Racismo religioso - o que é e como ele afeta a população negra (artigo)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco


Entenda por que o termo “racismo religioso” é mais adequado do que “intolerância religiosa” para falar sobre violências sofridas pelo povo de terreiro.

Autoria: Portal Conectas[1].

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De acordo com algumas concepções africanas, a palavra é regida pelo elemento fogo. Ela pode tanto queimar, quanto aquecer. É por isso que ativistas e defensores de direitos humanos ligados ao movimento negro reconhecem a importância de refletir sobre termos amplamente absorvidos pelo senso comum.

No Brasil, país estruturado pelo racismo, o termo “intolerância religiosa” não é suficiente para descrever as violências sofridas pelas pessoas que cultuam orixás, povos da rua e outras entidades que não cabem no imaginário ocidental. Torna-se necessária a busca por outra expressão que dê conta de nomear essas violências de forma a não deixar dúvidas  sobre a quem elas se direcionam. Nesse sentido, o termo “racismo religioso” parece muito mais adequado para definir uma prática que ameaça a liberdade e a existência dos povos de terreiro há séculos.

Na definição da cartilha Terreiros em Luta, racismo religioso é um conjunto de práticas violentas que expressam a discriminação e o ódio pelas religiões de matriz africana e seus adeptos, assim como pelos territórios sagrados, tradições e culturas afro-brasileiras.

“O endereço das violências é certo e o que temos de legislação e políticas públicas não dá conta disso”, apontou Lúcia Xavier, coordenadora da ONG Criola, no ciclo de debates realizado pela Criola, Conectas e o Portal Catarinas. “É possível dizer que, desde a primeira pessoa escravizada que chegou ao Brasil até hoje, essa violência não cessou. Ela ganha contornos de tranquilidade em determinados momentos de maior abertura democrática da sociedade, mas ao longo do tempo essas pessoas sempre foram criminalizadas.”

O advogado Hédio Silva, coordenador executivo do Instituto de Defesa das Religiões Afro-Brasileiras (Idafro) também se dedica a refletir sobre a importância da adequação dos termos. “A expressão ‘racismo religioso’ nasce no sistema da Nações Unidas nos anos 1960, e ela vem adquirindo conteúdo jurídico e significação volátil ao longo das décadas”, explica, também durante o ciclo de debates, “eu entendi que ‘intolerância religiosa’ é insuficiente quando percebi que a religiosidade é só um alvo desses ataques, talvez o mais visível, mas, na verdade, os ataques se dirigem a todo patrimônio cultural e a todo legado civilizatório herdado do tráfico transatlântico”.

Silva cita como exemplo as sucessivas tentativas de apagamento desse legado, a exemplo da utilização de expressões como “bolinho de Jesus”, no lugar de acarajé, e “capoeira gospel”. “Esses exemplos dispensam legendas, você não ouve falar em yakisoba, macarronada ou kibe de Jesus, é uma permanente antagonização que cria uma antítese a tudo que é vinculado ao legado civilizatório africano”, detalha.

Para a assessora do programa de Fortalecimento do Espaço Democrático da Conectas, Maryuri Grisales, a sociedade civil brasileira também deve se mobilizar em torno do combate ao racismo religioso. “É uma questão diretamente ligada ao racismo estrutural do país. Não se trata de um problema de segunda ordem. O fortalecimento da democracia passa necessariamente pelo fim das violências contra pessoas de terreiro”

De acordo com Rafael Soares, secretário de Planejamento e Cooperação de KOINONIA. “Para a academia, as religiões afro são um subcapítulo da antropologia. Foi só nos últimos seis ou sete anos que advogados, sociólogos e historiadores começaram a falar do termo ‘intolerância religiosa’”, aponta ele, destacando uma certa lentidão da academia em acompanhar as reivindicações dos movimentos sociais.

O apagamento de determinadas demandas do movimento negro também se dá de outras formas na academia. Para Felipe Brito, idealizador e diretor geral da Ocupação Cultural Jeholu, a redução do legado africano unicamente ao campo da espiritualidade é uma delas. “Tenho refletido sobre como o processo acadêmico eurocêntrico branco tentou esvaziar o lugar político das nossas tradições. Fomos parar no lugar único e exclusivo da religiosidade, da fé”, aponta.

Para as concepções africanas, não há separação entre o espiritual e o político. “Importante dizer que esses pilares colocados como pauta de costumes pela ala conservadora de extrema direita no Brasil existem, coexistem e sobrevivem nas comunidades de matriz africana”, explica Brito, a exemplo da participação da população LGBTQIA+, incluindo as populações de homens e mulheres trans e travestis, as quais, para além de serem acolhidas, são atuantes e estão inseridas em parte significativa destas comunidades.

Para falar da importância de se discutir o racismo religioso como parte perversa da estrutura racista do Brasil, Rafael Soares, de KOINONIA, lembra do orixá Oxóssi. “Ele é caçador, é aquele que enxerga nas matas o que ninguém consegue enxergar, descobre o caminho quando só há névoa. É exatamente isso que a gente faz quando afirma esse conceito”, reflete. “Que o senhor dos mistérios evoque, constitua e afirme publicamente que não há democracia sem a conversa sobre racismo religioso.”.

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Referências gerais[editar | editar código-fonte]