Produção Cultural Crítica

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Autoria: Lua Quinellato e Isadora Lopes

Introdução[editar | editar código-fonte]

É de conhecimento amplo que as diferentes formas de se produzir cultura refletem em grande o contexto histórico em que são produzidos, e também ideologias políticas, questões sobre pertencimento e todas as nuances da vida cotidiana de quem as produz.

Nas favelas, isso não seria feito de forma diferente. A forma como, por exemplo : o rap no início dos anos 90 teve um "boom" com racionais mc's, trazendo a tona muitas realidades que eram excluídas ou simplesmente ignoradas pelo estado, tomaram forma de poesia com suas letras, que representavam diversas pessoas espalhadas pelas comunidades de todo o Brasil.

No texto que segue, exploraremos a relação e a influência dos ritmos funk e rap principalmente, na formação da consciência política acerca das pessoas que estão inseridas nesse meio, mas não só elas como a todos em que os ritmos chegam, além de falar sobre a história e popularização dos ritmos, não só como músicas, mas como movimentos políticos, focando no Rio de Janeiro.

História[editar | editar código-fonte]

FUNK[editar | editar código-fonte]

O funk brasileiro, especificamente o funk carioca, surge da mistura de ritmos afro norte americanos, como Jazz, Soul e rhythm and blues (R&B). Quando ele chega ao Brasil, na década de 70, ainda não havia brasileiros que compunham esse ritmo, ou seja, as músicas eram somente reproduzidas da forma que já eram feitas lá.

Além disso, é importante destacar que, quando o funk chega, por ser um ritmo importado, ele é tocado e apreciado também pelas classes mais ricas da sociedade, mas apesar disso esse foi suprimido pela crescente da bossa nova na mesma época. E foi só quando isso aconteceu que o funk começou a adentrar as comunidades, ou melhor, começou a ser percebido , por que começou no Rio de Janeiro um movimento de criar uma arte própria, com inspiração naquele ritmo importado da América do norte.

Foi  durante os anos 80, que os chamados bailes funk cariocas (PALOMBINI, Carlos, 2009) ganharam mais e mais adeptos, trazendo em suas letras situações cotidianas, além de uma batida dançante que logo começaria a ser reproduzida por todo o Brasil, ganhando características regionais a cada espaço em que estivesse.

A história do funk carioca consuma a implosão da mística da interação pacífica entre senhores e escravos, entre o morro e o asfalto, a sala de estar e a cozinha, a modinha e o lundu, que é uma das forças motrizes das narrativas de nossas músicas, eruditas ou populares. A nação que o funk carioca retrata é uma nação dividida. E contudo, na historiografia do funk carioca, o paradigma integracionista predomina.(PALOMBINI, Carlos. Soul brasileiro e funk carioca. Opus, Goiânia, v. 15, n. 1, p. 37-61, jun. 2009.)

Os conhecidos “bailes funk”, como uma forma de expressão cultural e artística dentro das favelas, trazendo lazer e divertimento, além de benefícios para a economia local historicamente são reprimidos pelo estado, com a utilização da polícia militar, trazendo mortes e mais mortes para um evento que movimenta as favelas, falando aqi principalmente do Rio de Janeiro.

Minha cara autoridade, eu já não sei o que fazer

Com tanta violência eu sinto medo de viver

Pois moro na favela e sou muito desrespeitado

A tristeza e alegria aqui caminham lado a lado

Eu faço uma oração para uma santa protetora

Mas sou interrompido à tiros de metralhadora

Enquanto os ricos moram numa casa grande e bela

O pobre é humilhado, esculachado na favela

Já não aguento mais essa onda de violência

Só peço a autoridade um pouco mais de competência

(Rap da felicidade, Cidinho e Doca, 1994)

O funk não é modismo, é uma necessidade

É pra calar os gemidos que existem nessa cidade

Todo mundo devia nessa história se ligar

Porque tem muito amigo que vai pro baile dançar

Esquecer os atritos, deixar a briga pra lá

E entender o sentido quando o DJ detonar

(Rap do Silva, mc Bob Rum, 1996)


Nós é o certo pelo certo

Não aceita covardia

Não é qualquer um que chega

E ganha moral de cria

Na moral de cria, na moral de cria...

De cria...

(Faixa de Gaza, mc Zoio de Gato, mc Orelha, mc Smith)

Morro do Dendê é ruim de invadir

Nóis, com os alemão, vamo se divertir

Porque no Dendê vô te dizer como é que é

Aqui não tem mole nem pra DRE

Pra subir aqui no morro até a BOPE treme

Não tem mole pro exército civil, nem pra PM

Eu dou o maior conceito para os amigos meus

Mas morro do Dendê também é terra de Deus

(Rap das Armas, mc Júnior e mc Leonardo, Bateria da Rocinha, 1995)

RAP[editar | editar código-fonte]

Esse texto foi construído a partir do documentário “O som do tempo: 18 anos de registros do rap carioca”, dirigido por Arthur Moura.

O rap começa a se popularizar no estado do Rio de Janeiro durante a década de 90, sendo nessa época ainda extremamente estigmatizado, considerado coisa de preto revoltado, não sendo nem mesmo considerado música. Um diferencial do rap é que ele já nasce como uma forma de resistência, dessa população que era extremamente marginalizada, a falar sobre as violências que seus corpos sofriam pelas mãos do estado, essa sendo uma violência sistêmica. Foi só muito tempo depois, quando o rap se popularizou fora das comunidades, que ele perdeu um pouco do caráter político nesses espaços, mas sempre sendo usado pelas comunidades e minorias como uma forma de gritar suas próprias realidades.

A primeira organização de rap do rio de janeiro foi o ATCON (atitude consciente), que surgiu com o intuito de unificar todos os grupos das diferentes áreas do RJ, como uma associação de rappers, a fim de manter uma comunicação entre todos. Essa associação vai produzir seu primeiro LP(álbum), que foi intitulado “Tiro Inicial", e trazia produções de diversos grupos de rap de várias favelas do RJ.

    Conforme observamos o contexto histórico do Rio de Janeiro na década de 90, é possível perceber uma relação do mesmo com a rápida popularização do rap nas comunidades marginalizadas, como por exemplo o genocídio que vinha em curso, se materealizando em chacinas, como a da candelária e a de Vigário Geral, que fez com que essa juventude que também fazia parte dos grupos históricamente perseguidos sentissem a necessidade de uma maior mobilização, daí o rap também como um movimento político.

Outra característica importante desse movimento, é o teor popular dessa luta, por ser uma cultura majoritariamente dos guetos, o que também foi exposto durante o documentário, é a clara ligação do rap com uma facilitação na disseminação de idéias tidas como da esquerda radical, mobilizando muitos jovens coletivamente, principalmente jovens negros, que não tinham acesso aos espaços formais de educação a lutarem contra um estado genocida e denunciarem toda a violência sofrida no dia a dia.

    Ao longo dessa história as batalhas de rap, que no início tinham grande sucesso, foi deixando de ser popular entre as pessoas que as frequentavam. A falta dessas batalhas e a falta de espaço na cena, vão resultar na criação do circuito de rodas culturais do Rio de Janeiro, que vai começar a olhar para o estado como um todo, vão surgir rodas culturais por todo o estado. Muitos grupos de rap se formaram durante essas rodas. As mesmas não contam com patrocínio ou qualquer tipo de financiamento, o que as leva a acontecer em lugares públicos, como praças. Essa é inclusive uma característica das rodas. Sempre em um caráter combativo e de resistência contra todas as opressões sofridas, as rodas eram e são lugares de formação.

A repressão ao longo dessa história só aumenta, não só por parte da polícia, que é um grande ponto a se pensar quando pensamos as rodas, mas também a repressão cultural, marginalizando ainda mais as rodas, criminalizando quem as frequenta, principalmente pessoas pretas, das favelas, pessoas periféricas. A violência contra esses corpos é algo estruturante na sociedade brasileira, então quando os mesmos começaram a se apropriar dessa cultura, e denunciar os abusos sofridos no dia dia, o estado intervia e ainda nos dias atuais intervém, por meio da polícia, acabando com as rodas por meio do uso da violência. Um exemplo disso foi quando durante uma roda cultural no Catete, a Polícia Militar apareceu, então um fotógrafo que participava do evento quis registrar a intervenção dos mesmos naquele espaço cultural. A polícia então decidiu encaminhá-lo até a delegacia, e como num ato de protesto organizado, todos que estavam na roda foram até a porta da delegacia exigindo a soltura do mesmo.

Sobre a polícia, essa é a principal instituição repressora do estado, criada como uma forma de proteger os interesses dos grandes senhores de engenho, escravocratas, para mais tarde, durante a república continuar defendendo os interesses da burguesia brasileira, através do uso de força bruta. As rodas e demais eventos de rap, tendo como intuito trazer discussões sobre as realidades nas favelas, desvinculando-se de uma ideologia dominante, sofreu e sofre essa repressão por parte deles de muitas maneiras, fazendo com que muitas rodas deixassem de existir.

As mulheres na cena carioca eram algo muito raro, já que o ambiente era quase que completamente formado por homens, e que também era um meio extremamente machista. Ao longo do tempo as meninas foram chegando, se apropriando de fato do espaço e falando sobre   assuntos que somente elas poderiam falar. Quando as mesmas começaram,elas tinham que “esconder” o lado vaidoso, para serem minimamente respeitadas na cena, até que elas entenderam que não era isso que as levariam a ser respeitadas enquanto rappers.

O rap ao longo do tempo vai sendo apropriado também pelas elites, e isso vai ocasionar em uma“sofisticação”. As produtoras de beatmaker que antes quase não apareciam, agora são como elementos fundamentais. Apesar disso, o gueto continua a produzir de forma independente, não perdendo o rap para essas pessoas, o caráter de luta.

A partir do momento em que há essa elitização do RAP, o que antes era usado como uma forma de subversão e extremamente combativo passa a ter um caráter mais ameno, mais comercial. É o caso do rapper Emicida, que é dialeticamente um artista que critica o sistema ao mesmo tempo que faz publicidades para empresas bilionárias e acessa também esses lugares, como a Globo, a Netflix ou outras grandes empresas.

Concluindo pode-se perceber que apesar da tentativa de elitização de movimentos culturais como o rap e o funk, as comunidades que fundaram os mesmos continuam produzindo como uma forma de externar suas respectivas realidades, não deixando o caráter combativo dos mesmos.

“vejo um menor estirado,alvejado a sangue frio

os bota preta em volta,em cima igual cachorro no cio

cabeça a mil por hora,atrás da caixa d'água

os homens tão lá fora,eu tenho minha peça e mágoa

desde moleque eu sabia que ia morrer igual bandido

já vai valer se eu conseguir levar uns verme comigo

só queria ter dinheiro,uma casa,um carrão

to baleado,sujo de sangue,revólver na Mão

se esses filhos da puta me agarrar,não vão querer prender

vão pegar o ouro,meu dinheiro,depois me fuder

eu já to pronto pra morrer,pode me chamar de louco

tem tiro a vera pros merda,e o último é pro meu coco”

(Funkero, noticias de uma guerra particular,1999)

Eu sou o primeiro e como sempre eu tô inteiro

E se a policia chegar eu jogo tudo no banheiro

E dou descarga e finjo que só tô fazendo a barba

E só vou relaxar quando sai o filha da puta de farda

E sigo em frente mantenho a corrente forte

O coração bate sempre sentido Zona Norte

Represento o hip-hop pesadelo do pop

Eu quero mais é que se foda

Não me importo com ibope

(Planet Hemp, Contexto, 2000)

“De dia se tá no caos e de noite outra realidade

O perigo está aí escapar dele e pra quem sabe

Sirenes, tiros, alguém foi ferido à bala

E o que fala por aí mas quem viu tudo se cala

Silêncio é arma, o céu é calma, e o resto é karma

Todos em casa, madruga é alma, na rua é sarna

Eu conheço cada hora que passa como palma da minha mão

Acho um descuido vou encontrar refúgio ao olhar pro céu com toda atenção

Pq se o céu olhar pra baixo só vai ver sangue no chão”

(Quinto Andar, Madruga,2005)

“Eu digo, cada degrau a gente aprende a sofrer

Viver, morrer, sorrir e a chorar

Chorar pelo passado, pagar pelos pecados

Contando cada sombra no seu sonho atormentado

Acorrentado sei lá, drogado se pá

Enfraquecido, injustiçado, se afogando no mar

Eu to lá, lado a lado com a fé no coração

Nem que pra isso eu amanheça dormindo no chão, meu irmão”

(Edi Rock e Seu Jorge, That's my way, 2012)

Com o passar dos anos, a cena carioca foi trazendo outros nomes.

“Não sei de nada

Meto minha bronca, eu sou criminoso

Preto de gueto, moleque escroto

Pescoço pesa um quilo de ouro

Ando fazendo dinheiro tão novo

Muito dinheiro, dinheiro de preto

Ando negro, falo negro, uso negro

Talvez seja porque eu seja um

Só existe poucos preto' de gueto

Tira o nigga da boca, comédia

Para de copiar gringo, comédia

Já andei em todos beco' do Rio

E nunca vi seu som tocar na favela

Otário racista não entende a revolta

Olha meu olho, você vê a dor

Três da manhã, eu escuto rajada

Eu nasci e sobrevivi sem amor”

(Borges, Preto de gueto, 2020)

Mulher do prefeito em recife, matou uma criança filho da empregada

Pagou 20 Mil de fiança e vai responder em liberdade, que puta palhaçada

20 Mil de Fiança depois de matar uma criança, o Juiz pirou

Nossa vida tá valendo tão pouco assim, ou será que é a nossa cor?

A Lei desse país me dá um ódio, o Júri desse país me deixa irado

Um País em que os advogados e o juiz

São tão culpados ou mais que o próprio acusado

Uma garota de 10 anos é abusada pelo Tio, e engravida

O Tio foragido e a garota grávida, como pode?

A garota quer abortar e a sociedade não deixa

Quer dizer que a Thammy Gretty não pode ser pai

Mais um estuprador pode?

(Jhony MC e Winnit, Não passarão, 2021)


Referências Bibliográficas[editar | editar código-fonte]

  • PALOMBINI, Carlos. Soul brasileiro e funk carioca. Opus, Goiânia, v. 15, n. 1, p. 37-61, jun. 2009.
  • MOURA, Arthur. O som do tempo. Youtuber, 2016. Disponível em:https://youtu.be/v0x3FS17aPQ
  • VALLADARES, Licia. A Invenção da Favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2005.
  • VALLA, V. Educação e Favela. Petrópolis, 1986.