sintomas semelhantes associados a determinada doença ou distúrbio na fisiologia normal, a experiência subjetiva do sintoma físico é característica do indivíduo que a experimenta e do impacto que a doença gera em sua vida em sociedade[7]. Tendo isso como base, observamos como a doença além de uma entidade biológica é também uma realidade forjada historicamente pelas estruturas sociais, e o doente, um personagem deste processo[8]. Moira Stewart[9], no clássico Medicina Centrada na Pessoa, ao citar os trabalhos pioneiros de Mishler e Barry et al, ressalta como as experiências de adoecimento são definidas pela dialética estabelecida entre o “mundo da vida” e o “mundo da medicina”, duas vozes contrastantes que determinam significados diferentes para o adoecimento. O mundo da vida é definido pelo contexto social e cultural no qual o indivíduo está inserido e reflete a forma como este irá experimentar e dar significado à sua doença ou ao seu sofrimento. Já o mundo da medicina resume a centralidade tecnocrática que os serviços e profissionais de saúde dão às alterações estruturais e orgânicas que a doença gera, deixando de lado as outras dimensões que compõem o sujeito adoecido.
Este “mundo da medicina”, pode englobar tanto o conhecimento biológico quanto todo o aparato burocrático estatal, usado para normatizar, regular e restringir o acesso à técnica e aos serviços de saúde. Desta maneira, as experiências de adoecimento da população favelada não se resumiriam apenas à simples significação subjetiva de sintomas clínicos, mas à experiência de uma desassistência crônica que resulta em uma elevada carga de adoecimento e da negação do acesso ao império da técnica médica fundado pela branquitude, como demonstram os dados da pesquisa Nascer no Brasil[10] realizada pela Fiocruz nos anos de 2011 e 2012, que evidenciaram menor oferta de anestesia durante o parto de mulheres negras nos hospitais brasileiros. Em relatório[11] da Organização Panamericana da Saúde de 2013, constatou-se ainda que o Rio de Janeiro reproduz o padrão da tripla carga de doenças (afecções agudas e condições materno-infantis, doenças crônicas e causas externas como a violência urbana e acidentes) observado em todo o país de forma proporcional ao nível de vulnerabilidade social experimentado por estas populações. Além disso, de acordo com o relatório, o acesso da população aos serviços é dificultado pela alta densidade populacional dos territórios adscritos e número insuficiente de médicos e equipes de saúde da família
A historiadora Beatriz Nascimento[12] ressalta como a morte engloba também aspectos simbólicos do sujeito constituído em comunidade. Ao afirmar que esta morte simbólica alcança o indivíduo antes mesmo da morte física, quando o faz perder a perspectiva de ser, e de afirmar-se enquanto pessoa e sujeito histórico, percebemos como o adoecimento serve ao propósito de minar a agência histórica dos sujeitos. O indivíduo que experimenta o medo da morte na doença, e sobretudo na negação do socorro e do provimento básico das suas necessidades de cuidado, entende que a sua existência não é desejada. Segundo Achille Mbembe[13] a política, muito mais do que o império da razão em eterno movimento dialético, é a diferença colocada em prática. Ou seja, a política se molda através das relações de inimizade e da exceção, que fazem emergir num outro, indesejável, a figura de um inimigo fictício. Nesta situação, a vida é tomada de refém pela ideia da morte, sempre à espreita. Segundo o filósofo Georges Bataille, conforme cita Mbembe, a vida passa a existir apenas em movimentos paroxísticos de troca com a morte. As experiências de adoecimento para a pessoa favelada revelariam então uma outra dimensão dialética, que se expressa através de um “mundo da medicina” omisso e que por meio da desassistência progressiva do estado rompe com os limites da morte. A favela se reconfigura como um território anômalo, onde a lógica da plantation colonial impera, em oposição ao conjunto da cidade. Cabe ressaltar como, de acordo com Marielle Franco[14] em “UPP: A redução da favela a três letras. Uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro”, o próprio controle da saúde coletiva e individual da população favelada, propicia o enquadramento do “anormal” e reforça o apartheid social.
O Estado Necropolítico e a negação do direito à saúde[editar | editar código-fonte]
O Estado nacionalista, segundo o jurista e filósofo brasileiro Silvio Almeida[15], enquanto construção moderna, depende de práticas de poder que garantam a divisão social e formalizem a violência estatal e, para isso, é necessário um planejamento territorial que permita controlar e vigiar não só as populações ditas indesejadas, mas também a formação de suas subjetividades.
Partindo do princípio de que o nosso sistema de saúde, público e estatal, inscreve-se sob a lógica neoliberal, na qual os Estados, de acordo com Almeida, têm o racismo como garantia de manutenção do poder, percebemos como estes mesmos valem-se da norma jurídica para excluir ou incluir determinados grupos da vida política.
O racismo, enquanto invenção europeia e tecnologia colonial, tem como característica o fato de ter fragmentado o contínuo biológico da espécie humana. Criou-se então uma linha que separou os seres indesejáveis da sociedade (que, por sua vez, mereceriam a morte) daquelas categorias humanas que mereceriam viver, com base em pressupostos biológicos. Uma divisão entre aqueles que teriam as suas vidas prolongadas pela assistência do poder estatal e aqueles que seriam deixados para a morte física, simbólica e política. Esta é a Biopolítica de Foucault[16], que afirmou ser o racismo a tecnologia de poder que possibilita o exercício da soberania e da função assassina do Estado. O advento da necessidade de prolongar a vida, como garantia da união do Estado soberano nacional em torno das suas raças puras, veio acompanhado da tecnificação crescente da medicina e de outras ciências biológicas, ao mesmo tempo em que a Eugenia, a Higiene e a Medicina Preventiva buscavam colocar sob vigilância disciplinar as fraturas desta almejada pureza biológica.
No entanto, o filósofo camaronês Achille Mbembe[17] chama atenção para o fato de que mesmo nesses Estados hoje pretensamente democráticos, o fazer colonial, inaugurado pela modernidade, nunca foi de fato abandonado. O “deixar morrer” veio acompanhado de um aparato intrincado e bem arquitetado que garantia ao estado o poder da morte. A isso, o filósofo chama Necropolítica. O Estado de Exceção, conforme Giorgio Agamben (apud MBEMBE, 2018, p. 8)[18] aponta, tendo se tornado a regra em vez de uma situação excepcional, tira do caminho das máquinas de morte do Estado Soberano os impedimentos legais da pretensa liberdade e igualdade constitucionais. Os corpos negros, hoje impedidos pelo fim do colonialismo de serem mantidos como mercadorias e ferramentas a serviço do progresso civilizatório da Europa, tornaram-se indesejáveis. E por consequência, a norma da higiene não se compadece caso estejam adoecidos ou mortos.
Nesta lógica, o direito à saúde, inscreve-se sob a mesma estrutura que visa instituir estes aparatos de morte. De acordo com o filósofo sulafricano David Theo Goldberg (apud ALMEIDA, 2019, p. 87) [19], o racismo não é um dado acidental, mas um elemento constitutivo do Estado. E ainda para o filósofo e jurista argentino Carlos Cossio (apud SÃO BERNARDO, 2016 p. 35)[20] o direito é a conduta diária, um dado cultural, e não a pura norma jurídica como prega a tradição juspositivista. Isso significa que estamos diante de um direito garantido de acordo com as bases fundantes da própria sociedade brasileira: racista, e pautada juridicamente na lógica da exceção colonial, cuja finalidade básica é garantir a preservação da sociedade branca.
Por fim, observamos como a desassistência em saúde, operada sob a lógica de um direito constitucional historicamente excludente, vem sendo usada de forma programada pelo Estado, visando o extermínio físico, cultural e subjetivo de segmentos específicos da população. A negação do direito constitucional à saúde, constitui assim um mecanismo cruel de exclusão política, ao mesmo tempo em que molda subjetividades adoecidas pela experiência da morte iminente. A desassistência em saúde operando pela lógica necropolítica, determina cargas e experiências de adoecimento, causando a morte material e simbólica de indivíduos e comunidades. A desassistência mata porque antes de tudo tira também a perspectiva de ser.
Referências bibliográficas[editar | editar código-fonte]
- ↑ De Paula, Aline Baptista. Territórios desiguais - Racismo e o acesso à cidade. [SYN]THESIS, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 64-82, jun./dez. 2016. Cadernos do Centro de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
- ↑ Moura, Clóvis. Dialética Radical do Brasil Negro - 2ed.-São Paulo: Fundação Maurício Grabois co-edição com Anita Garibaldi, 2014.
- ↑ Góes, Luciano. A tradução de Lombroso na obra de Nina Rodrigues: o racismo como base estruturante da criminologia brasileira. - 1 ed. Rio de Janeiro: Renvan, 2016
- ↑ De Paula, Aline Baptista. Territórios desiguais - Racismo e o acesso à cidade. [SYN]THESIS, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 64-82, jun./dez. 2016. Cadernos do Centro de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
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- ↑ São Bernardo, Augusto Sérgio dos Santos de. Xangô e Thémis -- Estudos sobre filosofia, direito e racismo/ Augusto Sérgio dos Santos de São Bernardo.-Salvador:J.Andrade, 2016.