Projetos Sociais e Ongs
Autora: Lia Rocha.
As ONGs (Organizações Não Governamentais), têm sido vistas como “novos sujeitos na cena política”, não apenas nos espaços da favela, mas em toda “a cena política e social nacional e internacional” (Cicconello, 2006). Segundo o IBGE (em pesquisa citada por Cicconello, 2005), em 2005 existiam mais de 338 mil ONGs no país, mas não é possível estimar a quantidade de ONGs que atualmente executam “projetos sociais” no Rio de Janeiro, particularmente em suas favelas e territórios periféricos.
Introdução[editar | editar código-fonte]
A partir dos anos 1990 novas formas de organização coletiva têm surgido dentro dos espaços das favelas: organizações não-governamentais que executam “projetos sociais” nas favelas, grupos culturais, reunindo artistas de diversos tipos, associações de familiares de vítimas de violência em busca de justiça e reparação, etc., representam um novo espectro de formato associativo que tem atuado com maior intensidade. Ainda que com abordagens, pressupostos e intenções variadas, essas novas organizações de moradores de favela parecem gravitar em torno da temática da juventude moradora de regiões periféricas e de favelas. São jovens o público-alvo principal de ações públicas e privadas realizadas nesses espaços que visam o “combate à pobreza e à vulnerabilidade social”, objeto de muitos projetos sociais executados por ONGs. Vale ainda ressaltar que no contexto de criminalização das organizações de moradores de favelas (como as associações de moradores), muitas ONGs têm sido tratadas pelo poder público e pela mídia como interlocutores "confiáveis" para exercer o papel de mediadores com as populações dessas localidades (Rocha, 2013).
Organizações não-governamentais[editar | editar código-fonte]
O termo ONG aparece nas pesquisas oficiais englobando diferentes categorias de instituições, como na pesquisa feita pelo IBGE e divulgada em agosto de 2008. Sob o termo Fundações Privadas e Associações sem fins lucrativos encontram-se congregações religiosas, associações patronais e profissionais, organizações de assistência social, de defesa de direitos (que inclui associações comunitárias, de moradores e de defesa de minorias), entre outras, o dificulta mensurar o real tamanho das organizações não-governamentais que executam “projetos sociais” e que atuam em favelas. Segundo Gohn (2002), as ONGs surgem no contexto da década de 1990, como parte da proposta de organismos internacionais como Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional para o combate à fome e à miséria nos países em desenvolvimento. Assim, a receita para combater tal situação de desigualdade deixa de ser a criação de políticas públicas universalistas como desenvolvimento econômico e educação - ligadas ao paradigma do Estado de Bem-Estar Social, e passa a ser a “parceria” entre governos e sociedade civil organizada na execução de ações governamentais - mais adequado ao paradigma neoliberal em voga. Para que tal atuação fosse possível era necessário um maior grau de institucionalização dessas organizações, visando maior sustentação e reprodução dentro do mercado, isso é, eficácia na prestação de serviços e arrecadação de recursos. Institui-se uma lógica diferente à que orientava os movimentos sociais, que não tinham tais preocupações mercadológicas e, ao mesmo tempo, permitiu que a burocracia estatal fosse diminuída pela transferência de atribuições e responsabilidades às ONGs (Gohn, 2002: 300). Segundo o IBGE, em 2005 funcionavam no Brasil mais de 338 mil organizações, e a cada dia 57 ONGs eram criadas no país. De acordo com dados citados pela Revista, essas organizações receberam em 2007 R$ 1.150 milhões – o que representa uma duplicação dos investimentos sociais feitos no ano de 2001. Ainda segundo dados do IBGE, e computados pela Revista Época, a distribuição das ongs é a seguinte: 24,8% são Congregações Religiosas; 17,8% são entidades de Defesa de direitos (sendo metade associações comunitárias, um terço são associações de moradores e 10% entidades de defesa de grupos específicos e minorias); 17,4% são associações patronais e profissionais; 13,9% são entidades de Cultura e recreação; 11,6% são de Assistência Social; 5,9% Educação e pesquisa; 1,3% Saúde; 0,8% Meio ambiente e proteção animal; 0,1% Habitação e 6,4% outras atividades. Landim (2005) discute dados de 2002 sobre o setor de Fundações e Associações sem fins lucrativos (Fasfil) no Brasil, mostrando como esse tem crescido nos últimos anos (o recorte temporal da pesquisa é de 1996 a 2002), especialmente o setor de desenvolvimento e defesa de direitos, onde se encontra a maior parte das ONGs, segundo a autora (2005: 83). Analisando os dados relativos às fundações e associações criadas mais recentemente, a autora afirma que a maioria é de “vocação territorializada local e de interesse geral (comunitárias e de moradores)”, e de defesa de direitos de grupos e minorias (Landim, 2005: 82). Ela aponta ainda que este crescimento acontece em um conhecido contexto de "(...) redefinição das relações entre Estado e sociedade, as transformações nas modalidades de regulação do laço social, as mudanças no mundo do trabalho e nas formas de solidariedade a elas associadas, o aumento da desigualdade e da desafiliação social, as dinâmicas de descentralização político-administrativas, etc.”. (Landim, 2005: 77). Sobre as ONGs que atuam especificamente junto à população moradora de favelas, cabe fazer algumas observações. A primeira dela diz respeito à composição da organização e, neste sentido, a sua função dentro da localidade. As ONGs que atuam em favelas são muitas vezes classificadas como “de dentro” da favela onde atuam, ou “de fora”. E esta diferenciação implica na legitimidade que possuem para exercerem também papel de representação política (em alguns casos concorrendo com as associações de moradores) ou não. ONGs que ficaram muito identificadas com as favelas onde estão localizadas, como a Central Única de Favelas, o AfroReggae, entre outras, desenvolveram também o papel de mediadoras entre as populações faveladas e os moradores do “asfalto”, através de suas apresentação artísticas e também pela participação em palestras, programas de TV e outros espaços disponíveis. Seus participantes buscam não apenas dar visibilidade ao trabalho que realizam, mas também comprovar – através da apresentação de si mesmos – que “nem todos os favelados são bandidos”. Dessa forma, aproximam estratos sociais que se encontram afastados geográfica e socialmente, e combatem a generalização, “palavra-chave da ‘cultura do medo’” (Novaes, 2003: 153). A segunda observação diz respeito ao objeto da atuação - ou, usando o jargão da área, o “público-alvo”. Ainda que com abordagens, pressupostos e intenções variadas, as ONGs em tela parecem gravitar em torno da temática da juventude moradora de regiões periféricas e de favelas. São jovens os principais participantes de grupos e movimentos culturais fortemente identificados com esses territórios (por exemplo, o funk, o hip-hop, o jongo, etc. ); e são também jovens o público-alvo principal de ações públicas e privadas realizadas nesses espaços que visam o “combate à pobreza e à vulnerabilidade social”. É evidente que tal escolha não é aleatória ou (somente) ideológica: não apenas os jovens são as maiores vítimas de homicídios dolosos no Rio de Janeiro como são também os jovens negros que são identificados como participantes potenciais de carreiras criminosas (Rocha, 2014). Assim, a questão da juventude pobre (desde a década de 1990) é apresentada como a questão da potencial adesão deste grupo etário à criminalidade violenta (Sposito e Carrano, 2003; Abramo, 1997), e a atuação de muitas dessas organizações, as não-governamentais particularmente, passou a ser voltada para “resgatar” a juventude dos riscos dessa adesão. Vale ressaltar que as políticas sociais voltadas para os jovens no Brasil, no geral, enquadram esse grupo como “problema” mesmo quando não são executadas em favelas (Cf. SPOSITO E CARRANO, 2003). No entanto, muitas dessas ações têm por objetivo, direta ou indiretamente, conter o risco real ou potencial que esses jovens de camadas pobres dos centros urbanos brasileiros representam, através de seu afastamento “da rua” e da ocupação de suas “mãos ociosas”.
Projetos Sociais disciplina[editar | editar código-fonte]
Os projetos sociais são a forma através da qual as ONGs atuam nas localidades, executam sua finalidade e também o meio pelo qual buscam seu financiamento. Para além da dimensão documental do projeto social - onde a organização apresenta os objetivos de sua iniciativa, o público-alvo que pretende atingir, os objetivos e o impacto que pretendem alcançar, interessa-nos discutir os efeitos da realização dos projetos nas favelas. Ao longo das décadas de 1990 e 2000 tornou-se comum nas favelas cariocas a presença de “projetos sociais” que tinham como objetivo “tirar os jovens do tráfico de drogas”. A ideia que se reproduzia constantemente era que, através desse tipo de atuação, seria possível "disputar" os jovens moradores de favela com os traficantes de drogas locais, criando “(...) condições de atração da juventude pobre, bloqueando sua cooptação pelos grupos que operam o tráfico de drogas e de armas (...)” (SOARES, 1996: 298). Uma das modalidades em que seria feita essa “disputa” seria através da "inserção de jovens no mercado de trabalho". Todavia, em função da desigualdade social e do racismo estrutural que caracterizam nosso país, o mercado de trabalho que se projeta para o jovem favelado é, na grande maioria das vezes, um mercado informal com relações de trabalho extremamente precarizadas e informais (TELLES, 2006). Nesse sentido, o “empreendedorismo” (individual ou coletivo) aparece como ponto chave no processo de transmutação do jovem favelado de “potencial bandido” em “trabalhador capacitado para o mundo do trabalho” (Rocha, 2014; Leite, 2017). No estágio atual do capitalismo, de reestruturação produtiva e novas formas de acumulação, o empreendedorismo se torna um valor central, ao incentivar que os agentes econômicos sejam responsáveis por seu próprio desenvolvimento. Para alguns autores, contudo, a ideologia do empreendedorismo mascara uma “forma oculta de trabalho assalariado”, através de novas formas de flexibilização de salários, horas de trabalho e estruturas organizativas e funcionais (ANTUNES, 2008:8). Rocha (2014) descreve como, nos projetos sociais, o empreendedorismo é disseminado através do aprendizado de “regras” apresentadas como básicas no mundo do trabalho: como escolher a roupa certa, qual a postura e o vocabulário correto, etc. Assim, seria ensinado o código do vestuário, interditando o uso de shorts, roupas curtas, chinelos; o código do vocabulário, que impediria o uso de gírias; e o código corporal, que orientaria os jovens a não usarem cabelos descoloridos (imitando alguns artistas populares), piercings e outras marcas corporais distintivas. Tais códigos seriam fundamentais para o sucesso na entrevista de emprego, onde os empregadores estariam, segundo os executores dos projetos sociais, avaliando se os candidatos são portadores dessas regras, desse conhecimento. Para a autora, esse aprendizado à princípio pareceria apenas uma tentativa de remodelar o jovem do seu estado “natural” em um estado mais adequado ao novo mundo no qual ele deveria ser aceito. Contudo, observando as características que são identificadas como desejáveis e as que são indesejáveis vemos como há uma forte estigmatização dos traços identificados fortemente como pertencentes a moradores de favelas. Da mesma forma, a caracterização dos jovens moradores de favelas como “público-alvo” dessas iniciativas também parte de uma estigmatização, que vê esses jovens como “em risco social”. Contudo, “no repertório dos projetos sociais” o conceito de “risco social” está quase sempre referido aos jovens moradores das grandes cidades e aos perigos a que estão submetidos por serem agentes e vítimas preferenciais da violência urbana, mas sem clareza sobre que perigos são esses – a adesão ao crime seria um deles, mas não o único (Rocha, 2014). Contudo, os projetos sociais voltados para os jovens moradores de favela não se resumem aos descritos acima. Outras grandes ONGs cariocas - como as já mencionadas AfroReggae, Central Única de Favelas, Nós do Morro, etc. - possuem grandes financiamentos e projetos bastante bem sucedidos no Rio de Janeiro e em outros estados. Essas organizações, especialmente as conduzidas por moradores de favelas e espaços periféricos, elencam entre seus objetivos mudar a imagem das favelas e de seus moradores, o que explicaria o investimento em projetos ligados à cultura: audiovisual, música e outras representações artísticas que dão visibilidade a uma “cultura da favela”. Afirmam que assim ajudam a combater o estigma contra o favelado e o racismo, aumentando a “auto-estima” dessa população, mas também buscam intervir nas dinâmicas locais de violência, com o discurso de “tirar os jovens da criminalidade e do ócio” (AFFROREGAE, 2011). Além disso, adquiriram legitimidade para falar publicamente pelas favelas cariocas, através de seus principais representantes. Tal legitimidade é resultado do sucesso na realização de seus projetos, mas também no fato de apresentarem-se e serem reconhecidos como “o lado bom” das favelas, não envolvidos com o crime (que ajudariam a combater), engajados no trabalho social, representantes da “cultura” das favelas, artistas, etc. Essas iniciativas têm, direta ou indiretamente, relação com a proposta de autorrepresentação defendida por grupos identificados (seja por origem ou afinidade) com espaços e culturas periféricas, e que hoje se torna visível através de iniciativas bem sucedidas como filmes, espetáculos e festivais. Neste contexto, as ações recentes de moradores de favelas para produzir imagens positivas sobre si mesmos e seus locais de moradia inserem-se em uma disputa simbólica que, no limite, determina quem é “de bem” e quem não é, quem pode ser considerado cidadão e quem não pode. Assim, ao articular iniciativas locais de intervenção social, geralmente ligadas à inserção profissional, com a produção de bens culturais que remetem a valorização das favelas e de sua cultura local, esses moradores de favela tentam apresentar-se publicamente (a si e às favelas) como portadores de valor, e em oposição aos traficantes de drogas. Entre essas iniciativas podemos destacar o Museu da Maré (desenvolvido pelo Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM) com o objetivo de resgatar a história da favela e contribuir para o fortalecimento de uma identidade local; o site Viva Favela, criado pelo Viva Rio, mas com a contribuição de diversos moradores de favelas para veicular notícias sobre esses territórios; e por fim o Favela Festival, mencionado acima, e cujo objetivo é mostrar como “(...) A favela, com todas as suas limitações, abre as portas para o festival deixando os problemas de lado e revelando ao mundo que sua música, antes marginalizada, tem grande influência na sociedade atual quebrando de vez o estigma 'favela x asfalto'” (Favela Festival, 2012).
Projetos sociais e “pacificação”[editar | editar código-fonte]
O Programa de Pacificação de Favelas, através das UPPs, esteve fortemente conectado aos projetos sociais e as parcerias com as ONGs. Nesse contexto, o “projeto social” assume a função de um espaço “adequado” para o jovem, porque confinado e supervisionado por tutores: forma de garantir que ele não ficará na rua, em aglomerações consideradas suspeitas, não estará usando ou vendendo drogas durante as horas em que estiver no "projeto", e estará aprendendo “coisas boas”, saindo do ócio e "ocupando sua cabeça". Os “projetos sociais” são espaços de sociabilidade para os jovens em oposição à ociosidade, ou a ficar na rua de forma considerada errante, ou sem objetivo. O “projeto” é, portanto, apresentado como alternativa à rua ou ao ócio, situações que são compreendidas como levando inexoravelmente o jovem ao uso de drogas e ao engajamento em carreira criminosa (Rocha, 2014). Por conta dessa visão positiva que os projetos têm, especialmente no contexto da “pacificação”, a participação no projeto social significa para o jovem uma possibilidade de escapar (ou pelo menos tentar) do estigma que recai sobre os favelados - funcionam como “passaportes simbólicos” (Freire-Medeiros e Rocha, 2013). E no caso de encontros indesejados com a polícia, este “passaporte” também é um meio para (tentar) diminuir a vigilância e a discricionariedade experimentada nessas situações. Assim, os jovens podem dar outro uso ao “passaporte simbólico” que é a participação no “projeto social”, e tentar assim ultrapassar as barreiras tanto fora das favelas quanto internamente (Rocha, 2014; Freire-Medeiros e Rocha, 2013). Assim, projetos sociais articulam diversas expectativas: para os jovens que são seu “público-alvo”, são vistos como atalhos para o mercado de trabalho mas, sobretudo, como "passaportes simbólicos” que permitem fazer a “limpeza moral” das criminalizações; para os adultos (os pais, os professores, a polícia, os empregradores, etc.), funcionam como forma de disciplinamento, controlando o jovem e o tornando mais moldado para o mundo adulto.
Referências Bibliográficas[editar | editar código-fonte]
ABRAMO, H. W. Considerações sobre a tematização social da juventude no Brasil. Revista Brasileira de Educação. N. 5, 1997.
CICCONELLO, A. Novos sujeitos na cena política: uma análise do perfil das ONGs de defesa de direitos e desenvolvimento associadas à Abong. In: ONGs no Brasil. Perfil das Associadas à Abong. São Paulo: Abong, 2006, pp. 07-21.
FRERE-MEDEIROS, B. ; ROCHA, L. M. . Uma pequena revolução: arte, mobilidade e segregação em uma favela carioca. In: Geraldo Ramos Pontes Jr; Myrian Sepúlveda dos Santos; Rogério Ferreira de Souza; Victor Hugo Adler Pereira. (Org.). Cultura, Memória e Poder: diálogos interdisciplinares. 1ed.Rio De Janeiro: Editora UERJ/Faperj, 2013, v. 1, p. 107-119.
Leite, Márcia Pereira. "State, market and administration of territories in the city of Rio de Janeiro." Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology 14.3 (2017).
ROCHA, L. M. Uma favela diferente das outras. Rotina, silenciamento e ação coletiva na favela do Pereirão, Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Quartet/ Faperj, 2013.
ROCHA, Lia de Mattos. "O Repertório dos Projetos Sociais: política, mercado e controle social nas favelas." In: BIRMAN, Patricia et al. Dispositivos Urbanos e Trama dos Viventes: ordens e resistências. Rio de Janeiro: FGV/Faperj (2014): 291-312.
SOARES, L. E. O mágico de Oz e outras histórias sobre a violência no Rio. In: Soares et al. Violência e Política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/ISER, 1996, pp. 251-272.
SPOSITO, M. P. e CARRANO, P. C. R. Juventude e Políticas Públicas no Brasil. Revista Brasileira de Educação. Set/Out/Nov/Dez 2003, pp. 16-39. TELLES, V. da S. Mutações do trabalho e experiência urbana. Tempo Social. São Paulo, V. 18, n. 1, Junho de 2006.