Documentário como ferramenta de luta - Etnografando violações de estado para fora da academia

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Estudo relacionado ao curso Clássicos e contemporâneos sobre favelas, realizado no âmbito do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O curso teve objetivo de debater o lugar das favelas no Rio de Janeiro, estabelecendo diálogos entre estudos clássicos e contemporâneos. Nesta aula, foram debatidos os usos do documentário como ferramenta de luta e de pesquisa.

Autoria: Bruno Guilhermano, Maria Fernanda Maciel, Lucas Carvalho
Documentário como ferramenta de luta: Etnografando violações de estado para fora da academia

Sobre o filme Auto de Resistência[editar | editar código-fonte]

Nesta aula, debatemos os usos do documentário como ferramenta de luta e de pesquisa, recebendo as produtoras Natasha Neri, Juliana Farias e Gizele Martins.

Partindo da produção do filme Auto de Resistência (2018), dirigido por Natasha Neri, que também participa do roteiro e argumento com Juliana Farias, refletimos como o audiovisual serve para expor violações e violências para além do ambiente acadêmico.

O filme trata de casos de violência e mortes por conta da ação policial contra moradores de favelas e periferias do Rio de Janeiro – que, no geral, são pessoas negras –, trazendo a luta das mães daqueles que foram assassinados para o centro de sua narrativa e os desdobramentos de processos judiciais. Nesse sentido, demonstra como essas mortes são vividas como dramas sociais e sentidas cotidianamente entre os familiares e amigos das vítimas. Ao mesmo tempo, mostra como o Estado e os aparatos policiais e penais comunicam as suas ações para o público em geral.

Em termos legais, a expressão “auto de resistência” se refere a prática de um policial que mata um suposto “suspeito” alegando resistência, tendo assim, agido em legítima defesa.

Assim, Auto de Resistência conta a história de diversos casos em que a resistência de vítimas foi afirmada (por vezes, comprovadamente fraudada) por policiais. Entretanto, familiares e, também, os próprios envolvidos, contestam as versões contadas pelos agentes de segurança, buscando e reivindicando por justiça para aqueles que se foram - mas também para aqueles que ainda estão vivos e precisam lidar com as acusações de que seu filho ou parente era “bandido”.

Documentário como ferramenta de luta: etnografando violações de Estado pra fora da academia[editar | editar código-fonte]

Auto de Resistência nasce da agenda de pesquisa das autoras de seu argumento - e que estão envolvidas em diversas áreas de sua produção. Inseridas no âmbito de discussão e trabalho de grupos de pesquisa sobre segurança pública, violência do Estado, favelas, periferias e direitos humanos, Juliana Farias e Natasha Neri tiveram a ideia de fazer um documentário para que as histórias de sofrimento e violência que ouviram fossem para além da academia. “Que impacto minha pesquisa tem? Será que ela muda a vida de alguém? Ou, pelo menos, ajuda em alguma coisa?” Essas são perguntas que um pesquisador/a/e que trabalha com pessoas e suas vidas pode se perguntar. Auto de Resistência é uma boa demonstração de como pensar produtos relacionados às pesquisas acadêmicas para públicos que não se importam com artigos e com grandes debates sobre bibliografias e conceitos. É também uma forma de dar algum retorno para as pessoas, as quais passamos a acompanhar tão de perto à medida que avançamos na pesquisa. É, ainda, uma forma de impactar um público maior e trazer os resultados de um trabalho de tantos anos para a atenção da sociedade - e quem sabe, provocar alguma ressonância.

Em sua fala, no dia 13 de junho, a antropóloga Juliana Farias expôs como suas etnografias com familiares de vítimas ecoaram no roteiro e na montagem do filme - enquanto, no caso de Neri, as suas pesquisas com inquéritos policiais tiveram repercussões na mesma direção. Farias situou que a produção foi iniciada em 2015, em diálogo com movimentos sociais e inspirado em outros documentários. Neri, por sua vez, contextualizou que a produção do roteiro foi dinâmica, afirmando que a montagem do documentário não demandou um roteiro fixo prévio, mas sim planos de filmagem que acompanharam os processos íntimos, relacionais, públicos e institucionais conectados aos julgamentos de policiais e aos sofrimentos das famílias. Com isso, os atos de documentação dos processos sociais registrados foram centrais para que a edição e montagem do filme ocorresse. Esses detalhes denotam diferenças entre a composição de um roteiro e de um texto acadêmico.

A exposição de Neri foi central para a reflexão acerca de variáveis sociais que incidem no trabalho com audiovisual. Dentre elas, destacou a produtora, o fato de ter se tornado mãe alterou as suas próprias sensibilidades e maneiras de enxergar o tema documentado. De modo complementar, ela discutiu como o “fazer cinema” é um fazer hierárquico, ditado por marcadores como raça, classe e gênero (em suas palavras, um lugar que “exige a exposição de sua biografia”, privilegiando homens brancos). Com efeito, explicou como o Auto de resistência foi uma tentativa de se fazer um filme com um coletivo diversificado e olhando para o fenômeno da militarização de perto e de dentro; uma tentativa de manejar as hierarquias machistas, brancas e privilegiadas do cinema, afirmou. Ela associou ainda como a autoria hierárquica do cinema é parecida com a autoria de um artigo científico, de uma dissertação ou tese.

Mais a frente, quando Neri abordou as dificuldades da gravação, destacou a de filmar “a inércia da justiça em contraste com a ação exigida pela produção audiovisual”. Um dos efeitos do documentário, sem dúvidas, é o de demonstrar o descompasso entre processos sociais e processos jurídicos, gerador de angústias e expectativas aos envolvidos. Por outro lado, retratar os “poucos casos que chegam ao júri” também é uma forma de denunciar os mecanismos de exclusão de populações negras no âmbito das instituições judiciais. Outro ponto salientado foi o desafio de abordar a violência sem reproduzir e espetacularizar ainda mais a violência de Estado. E, ainda, “como não reificar esse lugar do cinema que olha para isso tudo com distanciamento racista?”. Havia, também, a necessidade de se dialogar com todos os presentes nas audiências e júris, refletindo processos de negociação e situações desconfortáveis. Todos esses elementos geravam dificuldades, superadas, à realização das filmagens.

Farias, por sua vez, defendeu uma visão crítica de ciência e de trabalho com audiovisual, salientando que não existe pesquisa neutra. Sua experiência com o filme, assegurou, demonstra como a obra em momento algum teve a pretensão de se demonstrar neutra, imparcial, em relação às partes que representa. Juliana Farias, em sua narrativa, pontuou a necessidade de que a validade ética do trabalho esteja na frente da validade científica, valorizando as relações com as pessoas representadas. Desse modo, citou ser um erro achar que tal distanciamento, isto é, a pretensão de neutralidade, de algum modo passa a “validar a pesquisa”, do que pode ser considerado ciência ou não pode. No caso em questão, tratou de levar a sério e de aprender com as pessoas vitimizadas, ou com vínculos com as vítimas, o que é e como pode ser representada a violência de Estado.

A exposição de Gizele valorizou o fato de se pensar como os moradores das comunidades podem participar de processos de pesquisa e de registros audiovisuais. Seu trabalho sobre a militarização da Maré, entre 2014 e 2015, foi citado, mencionando como a favela foi entendida como uma espécie de “laboratório” às experiências de intervenção militar, gerando efeitos e mudanças no cotidiano dos seus moradores.

Nesse sentido, a discussão do encontro suscitou questionamentos sobre como nossas pesquisas nos atravessam, como as fazemos e o que podemos fazer com elas depois que estão finalizadas. Enquanto pesquisadoras, mas também como militantes, Neri e Farias estavam imersas nas lutas das mães, ao mesmo tempo em que precisavam estabelecer constantes negociações com pessoas, que não necessariamente concordavam ou tinham apreço, para garantir que o filme continuasse sendo rodado. Filmar agentes do Estado, tribunais, julgamentos, advogados, reconstituições de cenas de crime, e até mesmo velórios, não é uma tarefa fácil. O exercício de “entrar nas burocracias com as mães” permitiu traduzir afetamentos da violência de Estado através das lentes das câmeras.

O que fazemos e como fazemos para determinadas pessoas falarem conosco? E o que fazemos, enquanto pessoas, para estar nesses lugares e assumir nossas posições perante o mundo – seja como militante, mãe, mulher? Auto de Resistência é sobre esses atravessamentos constantes que vivenciamos quando estamos “em campo” e o que fazemos com eles. No caso de Farias e Neri, elas pegaram os bastidores das estruturas estatais racializadas, enunciando a violência direcionada aos corpos negros e valorizando a batalha das mães dos vitimados pela verdade - com as quais, de certo modo, elas passaram a ter um compromisso ético -, para criar um instrumento de luta política a ser utilizado tanto pelos movimentos sociais quanto por determinados agentes estatais.

Auto de Resistência igualmente provoca discussões sobre a ética na pesquisa. Quais negociações possibilitam a realização de um trabalho? Qual é o limite? Como fazer uma ciência corporificada e que comunique a públicos para além da universidade? Quando trabalhamos com pessoas, temos responsabilidades com elas: o que para os pesquisadores pode ser apenas um trabalho, para elas é uma vida inteira. No entanto, não há um manual de “o que fazer” no trato com nossos interlocutores e nas situações que passamos a estar envolvidos por causa deles. Qual é, então, o lugar das nossas pesquisas diante a tudo isso? Não há uma resposta definitiva. É necessário refletir continuamente sobre o nosso papel nas tramas e lutas cotidianas em que nos inserimos, sabendo que não é apenas uma pesquisa. Estamos em campo interagindo, dialogando e trabalhando como pesquisadores/as - guiados por ferramentas teórico-metodológicas-, mas também estamos como pessoas, guiadas por sensorialidades e sensibilidades. Gerenciar essas duas facetas é uma das coisas que, de fato, aprendemos ao fazer pesquisa.

Debatedoras/es: Bruno Guilhermano, Maria Fernanda Maciel, Lucas Carvalho

Aula completa[editar | editar código-fonte]

Participação de Gizele Martins[editar | editar código-fonte]

Gizele Martins, a terceira convidada da aula, não pôde participar presencialmente desta e enviou a sua contribuição através de um vídeo, argumentando a favor da importância de uma fala a partir de dentro da favela. Ela, enquanto moradora de favela e comunicadora comunitária, pesquisa de dentro dela e assim expõe um lugar de “auto-etnografia”, isto é, molda seu discurso em primeira pessoa, se diferenciando dos que o fazem em terceira pessoa ao falar da realidade social. Essa abordagem participa tanto de sua pesquisa de tese de doutorado, quanto de um filme produzido atualmente junto à Natasha Neri.

Saiba mais sobre Gizele Martins[editar | editar código-fonte]

Gizele Martins é uma comunicadora da cidade do Rio de Janeiro, moradora do Complexo da Maré, e militante dos direitos humanos. Atua na Comissão de Direitos Humanos da Alerj e também no Dicionário de Favelas Marielle Franco.

Clique aqui e conheça Gizele Martins

Verbetes de contribuição de Gizele Martins[editar | editar código-fonte]

Referências bibliográficas[editar | editar código-fonte]

Ligações externas[editar | editar código-fonte]

Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Ver também[editar | editar código-fonte]