Práticas de resistência para enfrentar a violência urbana de gênero na Maré (relatório)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

O relatório “Práticas de Resistência para Enfrentar a Violência Urbana de Gênero na Maré” ouviu 60 mulheres em entrevistas, grupos de conversa e workshops. A pesquisa parte de estudo anterior, também promovido pela Redes da Maré e pela universidade inglesa King’s College London.

Autoria: Redes da Maré.

Introdução[editar | editar código-fonte]

Este relatório apresenta os principais resultados de uma pesquisa realizada como parte do projeto “Resistindo às violências de gênero: construindo dignidades de meninas e mulheres através da resiliência comunitária no Rio de Janeiro.[1]” O relatório tem como foco a análise de dados coletados em entrevistas e grupos focais com mulheres moradoras das favelas da Maré. Trata-se de um estudo interdisciplinar e coproduzido, e uma metodologia participativa para a investigação de práticas de enfrentamento e resistência a violências urbanas de gênero desenvolvidas por mulheres na Maré[2].

O principal objetivo do projeto foi examinar a construção da dignidade e da resistência pelas mulheres em relação às violências de gênero na Maré, e engloba os seguintes objetivos:

  • Avaliar as interrelações conceituais entre resistência, agência e dignidade, em relação a como mulheres lidam com violências de gênero;
  • Identificar práticas formais, informais e criativas de resistência à violência de gênero;
  • Traçar processos e práticas culturais de como a dignidade emerge ao longo do tempo e é gerada entre mulheres que rejeitam a vitimização e se tornam protagonistas, tanto individual quanto coletivamente;
  • Examinar como a história comunitária pode contribuir para a criação de práticas de resistência de gênero e construção de dignidade;
  • Avaliar como processos e práticas de resistência podem ser aproveitados para reduzir a violência de gênero no contexto da violência urbana endêmica, e como preveni-la, desafiando as desigualdades estruturais.

Se, por um lado, as mulheres são alvo de uma variedade inimaginável de formas violência urbana de gênero, também são agentes de enfrentamento desta mesma violência, criando desde pequenos atos diários individuais a atos coletivos e ações políticas estruturais. Em outras palavras, as mulheres criam múltiplas formas de resistência por meio de práticas de curto, médio e longo prazos, de forma individual e coletiva, formal e informal. A pesquisa procurou analisar esses processos na tentativa de contribuir para a tecelagem de uma história, composta pelas linhas de resistência criadas pelas mulheres ao longo de suas vidas – uma memória coletiva – sobre as lutas das mulheres neste território[3].

Este relatório se baseia em 32 entrevistas e cinco grupos focais realizados com mulheres residentes na Maré, com o objetivo de explorar as principais formas de violência urbana de gênero direta e indireta, que identificam as práticas de resistência que elas desenvolvem e as redes que constroem e acessam ao longo de suas vidas. As entrevistas visaram aprofundar as experiências específicas de cada mulher, enquanto os grupos focais foram espaços de reflexão coletiva.

A violência urbana direta e indireta em Maré possui níveis excepcionalmente altos, mas as mulheres desenvolvem práticas de resistência múltiplas e inovadoras para enfrentá-la. Nosso objetivo foi identificar a variedade de tais práticas desenvolvidas por mulheres em um espectro de diferentes tipos – curto e médio prazos, longo prazo, formal, informal, individual e coletivo – apesar de reconhecermos a indefinição ou permeabilidade entre tais categorias. Práticas de resistência podem, ainda, ser reativas a situações emergenciais ou mais transformadoras no enfrentamento a desigualdades racializadas estruturais. Em todas estas práticas, a potência das mulheres é central e definidora.

Marco conceitual[editar | editar código-fonte]

Embora o objetivo deste relatório seja delinear os achados da pesquisa, é importante discutir brevemente sua estrutura conceitual, quanto a uma definição ampla e abrangente de “violências urbanas de gênero” e de “práticas de resistência” de mulheres para enfrentá-las.

O que é violência urbana de gênero? Com a Declaração da ONU, em 1993, para a Eliminação da Violência contra a Mulher, Violência Baseada em Gênero (VBG) se refere a atos físicos, sexuais ou psicológicos de danos contra as mulheres e meninas, que ocorrem nas esferas privada e pública da família, comunidade e Estado, envolvem a ameaça de violência, coerção e detenção arbitrária e podem incluir questões financeiras e emocionais, perpetradas por parceiros íntimos masculinos e de diferentes gêneros e sexualidades, pais, irmãos, avós, parentes estendidos, bem como empregadores.

A Violência Provocada por Parceiro Íntimo (VPPI) se refere a dinâmicas específicas de parceiros do sexo masculino ou violência de ex-parceiros contra suas parceiras, como a forma mais comum de VBG. Feminicídio se refere ao homicídio doloso de mulheres por causa de seu gênero, podendo ocorrer em ambientes privados ou públicos. A violência doméstica é uma forma específica de violência de gênero que também pode ser perpetrada contra homens, crianças ou pessoas com identidades de gênero não-conformistas.

É importante reconhecer que as pessoas LGBTQI+ sofrem níveis desproporcionais de violência nas esferas privada e pública (McIlwaine, 2013; ONU Mulheres, 2015). A violência de gênero pode ser indireta e estar relacionada a formas mais amplas de violência estrutural, institucional e especificamente estatal (Brickell e Maddrell, 2016). Isso é especialmente acentuado nas cidades onde a agressão e a negligência de Estado ocorrem por meio de prestação de serviços inadequada e de políticas públicas ineficazes, o que pode ser chamado de “violência lenta” (slow violence, segundo Piedalue, 2019) ou “violência infraestrutural” (Datta e Ahmed, 2020; McIlwaine et al., 2021).

Uma dimensão-chave das violências de gênero é sua complexidade, multiplicidade e interseccionalidade. Violências de gênero estão enraizadas no patriarcado e em relações coloniais, que se materializam em práticas racistas, socialmente excludentes, sexistas, homofóbicas e transfóbicas. No Brasil, por sua história relativamente recente de escravidão, tais práticas são particularmente persistentes (Carneiro, 2003; Ribeiro, 2017).

As mulheres afro-brasileiras e/ou LGBTQI+, muitas vezes, experimentam a violência desproporcionalmente (Krenzinger et al., 2021; Smith, 2016). Portanto, é importante designar as violências de gênero no plural, como multidimensional e ocorrendo em vários domínios, direta ou indiretamente.

No contexto atual, a violência urbana de gênero se refere a múltiplos tipos sobrepostos de violência direta e indireta experimentados por mulheres. Alguns são motivados diretamente pelo exercício do poder social sobre as mulheres por meios físicos, sexuais e psicológicos (violência de gênero no lar, violência de gênero no espaço público), enquanto outros afetam mulheres de formas que variam quanto ao gênero (violência armada, conflito urbano, violência racial), e outros ainda as atingem indiretamente, mas com vieses de gênero (estigma territorial, violência estrutural, violência simbólica) com a violência de Estado incluída em todos esses indiretamente (ver Quadro 1 neste documento).

O que são práticas de resistência? A resistência à violência se refere a “ações tomadas para combater ou reduzir a violência”, que podem ser atos, momentos ou intervenções (Pain, 2014). Existe um grande corpo bibliográfico sobre formas cotidianas de resistência em geral e especificamente em relação à violência (Scott, 1985; Certeau, 1984). Muitos reconhecem múltiplas táticas de resistência que são formais e informais, encobertas e ocultas, organizadas e desorganizadas ao longo de um continuum (Heredia, 2017), bem como historicamente marcadas por relações interseccionais de poder (Johansson e Vintagen, 2016). Aqui, usamos o termo “práticas” em vez de estratégias (conforme Certeau, 1984), para destacar quando são de natureza mais reativa (Datta et al., 2007; Moser, 2009).

Autoras feministas do Brasil e de outros países há muito tempo exploram a natureza das práticas de resistência (Hooks, 1990), que podem ser individuais e coletivas, respondem a múltiplas formas de violência (Rajah e Osborn, 2020), e implicam atos de resistência passiva e ativa. Enquanto algumas práticas se dirigem a perpetradores individuais de violência por parceiro íntimo, outras se concentram em desafiar condições estruturais mais amplas (Faria, 2017; Fluri e Piedalu, 2017). Em situações endêmicas de violência urbana, pobreza e medo, o surgimento e criação de práticas de resistência podem ser comprometidas (Hume e Wilding, 2020; Zulver, 2016).

Uma ampla gama de tipologias e conceituações captam as respostas de mulheres a violências urbanas de gênero diretas e indiretas. Estas são diversas e contingentes ao tipo de violência de gênero e do contexto estrutural específico (espacial e temporalmente). Desenvolvidas em diversos contextos (Piedalue, 2017; 2019 sobre resistência plural e não violência lenta nos EUA e Índia), muitas tipologias derivam da América Latina, refletindo a longa história do ativismo feminista na região, especialmente no Brasil (Alvarez, 1990; Loureiro, 2020; Maier e Lebon, 2010; Márquez-Montaño, 2020; Martin e Shaw, 2021), como demonstrado a seguir:

Tabela 1 - Relatório
Tabela 1 - Relatório

Este relatório desenvolve um quadro descritivo de práticas de resistência sobrepostas para enfrentar a violência urbana de gênero, que se estendem por um continuum de práticas que vão desde as reativas – que respondem à violência imediatamente – até aquelas que, com o tempo, possibilitam a transformação de processos estruturais e a reformulação da vida de mulheres por meio da resistência. Tais processos permitem questionar estruturas de poder e opressão baseadas em relações interseccionais de gênero, bem como reconhecer as restrições ao direito à cidade que mulheres enfrentam ao lidar com a violência de gênero, em todas as suas formas, em contextos de conflito urbano endêmico.

O marco conceitual deste estudo envolve oito variáveis nas quais diferenciamos práticas reativas e ações de resistência estruturantes e transformadoras, de curto prazo e de médio e longo prazos. Todas as práticas podem ser individuais ou coletivas, emergem e revelam a experiência vivida de lidar e resistir à violência de gênero de modos formais e informais (Figura 1). Elas não estão organizadas em torno de uma dinâmica linear ou evolutiva (i.e., da reação à transformação), mas pela composição e alternância, em diferentes momentos e situações, de aspectos emergenciais e estruturantes. Por isso identificamos “zonas liminais” como fronteiras que obscurecem categorizações aparentemente binárias (Figuras 7 e 8).

Um aspecto-chave subjacente a esta estrutura conceitual é o efeito reativo-transformador que ressoa com o trabalho de Moser (2021) sobre “transformação de gênero”, que envolve, primeiro, atender a necessidades básicas; segundo, capacitar as mulheres para a produção de ativos e proporcionar oportunidades econômicas; e terceiro, buscar mudanças legais, institucionais e sociais coletivamente, para gerar transformações efetivas.

Em termos gerais, o relatório descreve a diversidade de práticas de resistência como respostas à violência multidimensional vivida em escalas que vão do corpo à comunidade, ao estado e além. O individual e o coletivo se entrelaçam e são plurais, especialmente em relação à memória coletiva e ao conhecimento comunitário transgeracional das mulheres, que são fundamentais para a construção da dignidade. O relatório também questiona como práticas de resistência foram construídas em resposta à pandemia da COVID-19. Há evidências de que coletivos feministas intensificaram suas atividades durante a pandemia, especialmente em torno da conscientização sobre a violência doméstica (Ventura Alfaro, 2020 no México). Por isso, este relatório investiga se isso ocorreu na Maré.

Maré em contexto[editar | editar código-fonte]

A Maré é um dos maiores grupos de favelas do Brasil, localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro. O território é afetado por altos níveis de pobreza, desigualdade, crime organizado e insegurança pública, mas também abriga múltiplas lutas, protestos e resistências, assim como uma grande rede de iniciativas e organizações da sociedade civil. A Maré se consolidou entre os anos 1940 e o início dos anos 2000 como bairro, criado formalmente pela Lei Municipal nº 2.119, em 19 de janeiro de 1994. Ocupa quase 4 km2 e é formada por 16 favelas, abrigando cerca de 140 mil moradores, segundo o Censo Comunitário de 2013. A Maré é maior que 96% dos municípios brasileiros e, em relação à cidade do Rio de Janeiro, um em cada 46 habitantes do município reside lá. Enquanto dois terços da população são originários da própria cidade do Rio de Janeiro e residem há gerações na Maré, o restante é de origem Nordestina (Redes da Maré, 2013; Krenzinger e outros, 2018)[4].

Em termos da população, 51% são mulheres e 62% se declaram como pretos e pardos (Redes da Maré, 2013). Mais da metade dos moradores, ou 56% tiveram pelo menos um filho em 10 anos, com 9% sendo mãe ou pai entre 15 a 19 anos de idade. Quase metade das mulheres (45%) são mães solo, o que significa que carregam um peso desproporcional para criar seus filhos, com muitas vivendo em unidades domésticas estendidas. Muitos moradores têm baixos (embora crescentes) níveis de educação e trabalham formal ou informalmente. Na Maré, há mais de 3 mil estabelecimentos comerciais, 50 escolas, sete postos de Saúde e uma unidade de emergência. A prestação de serviços públicos é inadequada, resultando em moradores não conseguindo acessar direitos básicos.

A Maré é dominada por três grupos armados do Rio de Janeiro: duas facções ligadas ao tráfico de drogas, o Comando Vermelho e o Terceiro Comando, e um grupo paramilitar, a milícia. As forças de Segurança do Estado frequentemente fazem incursões letais que resultam em violência sistemática, afetando o cotidiano dos moradores. Foram 71 incursões policiais entre 2018 e 2020, resultando em 58 óbitos (People’s Palace Project; Redes da Maré, 2020). Além das mortes, as Operações policiais violam o acesso a serviços públicos (com o fechamento de escolas e unidades de Saúde), bem como direitos básicos (invasões de casas, danos materiais, assaltos e prisões arbitrárias). Tais ações são rotineiras nas favelas do Rio de Janeiro. Operações policiais, confrontos entre facções ligadas ao comércio varejista de drogas e confrontos entre os grupos armados e as forças de Segurança são a principal fonte de medo, ameaça e violência na Maré (Silva, 2017; Fernandes, 2014; Garmany e Pereira, 2018).

De acordo com estimativas, nacionalmente, 35% das mulheres sofreram formas de violência de gênero (nas esferas pública e privada), 80% das quais foram perpetradas por um atual ou exparceiro (Guimarães e Pedroza, 2015). Uma mulher foi assassinada todos os dias no Rio de Janeiro em 2016 (Krenzinger et al., 2018). Ainda que reconhecendo a subnotificação, mais de 250 mulheres tiveram experiências diretas de violência de gênero todos os dias durante o isolamento social, entre março a dezembro de 2020, no estado do Rio de Janeiro, das quais 61% ocorreram dentro de suas residências (ISP, 2021).

Pesquisas anteriores na Maré (Krenzinger et al., 2018; McIlwaine et al., 2021) mostram que 57% das participantes experimentaram uma ou mais formas de violência direta de gênero no âmbito privado e na esfera pública (34% física, 30% sexual e 45% psicológica), com mulheres negras sendo mais propensas a sofrer violências (69% das mulheres pretas em comparação com 55% das pardas e 50% das que se identificam como brancas). Quase metade (47%) da violência foi perpetrada por parceiros íntimos, com mais da metade dos incidentes ocorrendo na esfera pública (53%). Significativamente, apenas 52% das mulheres que sofreram violência direta de gênero denunciaram ou falaram sobre o ocorrido. Elas recorreram principalmente a canais informais; apenas 2,5% denunciaram a instituições, como a polícia. Ademais, embora os homens sejam alvos diretos, as mulheres também são vítimas nas incursões policiais, fogo cruzado e conflitos, sobretudo sendo impactadas emocionalmente pelo medo e luto que a violência armada gera.

Relatório completo[editar | editar código-fonte]

Ver também[editar | editar código-fonte]

Referências gerais[editar | editar código-fonte]

  1. A pesquisa aqui relatada dá continuidade a pesquisas anteriores realizadas por meio de uma parceria entre Brasil e Reino Unido sobre como a violência de gênero afeta as mulheres brasileiras que vivem em Londres e as que moram na Maré. O primeiro projeto foi desenvolvido entre 2016 e 2018, por meio da cooperação entre King’s College London, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Redes da Maré e o People’s Palace Project da Queen Mary University of London, em conjunto com a Latin American Women’s Rights Service e a CASA Latin American Theatre Festival, tendo sido financiado pelo ESRC e Newton Fund sob a doação ES/N013247/1. O projeto atual é financiado pela British Academy e pelo Global Challenges Research Fund, sob concessão HDV190030 e focado apenas na Maré.
  2. A produção de conhecimento e as decisões sobre a gestão das atividades de pesquisa foram conduzidas coletivamente entre os pesquisadores no Reino Unido e a equipe responsável pela coleta e sistematização de dados no Brasil. Esse processo possibilitou o protagonismo das mulheres da Maré na construção de narrativas sobre seus próprios processos de resistência. A colaboração entre as equipes permitiu que o trabalho continuasse, mesmo diante da eclosão da pandemia de COVID-19.
  3. Quando designamos mulheres como forma de ver a coletividade de mulheres que participaram da pesquisa, não pretendemos generalizar suas perspectivas, mas destacar a semelhança da experiência, reconhecendo as singularidades, exceções e nuances das experiências de cada uma. Também estão incluídas as mulheres trans.
  4. Os dados da Maré apresentados foram extraídos do Censo do IBGE (2010) e o Censo da Maré (2013). Disponíveis em: https://censo2010.ibge.gov.br/resultados.html e https:// www.redesdamare.org.br/ media/ downloads/ arquivos/CensoMare_WEB_04MAI.pdf