No Sapatinho: A Evolução das Milícias no Rio de Janeiro 2008-2011 (resenha)
Resenha sobre a pesquisa de Cano e Duarte[1], na qual fazem uma análise diacrônica do fenômeno social denominado milícia, tendo como ponto de comparação o estudo do mesmo autor publicado em 2008 intitulado Seis Por Meia Dúzia? Um Estudo Exploratório Do Fenômeno Das Chamadas ‘milícias’ No Rio De Janeiro.
Autoria: André Costantin Felix de Souza.
Sobre[editar | editar código-fonte]
Essa pesquisa de Cano e Duarte pode ser compreendida como uma análise diacrônica do fenômeno social denominado milícia, tendo como ponto de comparação o estudo do mesmo autor publicado em 2008 intitulado Seis Por Meia Dúzia? Um Estudo Exploratório Do Fenômeno Das Chamadas ‘milícias’ No Rio De Janeiro. Enquanto o primeiro estudo tem caráter exploratório com o objetivo de entender as milícias, o segundo trabalho tem a proposta de apreender quais mudanças ocorreram após o estado aplicar esforços no combate a esse tipo específico de organização criminal.
O direcionamento do foco estatal para a atuação destas organizações no estado do Rio de Janeiro é atribuído à divulgação da tortura de jonalistas do Jornal O Dia que estavam produzindo uma matéria investigativa sobre a atuação das milícias no Batan, em maio de 2008. No mês seguinte a esse evento, foi instaurada uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) para investigar as milícias.
O pesquisador manteve a mesma estrutura em ambos os estudos com o objetivo de viabilizar a comparação. A primeira parte dos questionários de entrevistas semi-estruturadas foi repetida nos dois estudos, mas no segundo estudo, foram adicionadas perguntas com a finalidade de capturar a percepção dos entrevistados sobre as possíveis mudanças no modo operativo das milícias após a atuação do estado. Também foram analisadas matérias de imprensa e dados do Disque Denúncia.
O texto é um trabalho do Laboratório de Análise da Violência (LAV-UERJ) em conjunto com a Fundação Heinrich Böll.
Ignacio Cano é Doutor em Sociologia - Universidad Complutense de Madrid (1991). Atualmente é professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Psicologia Social e Sociologia, com ênfase em Outras Sociologias Específicas, atuando principalmente nos seguintes temas: metodologia de pesquisa, políticas públicas, educação, direitos humanos, violência e segurança pública.
Thais Lemos Duarte é pesquisadora de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGS - UFMG), pesquisadora do Centro de Estudos da Criminalidade e Segurança Pública (CRISP - UFMG) e, ainda, desenvolve consultorias sobre sistema penal e prevenção à tortura.
Resumo dos Principais Argumentos[editar | editar código-fonte]
Essa pesquisa foi orientada pela pergunta: “qual foi o impacto da repressão estatal na atuação e organização das milícias no Rio de Janeiro?”. Dado que a proposta deste trabalho é detectar mudanças, faz-se necessário recuperar as principais características identificadas no primeiro trabalho, a saber:
- Domínio territorial e populacional de áreas reduzidas por parte de grupos armados irregulares.
- Coação, em alguma medida, contra os moradores e os comerciantes.
- Motivação de lucro individual como elemento central, para além das justificativas retóricas oferecidas.
- Discurso de legitimação relativo à libertação do tráfico e à instauração de uma ordem protetora. Diferentemente do tráfico, por exemplo, que se impõe simplesmente pela violência (ver Machado da Silva, 2004 4 ), as milícias pretendiam se apresentar como uma alternativa positiva.
- Participação pública de agentes armados do Estado em posições de comando.
Com o objetivo de comparação em tela, os pesquisadores repetiram algumas análises e incluíram outras. Posto que a principal mudança no ambiente tinha sido a repressão estatal, foram entrevistados agentes do estado que participaram deste processo. A divisão da apresentação dos resultados ficou assim: Análise dos registros do Disque Denúncia; Análise dos Registros do Disque Milícia; Análise das matérias de Jornal; A percepção dos cidadãos que moram ou trabalham em área de milícia; A visão das autoridades que participam da repressão às milícias; e Registros de ocorrência de desaparecimentos, sendo as duas últimas a novidade.
Análise dos registros do Disque Denúncia e Análise dos Registros do Disque Milícia[editar | editar código-fonte]
Os dados analisados do Disque Denúncia cobrem o período de janeiro de 2006 a junho de 2011 e contém as “denúncias em que a palavra-chave ‘milícia’ foi inserida pelo atendente”. Os pesquisadores descrevem a distribuição temporal e espacial desses dados. A distribuição temporal apresenta um crescimento entre 2006 e 2009, quando o canal recebeu 13.203 ligações.
Do ponto de vista espacial, a “distribuição de denúncias por município, [...] mostra que o Rio de Janeiro concentra 79% dos registros, 5% a menos do que em 2008”. Quando as denúncias são observadas por bairro da cidade do Rio de Janeiro, há a concentração em Campo Grande, Santa Cruz e Jacarepaguá, todos na Zona Oeste.
O Disque Milícia foi um canal criado pela CPI das milícias que recebeu ligações anônimas do período de julho a novembro de 2008. Os pesquisadores tiveram acesso a 842 registros das 1.162 denúncias que constam no relatório final da CPI. O Disque Milícia apresentou distribuições de municípios e bairros semelhantes ao Disque Denúncia.
As matérias de Jornal[editar | editar código-fonte]
Para análise das matérias dos jornais, os pesquisadores realizaram buscas nos acervos digitais dos jornais O Dia e O Globo. Os termos de busca foram: milícia, milícias, miliciano e milicianos. O período selecionado foi de janeiro de 2005 a abril de 2011. Foram consideradas apenas as matérias de milícias do estado do Rio de Janeiro, sendo as demais descartadas juntamente com os artigos de opinião, os editoriais e as cartas. O resultado desta seleção foram 860 matérias do jornal O Globo e 839 do jornal O Dia.
Quanto ao conteúdo, “a grande maioria das matérias publicadas é marcadamente factual, baseada em simples descrições das ações de milicianos e da repressão do Estado contra eles. São raros os casos de informações mais profundas, que ajudam a definir o contexto das ações ou a explicar os fatos.”
A quantidade de matérias mensal segue um padrão de distribuição temporal semelhante ao das ligações recebidas pelos canais de denúncias Disque Denúncia e Disque Milícia.
A percepção dos cidadãos que moram ou trabalham em área de milícia[editar | editar código-fonte]
Os pesquisadores argumentam que “se as denúncias e as matérias de jornal fornecem indícios importantes sobre a atuação dos milicianos, nada se compara ao testemunho das pessoas que convivem com o fenômeno”. Porém, destacam as dificuldades em encontrar “pessoas residem ou possuem contato estreito com áreas de milícia” dispostas a falar sobre o assunto. Por esse motivo, foram incluídas na lista de potenciais entrevistadas pessoas que trabalham nessas áreas, o que inclui, principalmente, professores das escolas públicas.
Para efeito de comparação, foi privilegiada a busca por moradores das mesmas localidades do estudo anterior. Contudo, em função das dificuldades relatadas acima, este critério não foi cumprido.
Segundo os pesquisadores, as entrevistas evidenciam duas mudanças na atuação das milícias. Primeiro, o discurso de legitimação foi abandonado. Em segundo lugar, os agentes armados do estado não ostentam mais as posições de comando das milícias. Esses eram o quarto e o quinto traço distintivo das milícias no estudo anterior.
No aspecto de dominação e violência, houve mudança no sentido de “maior frouxidão do controle social”, que passou a "abranger um conjunto menor de condutas e que o recurso à violência é agora aplicado com maior parcimônia”. Mas ainda que mais frouxa, a regulação social continua a ser determinante.
“No novo cenário, as milícias se caracterizam pela discrição e por um perfil muito mais baixo, conforme já exposto. Se a milícia sempre se contrapôs à conduta espalhafatosa do tráfico, o contraste é ainda mais marcante quando se considera o estilo atual desses grupos, que tenta diminuir sua visibilidade.”
A visão das autoridades que participam da repressão às milícias[editar | editar código-fonte]
Nessa parte da pesquisa, foram analisadas as entrevistas de três delegados, dois promotores e um juiz. Os pesquisadores salientam que não tinham o objetivo de “obter uma amostra representativa de delegados, promotores ou juízes”, portanto, não envidaram esforços para uma pesquisa amostral que fosse representativa desse grupo.
As mudanças na atuação do estado frente às milícias é percebida com mais clareza na criação de órgãos especiais para tratar dos delitos do crime organizado. Em 2007, a Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (DRACO) iniciou uma investigação sobre as milícias por encomenda da Secretaria de Segurança. Para esse objetivo, a DRACO criou um grupo específico composto por 10 policiais e 2 delegados. No final de 2010, a DRACO passou a ser subordinada direta da Secretaria Estadual de Segurança Pública, o que garantiu maior autonomia nas investigações. No início de 2011, a DRACO mudou a sede do prédio da Polícia Civil para as instalações da Secretaria de Segurança.
Outra alteração ocorreu no Ministério Público estadual (MP-RJ) que criou, em 2010, o grupo Grupo Especializado de Combate ao Crime Organizado (GAECO/RJ), composto por 23 promotores à época da pesquisa. Segundo Cano e Duarte, essa nova estrutura do MP-RJ apresenta três vantagens: especialização dos promotores no tipo de investigação sobre o crime organizado, maior segurança da vida dos promotores em função das denúncias serem apresentadas pelo grupo e não pelo indivíduo e, a terceira, a centralização dos casos facilita a monitoração dos grupos criminais.
O judiciário também apresentou transformações. Para proteger juízes e testemunhas, a operação de varas criminais que tratam das milícias foi deslocada para a sede do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Como esse prédio é localizado no centro da Cidade, uma área livre de atuação das milícias, ações com o intuito de coagir as testemunhas e intimidar juízes ficam mais difíceis. Além disso, os líderes das milícias foram transferidos para presídios fora do estado do Rio de Janeiro.
Apesar de todos esses ajustes, os agentes estatais entrevistados relataram dificuldades no trabalho de repressão das milícias. Como alguns milicianos são também agentes do estado, eles têm acesso a informações privilegiadas. Outra dificuldade é “o enquadramento da conduta de milicianos em um tipo penal” e o medo das testemunhas. Esse ponto foi superado com a promulgação da lei 12.720/12 que incluiu os crimes praticados por milícias privadas no Código Penal, que à época do estudo ainda era o projeto de lei 370/2007.
Conclusões[editar | editar código-fonte]
As conclusões são de que “a repressão estatal não conseguiu desarticular as milícias, apenas enfraquecê-las”. Houve mudança no comportamento público dos milicianos que não ostentam mais suas atividades nos locais com o objetivo de “dificultar as investigações e prisões dos seus membros.” Também houve abdicação do discurso de legitimidade. Com essas mudanças, os traços distintivos das milícias ficaram assim:
- controle de pequenos territórios e das suas respectivas populações por parte de grupos armados irregulares que fazem uso efetivo ou potencial da violência;
- coação contra moradores e comerciantes locais. Embora exista sempre um grau parcial de legitimação e de tolerância dos moradores, se a intimidação estiver ausente, estaríamos falando em segurança privada;
- motivação de lucro individual dos componentes desses grupos. Na ausência do antigo discurso de legitimação público, o objetivo das milícias ficou mais escancarado. Isso não exclui, em alguns casos, a tentativa de implantar, em paralelo, agendas ou projetos morais (luta contra o consumo de drogas etc.), mas essas motivações são sempre secundárias em relação ao lucro;
- posições de comando ocupadas por parte de agentes de segurança pública do Estado que agem de forma privada;
- imposição de taxas obrigatórias a moradores ou comerciantes em troca da suposta proteção e/ou aplicação de monopólios coativos sobre certos produtos e serviços consumidos na comunidade. Como no segundo ponto, a coerção é essencial, caso contrário estaríamos perante grupos de segurança privada ou monopólios com base econômica.
Apreciação Crítica[editar | editar código-fonte]
O trabalho apresenta um panorama amplo sobre as operações das milícias no Rio de Janeiro. Lança luz sobre as alterações ocorridas em função da repressão estatal e apresenta como o estado se organizou para combater essas organizações criminais. As entrevistas com moradores e trabalhadores de localidades sob ocupação miliciana amplia o entendimento a respeito da vida cotidiana nestas áreas da cidade. Não obstante a contribuição do texto sobre o tema das milícias, é válido ressaltar dois problemas do trabalho.
As afirmações sobre a capacidade de agendamento e enquadramento da mídia carecem de suporte teórico e empírico. Não é adequado assumir que as mensagens enviadas pelas mídias de massa sejam recebidas sem filtros, processamentos e mediações pelas pessoas. O texto concebe os efeitos da mídia num sentido que se aproxima da superada teoria da agulha hipodérmica. Isso pode ser notado, por exemplo, na tentativa de correlacionar ligações para o Disque Denúncia com a publicação de matérias e, também, no trecho: “a mídia ajudou a desconstruir o discurso de legitimação sobre o qual as milícias costumavam se apoiar”. Analisar o que foi emitido pela mídia não significa analisar o que foi recebido pelas pessoas. Para esse fim, seriam necessários outros estudos com foco na recepção.
Os autores destacam que tiveram dificuldades no recrutamento para as entrevistas. Isso pode ter gerado um viés de seleção que trouxe para as entrevistas apenas as pessoas que com posições aguçadas sobre as milícias, fossem , favoráveis ou contrárias. Uma evidência disso é destacada no próprio trabalho: “Se as citações anteriores mostraram pessoas que apoiavam abertamente as milícias, também não é difícil encontrar testemunhos de oposição frontal à presença destes grupos”. Não temos como saber se houve viés de seleção, mas é necessário ter atenção sobre esse ponto.
Referências[editar | editar código-fonte]
- ↑ CANO, Ignácio; DUARTE, Thais Lemos. No Sapatinho: A Evolução das Milícias no Rio de Janeiro (2008-2011). Rio de Janeiro: Heinrich Boll Stiftung, 2012.