O rap me salvou e me preparou para a guerra (entrevista)
Entrevista com Renato Freitas, deputado estadual do Paraná eleito em outubro de 2022, produzida por Gercyane Oliveira e divulgada originalmente no portal Jacobin em 2 de fevereiro de 2023[1].
Autor: Gercyane Oliveira (Jacobin).
Sobre[editar | editar código-fonte]
O jurista e militante socialista Renato Freitas tomou posse nessa semana na Assembleia Legislativa do Paraná, uma região de maioria branca que ficou conhecida nos últimos anos por chocar o ovo da serpente bolsonarista. Nesta entrevista, ele conta como começou a compreender a luta de classes através do hip-hop e a lutar pela emancipação social através dos partidos - atraindo a fúria da direita que, em vão, tentou expulsá-lo da vida pública.
Eleito deputado estadual com 57 mil votos, Renato de Almeida Freitas Junior é um quadro histórico que nos mostra como a rua ensina, o partido organiza e a teoria pode revolucionar a vida. Com disposição para o debate, ele não teme o confronto e se tornou um orador excepcional.
Através da cultura hip-hop, de trabalhos precários e da vivência nas quebradas, o deputado entendeu o raio-x do Brasil. Para ele, o rap revelou a luta de classes, o racismo e exclusão social do neoliberalismo. Sua sagacidade, capacidade de mobilização e articulação nos faz lembrar do jovem Pantera Negra Fred Hampton, o saudoso “black messiah”. Com sua militância e críticas vorazes aos poderosos, sofreu perseguições e tentativas fracassadas da cassação de seu mandato. Nas suas críticas, ele também não poupa os erros da esquerda.
Nesta conversa com Gercyane Oliveira para a Jacobin Brasil, há a figura extremamente humana que está por trás das grandiosas falas que viralizam na internet. O que o move, a luta do povo pelo povo, a luta pelo fim do racismo, do machismo, do imperialismo e a esperança de uma revolução emancipadora para todos. O ex-vereador que chega agora na Assembleia Legislativa do Paraná é mais um filho da fúria urbana e deve marcar o horizonte de lutas no próximos anos. Leia a entrevista e entenda o porquê.
A entrevista[editar | editar código-fonte]
Gercyane Oliveira - Quem é o Renato? E como tudo começou?
Renato Freitas - A minha mãe é migrante nordestina, do sertão da Paraíba, de São José de Princesa. Uma cidade muito pequena, na fronteira com Pernambuco, perto de Serra Talhada, de lugares muito conhecidos pelo cangaço, porque foi onde Lampião nasceu, na Serra Talhada. Ela foi cedo para São Paulo, onde conheceu meu pai e foi trabalhar em casa de família, em Sorocaba. Meu pai foi preso, tinha problemas com drogas e acabou se envolvendo na criminalidade – enquanto minha mãe estava grávida. Foi preso na estrada e acabou vindo para o Paraná, cumprindo pena aqui, e a gente se mudou para cá.
Sou nascido em São Paulo, mas passei a minha vida toda no Paraná, na região metropolitana de Curitiba, principalmente no meio Tamandaré e Piraquara, que é o município que tem o maior complexo penitenciário do Paraná e que foi também o lugar onde morei por mais tempo. Passei 15 anos lá na Vila Macedo e depois morei em Colombo, Pinhais. Até que nos anos 2000 – sou de 1983 – vim para Curitiba, morei em áreas de periferia extremas e sempre trabalhei. Fui balconista de sorveteria, vendedor de loja, repositor de mercado, além de empacotador. E em um determinado momento tinha parado de estudar, interrompi os meus estudos no ensino fundamental, reprovei uma vez na 5ª e na 6ª série. Daí parei de estudar e depois fiz supletivo e quando voltei a estudar fui com o objetivo de tentar sair dos subempregos, que me ocupavam todo o tempo, mas que não me traziam nenhuma alegria, não me realizavam enquanto pessoa, não me davam a sensação de pertencimento.
“Fui crescendo envolvido nessa contramão da lei, nessas contravenções, e isso gerou consequências. A principal delas foi que infelizmente fui a muitos velórios de amigos.”
Quando jovem adolescente, entre 15 e 16 anos, não tinha uma sensação de pertencimento, de valorização, de visibilidade. Eu tinha problemas com a minha própria auto-estima, por ser um jovem negro em Curitiba, no Paraná, que é uma região muito racista, de maioria branca, descendentes de europeus. A cidade reivindica essa identidade europeia. Então, isso tudo foi sempre minando a minha auto-estima e me tornando um jovem invisível e violento, agressivo. Fui desde criança, desde os meus 11 anos, sendo uma criança em conflito com a lei. Eu ia lá para o centro da cidade para cuidar de carro, comer X-Salada e sair correndo, entrar no mercado e furtar pequenas coisas, pequenos delitos – onde eu morava essa realidade dos pequenos delitos eram muito presentes.
Fui crescendo envolvido nessa contramão da lei, nessas contravenções, e isso gerou consequências. A principal delas foi que infelizmente fui a muitos velórios de amigos que não completaram 18 anos ou que morreram logo depois com 20, 21, 22. A morte sempre esteve presente. Meu próprio pai, que ficou preso uns 15 anos, não tive muito contato. Depois descobrimos que ele tinha outra família, ele estava preso, mas tinha outra família, então cortamos os vínculos. Não tenho nenhuma lembrança, a não ser das visitas no sistema carcerário. Ele morreu cedo, com 30 e poucos anos. Hoje eu sou mais velho que ele.
Perdi um irmão mais velho que tinha 24 anos. Meu irmão era trabalhador, mas também morreu vítima da violência de arma de fogo e muitos amigos perdi por conta da miséria, da pobreza, do envolvimento deles também com o mundo do crime. De algum modo isso tudo fez com que acendesse uma luz de emergência dentro de mim, de que eu tinha que mudar os meus planos, tentar sobreviver com dignidade e isso não se daria ali onde eu estava naquele momento. Tomei a decisão quando trabalhava na sorveteria, servia o sorvete, limpava o chão, limpava as mesas e todo dia a mesma rotina servindo as pessoas que eram dos colégios particulares, dos advogados, isso de algum modo me revoltava, porque a vida toda a minha mãe trabalhou em casa de família. Eu trabalhei em subempregos, estávamos sempre servindo pessoas que não nos tratavam com dignidade, igualdade, respeito e por isso a revolta dentro de mim me direcionava para esse mundo dos pequenos delitos.
Tendo em vista que eu vivia em luto por conta dos amigos, fui estudar, peguei meu seguro desemprego na época que fui demitido e paguei um cursinho pré-vestibular, entrei no curso de Ciências Sociais na UFPR em 2003. Eu tinha um déficit e uma defasagem muito grande no ensino médio, tinha feito tudo por apostila, por supletivo ou mal feito. Nunca fui um bom aluno na escola, não compreendia-a. A escola também não me compreendeu. E quando entrei na Universidade percebi esse atraso educacional e me joguei de cabeça nos livros e tive meu primeiro contato com a política. A política como um modo de se organizar e de resolver problemas coletivos, isso eu já fazia a partir do hip-hop.
“A política como um modo de se organizar e de resolver problemas coletivos, isso eu já fazia a partir do hip-hop. O rap me salvou.”
O rap me salvou. Quando tinha 11 anos ouvi pela primeira vez e foi como se fosse um alistamento. Fui alistado para uma guerra e ali estavam as munições no conhecimento. Então sou um adepto do rap, da cultura hip-hop e faço dela meu principal instrumento de batalha, de luta e enfrentamento. Mas ali na universidade eu percebi a forma partido e também percebi o conhecimento mais sistemático que apresentava a sociedade como fraturada, dividida entre os que possuem e os despossuídos.
Os conflitos de classe instaurados no nosso país por conta do capitalismo europeu e, portanto, também o conflito racial da herança escravocrata e colonizadora do nosso país. Então, isso tudo me levou de imediato para o Partido dos Trabalhadores (PT). Em 2004 me filiei ao PT e, em 2005, saí do partido junto com as pessoas que me filiaram justamente por conta da Reforma da Previdência e outras reformas antipopulares, que mostraram o tom mais conciliatório do governo Lula naquele momento. E por isso fundamos o PSOL.
Fiquei no PSOL até 2016. No PSOL não me foi dada nenhuma importância porque o partido foi construído nos corredores universitários de Curitiba e eu era uma exceção na universidade: jovem, negro, de periferia e, portanto, era incompreendido. As pessoas não me ouviam ou me achavam muito radical. Diziam que “o Renato é gente boa, mas ele é meio louco”, então isso sempre fazia com que a minha fala fosse deslegitimada. Fui silenciado por muito tempo no partido. Continuei no partido até que no ano de 2016 foi feito um convite para eu me candidatar e não por ter alguma chance, ou porque eles achavam importante a minha voz ou o meu projeto político, ou das pessoas que eu representava. Eles queriam que eu me candidatasse, segundo quem me convidou, para que eu tivesse no máximo 300 votos, junto com mais umas 20 a 30 pessoas e formasse votos para o coeficiente eleitoral. Não me foi dado sequer o “santinho” e fiquei 15 a 20 dias da campanha sem nenhum tipo de material, como se eu fosse uma candidatura laranja. Me revoltei com isso. Fui atrás de dinheiro, fiz campanha, ao contrário do que eles imaginavam e tive 3.500 votos. Fui o “vereador” mais votado da história do PSOL no Paraná até hoje – como candidato porque não fui eleito.
Esse processo me habilitou na candidatura de 2018, que eu já fiz no PT em 2017 quando saí do PSOL, já que não acreditavam muito em mim. Fiz uma carta pública de desfiliação no meu Facebook e filiação ao PT, porque, em síntese, o crescimento do fascismo e a impossibilidade do PSOL fazer frente à extrema direita O PSOL estava muito enclausurado na universidade, na classe média, e não percebiam o avanço do fascismo. O fato de que não havia ali um espaço para mim, as minhas ideias não eram consideradas porque não eram ideias da classe média branca da universidade. Basicamente foi isso que me levou ao PT.
Em 2018 tive melhor condição para fazer campanha, e tive 15.600 votos para deputado estadual. Em 2020, tive mais 5.000 votos. Fui eleito vereador de Curitiba e agora, por último, tive aproximadamente 58.000 votos e fui eleito deputado estadual pelo PT no Paraná.
Gercyane Oliveira - Em 2022 você sofreu uma perseguição de maioria reacionária da Câmara dos vereadores de Curitiba para cassar ilegalmente o teu mandato. O caso se tornou emblemático para a esquerda brasileira. Nos conte um pouco mais sobre a história daquele protesto, naquela igreja em específico e o seu vínculo com o movimento negro.
Renato Freitas - Foi o segundo pedido de cassação pelo mesmo motivo: a luta contra o racismo. O primeiro pedido de cassação tinha quatro acusações. O fato foi eu ter chamado de mentirosos e charlatões os pastores que defenderam a cloroquina e a ivermectina no plenário da Câmara. Segundo, a pichação que eu fiz no supermercado Carrefour. Nós organizamos uma manifestação no super-mercado dia 19 de novembro a 20 de novembro de 2020 por conta da morte do Beto Freitas, um homem negro brutalmente espancado até a morte no Carrefour do Rio Grande do Sul. Escrevi lá na mureta do estacionamento: “A injustiça praticada em qualquer lugar do mundo é uma ameaça à justiça em todos os lugares do mundo.” É o que dizia Martin Luther King.
Essa pichação foi veiculada em todas as mídias, ninguém mostrou a frase e mostraram apenas que eu estava pichando. As manchetes foram “vereador pichador”, “vereador vândalo”, “vereador criminoso”, “vereador merece ser preso” e “vereador nem assumiu e já está cometendo um crime contra a ordem pública”. Isso criou um ambiente propício para uma perseguição. Então, logo que eu fui empossado, meses depois, no primeiro conflito que foi contra a bancada evangélica, já fui processado na Comissão de Ética por conta de um ato que eu cometi antes de ter sido empossado. Ali foi o primeiro pedido de cassação e o motivo de eu ter lutado contra o racismo, contra a morte de um homem negro. Já sabia exatamente com quem estava lidando.
Depois de um ano de mandato, no dia 5 de fevereiro, organizamos outra manifestação em ambito nacional Houve a morte do Moïse Kabagambe, um homem negro congolês. Que ao exigir o que lhe era devido, pelos dias trabalhados, além de não ter sido pago, foi espancado brutalmente até a morte na frente de outras pessoas. E isso gerou uma revolta muito grande na população brasileira, mas sobretudo na população negra. Poucos dias depois, Durval Teófilo, um outro homem negro chegando na sua própria casa, foi baleado sucessivamente por um vizinho que, ao olhá-lo no retrovisor, acreditou que só poderia se tratar de um bandido porque, segundo ele, um homem negro não poderia morar naquele condomínio. Desceu atirando, como faz a polícia. Por sinal, ele mesmo era militar da Marinha. Aquela revolta do caso Moise foi potencializada, foi elevada à enésima potência.
“A Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos foi construída para que as pessoas negras pudessem professar a sua religião e também foi construída em cima de um cemitério de escravizados.”
Todo o movimento negro brasileiro organizou nas capitais manifestações para demonstrar a insatisfação. E aqui a gente escolheu o Largo da Ordem, o centro antigo de Curitiba, que é o lugar que tinha comercialização de pessoas negras na escravidão e também onde foi construído as primeiras igrejas para pessoas brancas exclusivamente. E por isso foi necessário que a população negra em 1737, salvo engano, construísse uma igreja só para os pretos e foi batizada: Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Benedito. Essas irmandades beneditinas há no Brasil todo.
A Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos foi construída para que as pessoas negras pudessem professar a sua religião e também foi construída em cima de um cemitério de escravizados que já havia ali. Então, essa igreja é um santuário das almas, tem um valor simbólico ancestral, imensurável e por isso foi escolhido o Largo da Ordem, porque essa igreja está no centro da praça. Fizemos na praça a manifestação, marcamos para um sábado porque tinha que ser um dia em que a classe trabalhadora – onde está a maioria dos negros -, pudesse participar.
Marcamos às 17h na praça. Coincidentemente, a missa também iniciava às 17h. A manifestação começou às 17h30. Então, quando começou, a missa já se encerrava. E ao começar a missa, o padre ouviu lá de dentro a manifestação na praça e veio alguém e falou: “olha, tá alta a caixa de som” e diminuímos um pouco, sem nenhum problema. Menos de dez minutos depois, acabou a missa e a igreja foi esvaziada. O padre ficou lá na escadaria, a igreja vazia e o próprio padre já não estava mais com as suas vestes cerimoniais e ele começou a reclamar lá na frente da igreja, na escadaria. “Por que é que vocês foram escolher aqui para fazer manifestação? O que é essa manifestação? Por que não vão fazer em outro lugar? Tem tanta praça pra vocês fazerem bagunça!” Então, ele foi um pouco, na verdade, insensível, para não dizer desrespeitoso.
Nós já estávamos manifestando para que gente não fosse mais invisível e que as nossas mortes não ficassem por isso mesmo, nos deparamos numa situação de silenciamento novamente, de um padre que estava cuidando da Igreja dos pretos e era um padre descendente de alemão, branco, de olhos azuis e que ainda nos tratava daquela forma. Então alguém na manifestação disse: “O senhor está reproduzindo o racismo estrutural”. Outro falou: “O senhor deveria saber o que é essa manifestação e deveria, sobretudo, acolhê-la, tendo em vista que nós acolhemos o senhor na nossa Igreja, que foi construída por nós.” Aí começou a gerar uma discussãozinha e alguém falou: “Olha, se o padre não nos coloca na oração dele, façamos nós mesmos a nossa oração”. E a galera gostou da ideia, foi espontâneo e muito bonito, inclusive porque não foi num tom de discórdia e de conflito.
“Às vezes me chamam de negro, achando que vão me humilhar, mas o que eles não sabem é que só me fazem lembrar que eu venho daquela raça que lutou para se libertar”.
A ideia de entrar para fazer oração foi num tom cristão, porque a maioria ali era cristã. A maioria da população negra brasileira é cristã. Entramos e lá dentro a gente fez uma homilia, uma interpretação da palavra. Dissemos que a acepção de pessoas, como se diz na Escritura Sagrada, ou seja, a acepção, a discriminação de pessoas, é um pecado mortal e por isso deve ser repudiado. Também cantamos uma música de capoeira, que diz: “Às vezes me chamam de negro, achando que vão me humilhar, mas o que eles não sabem é que só me fazem lembrar que eu venho daquela raça que lutou para se libertar”. Ao final falamos: “Viva a vida” e foi isso. Não durou nem dez minutos e saímos da igreja, foi bonito o padre nos acompanhou, não nos desrespeitou e nós também não desrespeitamos o padre. O padre cedeu o microfone da igreja, e então foi bem tranquilo.
Saímos e continuamos a manifestação lá fora, andamos pela cidade e no mesmo dia a Rede Globo, por exemplo, que cobriu o evento, nem deu bola para o fato de ter entrado na igreja. Só que veiculou a informação no mesmo dia. Mas no outro dia nós fomos vítimas do MBL e do Gabinete do Ódio, que começaram a editar imagens e criar uma narrativa de que a gente havia entrado no meio de uma missa, interrompendo a missa, xingado o padre e intimidando fiéis. Silas Malafaia, Marcos Feliciano, Eduardo Bolsonaro, o governador Ratinho Júnior, o prefeito Rafael Greca, tantos outros pastores e tantas personalidades da ultradireita se manifestaram e criaram um factóide em cima da gente, que abriu caminho da impopularidade para que eu fosse cassado.
A Câmara dos vereadores, oportunista, não pensou duas vezes e abriu quatro pedidos de cassação, um pelo líder do prefeito Rafael Greca e outros pela bancada evangélica. Tentaram por duas ou três vezes. Não tiveram sucesso porque tropeçaram na forma e foi anulada. Quando conseguiram uma, já tinham perdido o prazo, que foi o que iria acontecer recentemente e foi reconhecido pelo ministro Barroso, que foi o que anulou a cassação. Não só porque eles perderam o prazo, mas também porque viram ali uma desproporcionalidade de cunho persecutório e racista nesse processo de cassação. Por isso ele me reconduziu à Câmara poucos dias antes do fim do pleito, no meio da campanha eleitoral. Eu cassado ficava inelegível, com a minha candidatura indeferida e, portanto, não podia receber nenhum recurso do partido. Mas em determinado momento e num intervalo de dez dias, fui reconduzido à Câmara e ainda fui eleito deputado estadual.
Gercyane Oliveira - Testemunhamos o teu caso, desde o teu primeiro mandato, e a luta antirracista para interromper a onda bolsonarista. Qual a sua leitura de conjuntura e das tarefas mais urgentes diante de nós agora?
Renato Freitas - Precisamos urgentemente criar lideranças populares, aliás, elas já existem, mas nós temos que dar condição a essas lideranças para que elas ocupem os parlamentos e os espaços institucionais de poder. Não conseguimos fazer isso de uma hora para outra no Judiciário, que exige estudo, concurso, tradição, família, de uma geração para outra. É muito difícil, quase impossível no Judiciário, mas nos outros poderes, como Legislativo e Executivo, é possível – não do modo que nós vemos hoje.
Olhe os partidos, eles não preparam os seus sucessores e quando preparam têm que ser necessariamente aqueles que existem e que foram chocados embaixo de suas asas. Ratinho, Ratinho Júnior, Beto Richa, Beto Richa Filho, Lula, Haddad. Esse tipo de política nos enfraquece demais porque retira a possibilidade de participação efetiva do povo, não só no voto, que é o mínimo, mas em ser votado, em se ver e representar. Carecemos de representantes e justamente por isso, por carecer de representantes, é que a gente não se vê, não vota, não participa, não estuda, não entende – porque é algo que não é feito para nós.
Por mais que nós tenhamos agora, nesse momento, um metalúrgico na presidência. Mas veja: para dar um passo para o futuro, nós tivemos que abraçar o passado. Porque o Lula, embora seja o futuro, o Lula, está marcado no passado do nosso país como um bom governo, é óbvio, mas ainda é uma marca do passado. Deveríamos ter outra coisa a oferecer e o Brasil não tinha. Se não fosse o Lula, não seria absolutamente ninguém. Isso é uma crítica que deve ser feita por que o PT não conseguiu construir lideranças a contento? Que abraçassem essa responsabilidade histórica de representar não só na presidência, mas nos Estados, nas vereanças.
“Deveríamos fazer uma escola de lideranças populares, a fim de qualificar a base para ser representante e não ver a base como um eterno eleitor.”
Os quadros, em geral, são quadros construídos dentro do partido e estruturas sindicais em correntes. Não são pessoas dos movimentos populares. O próprio Guilherme Boulos, que é um grande quadro que admiro demais, é um representante do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), que luta pela reforma urbana, mas não é alguém sem teto – embora ele seja um grande aliado. Mas precisamos de alguém, como dona Maria, sem os dentes, sofredora, que fincou uma bandeira na terra para ter o seu lar e criar os seus filhos com o mínimo de dignidade. Precisamos de uma escola de formação de líderes, assim como a Fundação Lemann, assim como o Partido Novo, assim como essas iniciativas fazem para ter os seus representantes. Deveríamos fazer uma escola de lideranças populares, a fim de qualificar a base para ser representante e não ver a base como um eterno eleitor.
Gercyane Oliveira - As pessoas negras militantes no Brasil se encontram dispersas em diferentes campos ideológicos e na atuação na vida política ou no trabalho. Enxergam de maneira diferente a forma como o racismo deve ser combatido e o próprio movimento negro historicamente se faz uma expressão dessa diversidade de pensamentos. Onde você se coloca em meio a esse movimento tão diverso? Você se coloca como socialista?
Renato Freitas - Sou socialista e como tal, eu acredito que algumas pautas radicais, algumas reivindicações radicais do movimento negro, como o condão, a possibilidade de universalidade, de encontrar não só todas as pessoas negras, mas como todas as pessoas em geral, pelo menos no que diz respeito à classe trabalhadora. Qual delas? Uma das que é central na minha atuação é a luta por moradia, por exemplo, é a luta por aqueles que foram relegados ao descaso no processo pós-escravidão. A lei de terras é de 1850, mas ela preparou o terreno para que em 1888 a terra fosse por propriedade, por título e não por posse, não para quem morava, plantava, vivia, e sim para quem tinha um papel do cartório – justamente para não dar oportunidades à população negra se integrar pelo medo que tinham e por isso tentavam nos dizimar e embranquecer.
“A gente tem uma segurança pública que só existe dessa forma porque foi construída pela Guarda Real para combater o medo da Revolução Haitiana no Brasil.”
Então, a luta pela reforma agrária é uma luta tradicional da população negra. Tanto que, em qualquer periferia de grandes centros urbanos, você vai ver que a maioria das lideranças são mulheres negras. A maior parte dos moradores são negros, então é uma pauta que é racial e que é econômica, faz parte da vertebra de organização do Estado capitalista. Temos uma segurança pública, que é um segundo ponto, que é o principal eixo da minha atuação. A gente tem uma segurança pública que só existe dessa forma porque foi construída pela Guarda Real para combater o medo da Revolução Haitiana no Brasil. Esse foi um medo que povoou a América, a mente colonizadora das Américas, por conta do que ocorreu no Haiti.
A construção da polícia também foi fundamentada numa política de desumanização do outro. O Brasil é o único país que utiliza o Exército contra a sua própria população. E por quê? Porque a sua própria população, ou um setor dela, sempre convergiu. Unificou o país, sendo a vilã, a inimiga na novela. Como o homem negro sempre foi pintado nas novelas e no imaginário brasileiro? Como alguém bêbado, imoral, indolente, criminoso e agressivo. Esse inimigo interno que unificou o país justificou a ação militarizada. Por que o militar atua na ótica amigo-inimigo em uma visão tão maniqueísta?
Essa ideia de militarização da polícia está muito vinculada à ideia do racismo. O efeito prático disso nós sabemos: o encarceramento em massa prende especialmente a população negra e exclusivamente a população pobre. Já as mortes, são ocasionadas pela polícia ou em conflitos entre civis e atinge especialmente a população negra e pobre.
Percebo que há diferenças de concepção de movimento negro em pautas menores. Como a representatividade: é importante estar numa propaganda do Itaú na televisão? Uma parte do movimento negro vai dizer que sim que é importante ter uma criança negra lá, um homem e uma mulher negra, mesmo que servindo de instrumento do capital, mas que é importante estar no comercial, onde vê a si próprio. Outra parte vai dizer que não porque você vai estar como um instrumento cego de sua própria destruição e isso não é uma reivindicação válida. Então, há diversas formas de se entender, mas algumas pautas têm essa força de unificar e é nelas que eu trabalho. É nesse tipo de socialismo que eu acredito.
“O capitalismo, portanto, tem a vocação colonizadora e imperialista e, por causa disso, racista.”
Gercyane Oliveira - Você acredita que é possível um antirracismo sem um horizonte socialista?
Renato Freitas - Acredito que sim. Por incrível que pareça, eu sei, o Malcom X dizia que “não existe capitalismo sem racismo”. Eu também acredito nisso. O racismo, da forma com que nós entendemos, é uma manifestação política, econômica, cultural, europeia. Isso é um dado histórico. O capitalismo, portanto, tem a vocação colonizadora e imperialista e, por causa disso, racista. O capitalismo, do jeito que existe hoje, ele depende do racismo, dessa diferenciação da própria classe, que seria as diferenciações raciais.
Não acredito que o socialismo seja a única forma de se livrar do racismo, porque há outras formas de organização política que hoje não fazem parte do nosso conhecimento, da nossa prática, da nossa teoria, mas que existem, a realidade é infinita. O fenômeno do socialismo bolivariano venezuelano ganha outros contornos, encontra uma outra forma de organização socioeconômica que pode resolver problemas que nós não imaginávamos que poderia ser resolvido.
Isso pode ter um outro nome que não seja socialismo? Pode, mas a superação do capitalismo também pode. Não seria tão taxativo no inverso. Porque aquilo que eu não compreendo eu não julgo ou não reduzo. Porque seria reduzir o socialismo como única possibilidade, para o futuro, de superação do racismo. Acho que o socialismo é a única possibilidade para a superação do capitalismo, mas pro racismo acho que não. Não que o socialismo não seja também uma superação.
Gercyane Oliveira - Diante dos limites que a institucionalidade impõe qual o papel da representatividade institucional de um militante?
Renato Freitas - Acho que o principal papel é o de denúncia. Porque os limites que a institucionalidade impõe não são comunicados massivamente para o povo. O povo sabe quem é corrupto. Mas há uma ilusão na luta anticorrupção da forma com que ela se deu, por exemplo, nas manifestações de junho 2013, porque as pessoas pensam “então, se a máquina, se os corruptos pararem de roubar, de fazer licitação fraudulenta, se as coisas funcionarem, todos serão contemplados, todos viverão de forma digna”. E não é assim. A regra do jogo é que tenha desemprego crônico. A regra do jogo é que tenhamos subempregos e que tenha uma política de segurança pública que encarcera em massa e que elimine as pessoas marginalizadas. Então, a regra do jogo é viciada.
Agora, quem diz para o povo, na prática, que a regra é viciada? Poucas pessoas, quase ninguém. Porque uma vez que você entra na instituição por experiência – eu não penso assim, mas eu vejo, percebo, vivencio isso na Câmara, no espaço de poder, inclusive da própria esquerda – ela entra com um pé e quando coloca o outro pé, ela já está pensando em reeleição ou em galgar espaços de maior prestígio, de maior poder. Isso faz com que haja ali, nesse mesmo momento, um pacto silencioso, tácito, com os poderosos. Aquele que fica muito tempo como oposição, ele já não é mais oposição, ele é um associado do sistema. Porque para ele, de fato ser oposição, vai inevitavelmente entrar em conflitos com os mais poderosos, com as empresas que dominam o transporte público, com os convênios que privatizam a saúde, com a política de educação e tantos outros problemas estruturais do capitalismo que não se resolve apenas na luta anticorrupção.
“A democracia brasileira sempre respirou por aparelhos. A nossa democracia é um bebê que nasceu prematuramente.”
Por isso essas denúncias são estratégicas. A boa denúncia é aquela que vem com um anúncio, com os projetos, com as possibilidades de tensionamento, por exemplo, de transporte público gratuito, acabando com a máfia do transporte e trazendo exemplos de grandes capitais como Buenos Aires e outros lugares que conseguem subsidiar e fazer o transporte ser mais público do que privado. Colocar uma frota de ônibus a serviço do Estado, nacionalizar alguns setores estratégicos ou impor essa discussão de nacionalização de setores estratégicos para a soberania do Estado, que vai incidir no próprio mercado. Isso tudo são coisas que são necessárias.
A reforma agrária é uma das maiores lutas hoje em dia. Então, quem de fato tem coragem de lutar e organizar uma reforma agrária? Nem mesmo o PT fez isso pra valer durante os anos de governo.
Gercyane Oliveira - Quais serão as principais pautas na sua atuação como deputado estadual?
Renato Freitas - As minhas principais pautas serão a questão da reforma agrária e urbana e segurança pública. A segurança pública de hoje, que desvaloriza a vida em nome do patrimônio e da educação, está sendo privatizada. Há um convênio absurdo e criminoso do governador Ratinho Junior com a empresa Unicesumar, uma universidade de um empresário da educação, que é de extrema direita e que está saqueando os cofres públicos, vendendo ainda aula remota, quando os próprios professores e alunos estão em sala de aula.
É algo que não tem sentido algum, mas que vingou. Foi um bom negócio durante a pandemia. Embora tenha aumentado muito a evasão escolar, a avaliação dos alunos em relação à Unicesumar é péssima e dos professores ainda pior. E, mesmo assim, a empresa se mantém só por força política. O governador está querendo terceirizar, ou seja, privatizar as empresas da confecção de uniforme das cantinas dos colégios, entre outras coisas.
“O Bolsonaro veio justamente para retirar a democracia dos aparelhos e eliminar a democracia. E a eleição do Lula? É a sobrevida da democracia.”
Por último, ele também militarizou as escolas. Estão privatizando, militarizando e terceirizando o estudo. O ensino tirando a centralidade do professor na sala de aula do professor como concursado. Isso tem sido um absurdo e tem feito com que haja uma taxa de evasão nunca antes vista no Estado, porque é um plano, um projeto.
Gercyane Oliveira - E o que representa a eleição de Lula nesse momento?
Renato Freitas - A democracia brasileira sempre respirou por aparelhos. A nossa democracia é um bebê que nasceu prematuramente. As condições para a democracia foram sendo organizadas enquanto a democracia foi sendo executada.
Até hoje há interpretações sobre a Constituição para saber se os direitos e garantias do artigo 5º são obrigatórios ou mera faculdade do Estado. O Bolsonaro veio justamente para retirar a democracia dos aparelhos e eliminar a democracia. E a eleição do Lula? É a sobrevida da democracia.
Agora a gente vai ter condição de perceber, diagnosticar, tratar, com muita sorte e muita luta. Ao final do governo Lula, talvez nós tenhamos uma criança saudável andando por aí prometendo um futuro possível.
Sobre os autores[editar | editar código-fonte]
RENATO FREITAS é um jurista, político, militante e ex-líder estudantil. Filiado ao PT, atualmente exerce o cargo de deputado estadual na Assembleia Legislativa do Paraná.
GERCYANE OLIVEIRA é tradutora e redatora na Jacobin Brasil, jornalista independente e discente de Ciências Sociais na Unifesp.
Referências[editar | editar código-fonte]
- ↑ OLIVEIRA, Gercyane. FREITAS, Renato. O rap me salvou e me preparou para a Guerra. Jacobin, 2023.