Operações policiais e desocupação no Parque União (Conjunto de Favelas da Maré)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Imagine acordar um dia, em uma manhã comum, e, de repente, ser interrompido pela polícia avisando: “Saia de casa agora, porque vamos derrubar tudo!”. Famílias inteiras com idosos, crianças, pessoas com deficiência, mães solo, todas sendo postas na rua sem aviso, sem apoio e sem rumo. Foi assim que, no dia 19 de agosto, as famílias do Parque União, no Complexo da Maré, Zona Norte do Rio, foram acordadas.[1]

Autoria: Informações reproduzidas pela equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco a partir de outras fontes.[1][2][3]

Sobre[editar | editar código-fonte]

Desde julho, o Parque União, uma das 15 favelas que formam a Maré, tem enfrentado operações policiais com o objetivo de apoiar o processo de demolição de prédios, supostamente construídos sem a devida formalização pela Prefeitura do Rio de Janeiro. Só nesta semana, três operações consecutivas conduzidas pela Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) e pela Secretaria Municipal de Ordem Pública geraram os conhecidos impactos para a população das favelas da Maré, com fechamento de escolas, comércios e unidades de saúde.[2]

Um movimento de resistência e luta pelo direito à moradia se fortaleu nesse período e tomou as ruas do Conjunto de Favelas da Maré. Famílias resistiram a sair e ocuparam os imóveis que construíram para moradia própria. Já foram demolidos 32 prédios e 162 apartamentos. As operações policiais que acompanham os órgãos de demolição levam pânico à favela e causaram o fechamento de 26 escolas municipais da região, deixando milhares de alunos sem aula.

No dia 3 de setembro de 2024, 14° dia de operação, três pessoas foram assassinadas, houve relatos de moradores torturados, invasões a residências e pertences roubados por agentes públicos. Um ônibus do BRT Transbrasil foi alvejado por tiros. Por sorte nenhum passageiro ficou ferido. Ao longo de todo o dia, foram postas em risco centenas de milhares de vidas de moradores do Complexo da Maré e de todos que circulavam nas grandes vias expressas que circundam o complexo de favelas, entre elas a Linha Vermelha, Avenida Brasil e Linha Amarela.

A maior universidade federal do país, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), liberou os alunos e professores por conta dos tiroteios, cancelou diversas aulas e fechou seus institutos em alguns momentos ao longo das semanas de operação. Ao longo de todo o dia, 38 escolas suspenderam as aulas. Em ano eleitoral, moradores denunciam o caráter eleitoreiro das ações da Prefeitura, da Polícia Militar (PMERJ) e da Polícia Civil.

Na mídia dominante, proliferam informações de que os moradores que reagiram são criminosos ou aliados a criminosos porque os únicos espaços-alvo mostrados pela mídia, em construção, eram supostamente erguidos pelo tráfico, com blindex, mármore, piso de porcelanato e piscina. Porém muitas moradias-alvo já estavam ocupadas. Faziam parte do mesmo condomínio e haviam sido vendidas para pessoas trabalhadoras, famílias e pessoas em vulnerabilidade. E, assim, com essas imagens e informações parciais, se justifica todo tipo de violência.[1]

Habitação é um direito?[editar | editar código-fonte]

Embora as operações policiais na Maré e o processo de remoção na região do Parque União possam parecer, à primeira vista, uma questão exclusivamente relacionada à segurança pública e criminal, a situação é mais complexa. O que estamos testemunhando envolve violações mais amplas dos direitos fundamentais dos moradores. A questão das remoções é histórica e está profundamente ligada ao problema do acesso à moradia digna nas favelas e periferias urbanas. A falta de políticas públicas adequadas e a negligência estatal com os espaços e equipamentos resultam em estratégias improvisadas para ocupar o espaço urbano sem a devida regulamentação e fiscalização. O Estado, ao abdicar de sua responsabilidade na gestão do espaço público e na regulação dos direitos urbanos e habitacionais, contribui para a perpetuação dessas práticas. Nessa lógica, as pessoas já vulnerabilizadas, historicamente, são as que sofrem os efeitos diretos do abandono e da falta de respeito num momento de conflito como o que se estabeleceu. É necessário que o Estado se corresponsabilize por sua negligência histórica nos espaços de favela, em vez de, simplesmente criminalizar e prejudicar diretamente toda uma população e, além disso, expô-la de forma espetacularizada, nas redes sociais.

Já foram 25 dias sem aulas, atingindo em média 8 mil estudantes por dia, além de atendimentos em saúde suspensos. É importante considerar que a construção das referidas unidades habitacionais, definitivamente, não aconteceu do dia para a noite. O processo todo teria se iniciado há cerca de quatro anos. Destacamos que precisam ser pensadas estratégias de regularização fundiária e de habitação calcadas na defesa intransigente dos direitos fundamentais e no diálogo com a população diretamente atingida. Ter como prática recorrente a repressão vem demonstrando, há décadas, não ser uma solução sustentável para os problemas urbanos e habitacionais nas favelas.[2]

O que está por trás das demolições[editar | editar código-fonte]

1. Contexto Histórico e Políticas Anteriores

Formalização do Complexo da Maré

A Maré, composta legalmente por 15 favelas, foi formalmente reconhecida em 1986 pelo Decreto Municipal nº 6.011. Em 1994, a área foi transformada em bairro como parte do Programa de Urbanização de Assentamentos Populares do Rio de Janeiro (PROAP-RIO). O PROAP-RIO, que incluía o programa Favela-Bairro, tinha como objetivo integrar as favelas à cidade por meio de melhorias urbanísticas e a regularização fundiária de loteamentos irregulares. As melhorias previstas incluíam abastecimento de água, esgotamento sanitário, infraestrutura viária e serviços públicos como iluminação, praças e creches. Apesar das melhorias planejadas, o programa não conseguiu resolver de forma significativa a demanda habitacional.

2. Déficit Habitacional na Maré

Apesar dos esforços do PROAP-RIO, a Maré ainda enfrenta graves problemas habitacionais. De acordo com o Censo Populacional da Maré de 2019, a comunidade abriga 140 mil moradores distribuídos em 48 mil moradias, sendo que 35,7% desses residentes não possuem casa própria. A situação é particularmente crítica no Parque União, onde ocorreram recentes operações policiais para realizar a remoção de algumas casas, e onde 53,8% das moradias não são próprias. Esses dados evidenciam um déficit habitacional significativo na região. Demonstrando uma necessidade urgente de habitação.

Vale ressaltar que essa não é uma realidade local, pois estudos recentes promovidos pela Fundação João Pinheiro (FJP) revelam que o estado do Rio possui um déficit habitacional de 544.275 domicílios, dos quais 409.640 concentrados na Região Metropolitana. Além do déficit habitacional, o Estado está entre os maiores que possuem habitações precárias.

3. Políticas de demolições como último recurso - O caso do Parque União

O Parque União está passando por operações policiais para remoção de moradias e construções consideradas irregulares pelo Poder Público, sem diálogo prévio com os moradores. Muitas dessas moradias e construções surgiram como resposta ao déficit habitacional existente e à falta de opções de moradia adequada. A Lei Complementar nº 270, de 2024, introduziu o Capítulo IV do Plano Diretor do Rio de Janeiro, garantindo proteção contra despejos forçados e priorizando alternativas à remoção. A lei estabelece que a remoção deve ser um último recurso, com prioridade para a permanência dos moradores.

4. A Limitação das Políticas Habitacionais no Território da Maré

O território da Maré é atendido por dois programas do Poder Público, são eles:

4.1 Projeto Na Régua – Moradia Digna, Arquitetura Acessível – Política Habitacional Estadual

Este projeto, em parceria com a UERJ, visa regularizar loteamentos e conjuntos habitacionais populares, promovendo a titulação dos imóveis e a inclusão social. O foco está em desenvolver estratégias jurídicas e urbanísticas que garantam o direito à moradia adequada, indo além da simples formalização da posse.

4.2 Casa Carioca – Política Habitacional Municipal

Parte do programa Favela com Dignidade, o Casa Carioca busca melhorar as condições de moradia em áreas vulneráveis por meio de intervenções como troca de telhados, ventilação e adequações sanitárias. O projeto atende famílias em situação de vulnerabilidade, identificadas pelo programa Territórios Sociais.

5. Novos Rumos e Soluções Necessárias

Além das políticas habitacionais locais, como o Projeto Na Régua e o Casa Carioca, o Governo Federal também implementa programas habitacionais que visam ampliar e melhorar o estoque de moradias. No entanto, essas políticas ainda não conseguem atender adequadamente ao déficit habitacional da Maré.

A principal limitação dessas políticas parece ser a incapacidade de abordar as necessidades específicas das favelas em um contexto de vulnerabilidade extrema. Para evitar a perpetuação de demolições e a exclusão social, é crucial que a Habitação de Interesse Social seja discutida de maneira aprofundada no território, priorizando soluções que abordem diretamente as necessidades habitacionais da população local. Isso inclui considerar modelos alternativos de habitação, mecanismos de financiamento acessíveis e uma maior participação comunitária na definição das políticas. Somente assim será possível assegurar o direito à moradia digna e evitar que a população da Maré continue a ser deslocada para a margem da sociedade.[3]

Ver também[editar | editar código-fonte]