Raízes africanas e identidade negra no Carnaval 2025
Nove das doze escolas que formam o Grupo Especial levarão enredos que exaltam personalidades pretas ou histórias e elementos contemplados em religiões de matrizes africanas, como a Umbanda e o Candomblé.
Autoria: Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco a partir de outras fontes[1][2][3]
Escolas do Grupo Especial no Rio de Janeiro[editar | editar código-fonte]
Quando a Unidos Padre Miguel pisar na Passarela do Samba da Marquês de Sapucaí na noite de domingo (02/03), trazendo o enredo ‘Egbé Iyá Nassô’ e a história do Terreiro Casa Branca do Engenho Velho, fundado em Salvador pela ialorixá Francisca da Silva, conhecida como Iyá Nassô, a escola estará reforçando uma tendência que vem marcando os últimos carnavais: a valorização das raízes africanas no Brasil, celebrando a cultura e a resistência do povo negro. Após 52 anos, a Unidos Padre Miguel retorna ao Grupo Especial, e sua escolha temática se soma a outras seis escolas (das 12 que compõem a elite do Carnaval carioca) que também optaram por enredos afro. Além disso, duas escolas homenageiam personalidades negras: a Portela, com o cantor e compositor Milton Nascimento, e a Beija-Flor, que celebra o carnavalesco Laíla.
Embora todos esses enredos compartilhem origens africanas, cada um traz uma abordagem única. A Imperatriz Leopoldinense, por exemplo, mergulha na mitologia dos orixás, narrando a jornada de Oxalá em sua peregrinação para encontrar Xangô. Já a Mangueira vai destacar a Pequena África do Rio de Janeiro, contando a história de resistência dos africanos que foram arrancados de suas terras e escravizados no Brasil. A Unidos da Tijuca escolheu Logun-Edé como tema, um príncipe dos orixás, fruto do amor entre Oxum e Oxóssi. O Salgueiro, por sua vez, apresenta o enredo ‘Corpo Fechado’, inspirado na espiritualidade afro-brasileira. A Paraíso do Tuiuti vai narrar a vida de Xica Manicongo, uma mulher trans nascida no Congo e escravizada no Brasil, considerada a primeira pessoa trans não-indígena documentada no país. E a Unidos do Viradouro, atual campeã do Carnaval, traz Malunguinho, líder quilombola cultuado como entidade afro-indígena, conhecido por ser o guardião das chaves que abriam as senzalas. Aliás, a Viradouro conquistou o título em 2024 com o enredo ‘Arroboboi, Dangbé’, que celebra as serpentes sagradas na tradição africana.
Unidos de Padre Miguel[editar | editar código-fonte]
A Unidos de Padre Miguel homenageia os 200 anos do primeiro terreiro de Candomblé do Brasil, celebrando a resistência e o poder feminino na história de Iyá Nassô. O enredo destaca a importância do Candomblé e a conexão com a comunidade da Vila Vintém.
A Unidos de Padre Miguel, com o enredo "Egbé Iyá Nassô", presta uma homenagem à história do primeiro terreiro de Candomblé do Brasil, destacando a resistência do povo negro e a força das mulheres africanas na luta pela fé e identidade.
O enredo conta a história de Iyá Nassô, uma princesa negra escravizada que, junto com suas irmãs, decide enfrentar a guarda imperial para libertar seus filhos da revolta.
Comemorando os 200 anos do terreiro Casa Branca do Engenho Velho, a escola destaca o papel fundamental das mulheres, tanto no Candomblé quanto na direção da Unidos de Padre Miguel, refletindo sobre a importância do poder feminino nas religiões de matriz africana. Este enredo também reforça a conexão com a comunidade da Vila Vintém, uma "pequena África", conforme dito pelos carnavalescos.
Imperatriz Loeopoldinense[editar | editar código-fonte]
Atual vice-campeã do Grupo Especial, a escola de Ramos mergulha na história dos orixás ao contar a peregrinação de Oxalá para visitar Xangô, quarto alafin do reino iorubá de Oyó, localizado no território onde hoje é o Benim e Nigéria, na África Ocidental.
Com o título "Ómi Tútu ao Olúfon - Água fresca para o senhor de Ifón”, a escola vai contar sobre o desejo de Oxalá em visitar o reino de Xangô, ambos orixás que são reis dentro da cultura de axé.
No entanto, a peregrinação de Oxalá não foi simples. No caminho, ele se encontra com Exú, que é um outro orixá com função de comunicação e mensageiro.
"Quase 50 anos que a Imperatriz não se debruça sobre a religiosa afro-brasileira, então é uma oportunidade da gente celebrar algo que a gente canta e conta pouco, que a história contou pouco. O grande ensinamento que esse itan deixa é a humildade, a virtude do respeito, mas sobretudo a ideia de que não há senhor, não há soberano que não tenha que se curvar diante de ensinamentos que são sabedorias populares", explica o carnavalesco Leandro Vieira.
Unidos do Viradouro[editar | editar código-fonte]
A Vermelho e Branco de Niterói cruza a ponte para contar a história de Malunguinho, entidade afro-indígena dono das chaves que abrem as senzalas. “Eu sou o pavor contra a tirania”, canta o enredo sobre o “rei da mata que mata quem mata o Brasil”.
O enredo "Malunguinho: o Mensageiro de Três Mundos" mergulha na luta por liberdade e resistência, trazendo um forte diálogo entre culturas afro e indígenas.
Segundo o carnavalesco Tarcísio Zanon, Malunguinho é uma figura histórica que sobreviveu dentro do culto da Jurema Sagrada, considerada uma das primeiras cosmologias brasileiras. "É um enredo afro-indígena, um enredo negríndio. Misturamos essas duas culturas dentro de um personagem, não existe nada mais brasileiro.”
Malunguinho se encantou em três entidades: o caboclo da mata, mestre juremeiro e o guardião das encruzilhadas.
O enredo exalta a força da ancestralidade, com alas que homenageiam a mãe natureza e a resistência cultural dos povos oprimidos. A Viradouro promete levar essa mensagem para a avenida e, mais uma vez, conquistar corações.
Estação Primeira de Mangueira[editar | editar código-fonte]
A Escola exalta a herança dos povos bantus e suas influências na formação cultural e social do Rio de Janeiro.
Com uma narrativa que atravessa o tempo, a Mangueira explora a chegada dos bantus pelo Cais do Valongo. “Aproximadamente 80% dos escravizados que desembarcaram no cais eram de origem bantu. Isso influencia não apenas a cultura brasileira, mas a construção sociocultural da cidade do Rio de Janeiro. Principalmente o idioma, diretamente afetado pela cultura bantu, com palavras como ‘xodó’ e ‘quitanda’”, ressaltou o carnavalesco Sidnei França.
A escola reafirma seu compromisso não só com o Carnaval, mas também com a resistência cultural e o engajamento social. "Mangueira não é só uma escola de samba, é uma escola pra vida, uma escola que acolhe", emociona-se um integrante. Com a alma bantu pulsando em cada batida de tambor, a Mangueira promete transformar a Sapucaí em um grande palco de celebração, ancestralidade e orgulho negro.
Unidos da Tijuca[editar | editar código-fonte]
A Unidos da Tijuca elegeu Logun Edé como tema de seu enredo para o carnaval de 2025. Conhecido como "o santo menino que o velho respeita", Logun Edé é filho de Oxum, a água doce, e Oxóssi, o caçador. Este orixá carrega a essência da juventude e a força das tradições, sendo celebrado como um símbolo de esperança e renovação.
“O enredo sempre esteve presente na Unidos da Tijuca, representado pelo pavão em nosso pavilhão, cujas cores, amarelo ouro e azul, remetem diretamente a Logun Edé", disse o carnavalesco Edson Pereira, ao destacar a conexão histórica da escola com o tema.
Ele também ressaltou a riqueza da narrativa de diáspora africana, mencionando as diversas interpretações sobre o orixá pelas nações africanas.
O enredo da Tijuca promete uma homenagem vibrante e cheia de ancestralidade, com a travessia simbólica de Logun Edé da savana africana para Salvador e Rio de Janeiro. Essa narrativa reforça o papel do orixá como o "Rei da juventude do Borel".
A cantora Anitta, uma das compositoras do samba, explicou a importância que o tema traz para a sociedade.
"A cada ano as escolas com seus temas ensinam a sociedade de uma maneira bem irreverente. Eu fico muito feliz que eles escolham esse tema das religiões afro-brasileiras porque ajudam a combater o preconceito. A minha vontade de participar foi justamente por amar meu orixá, honrar e ser muito grata a tudo que eu sei que a minha religião trouxe pra mim".
Beija-Flor de Nilópolis[editar | editar código-fonte]
Com o samba-enredo "Laíla de Todos os Santos”, reconhecido por seu trabalho na história do carnaval brasileiro, o diretor de carnaval Laila, que morreu em 2021, será celebrado por sua contribuição inestimável à escola e à cultura carnavalesca.
O enredo resgata sua trajetória e mantém viva a memória de um dos pilares da Beija-Flor, despertando gratidão e admiração entre familiares, integrantes da escola e amantes do samba.
"Eu acho que o Laila foi um dos maiores sambistas da história do carnaval carioca e do Brasil. É uma forma de homenagear o povo do carnaval, que é feito dessa mistura, dessas pessoas tão talentosas. É uma das histórias mais bonitas dentro da Beija-Flor de Nilópolis", diz o carnavalesco João Vitor Araújo.
O samba-enredo promete celebrar a trajetória de Laila e sua importância na história do carnaval, reforçando o legado deixado por ele na Beija-Flor e no coração dos apaixonados pela folia.
Acadêmicos do Salgueiro[editar | editar código-fonte]
Salgueiro aposta em fé e proteção com enredo sobre magia e encantamento para o Carnaval 2025.
Sob o título "Salgueiro de Corpo Fechado", a narrativa propõe um mergulho nos rituais de proteção utilizados por diferentes culturas ao longo do tempo, incluindo crenças africanas, práticas indígenas e elementos da cultura popular carioca.
Segundo o carnavalesco Jorge Silveira, a proposta do desfile é celebrar a magia e a fé, reforçando a identidade espiritual do Salgueiro.
"Nossa grande tarefa é apresentar na Marquês de Sapucaí grandes rituais dentro da cultura religiosa brasileira, da maneira mais ampla e diversa possível. Queremos buscar a proteção que o Salgueiro precisa para atravessar a maior das encruzilhadas do sambista, que é a Sapucaí", explicou.
O enredo passará por elementos ancestrais, como as benzedeiras, práticas espirituais ancestrais herdadas da África, banhos de ervas e os talismãs trazidos pelos malês durante a Revolta na Bahia, no século 19. Também haverá espaço para figuras emblemáticas da cultura popular carioca, como as ciganas da sorte, pombas-giras e o malandro batuqueiro, que, segundo Silveira, "vem fechando o corpo da escola rumo ao campeonato"
O grupo Mariposas, formado por mulheres da escola, é uma das alas premiadas, com títulos como Estandarte de Ouro e Gato de Prata. "É ser família e gostar de estar aqui, vestindo a camisa de verdade", declarou uma componente.
O desfile também pretende incorporar a diversidade espiritual presente na sociedade brasileira. "A gente precisa se reforçar com essas energias, não só da ancestralidade, mas também com energias holísticas, macumbísticas, evangélicas, de onde vier. A gente tem que se agarrar para seguir. E o Carnaval é a junção de tudo", destacou um membro da escola.
Paraíso do Tuiuti[editar | editar código-fonte]
A Paraíso do Tuiuti promete emocionar e levantar reflexões no Carnaval 2025 com o enredo “Quem tem medo de Xica Manicongo”. A escola contará a história da primeira mulher trans documentada no Brasil, uma figura marcante que carrega em si a resistência e a luta por identidade e liberdade.
Xica Manicongo chegou ao Brasil escravizada, vinda da África. Batizada como Francisco, seu nome e identidade não refletiam quem ela realmente era. Dentro da dura realidade da escravidão, Xica buscou preservar suas práticas religiosas e encontrou refúgio junto ao povo Tupinambá, na Bahia, onde trocou saberes e vivências em um contexto de aprendizado coletivo e resistência cultural.
De acordo com o carnavalesco Jack Vasconcelos, o samba-enredo está sendo construído para tocar profundamente o coração dos brasileiros. “Nós vamos fazer uma viagem carnavalesca em cima dessa figura histórica”, disse.
“O desfile será uma celebração das pessoas [trans], que, como Xica, lutaram para serem protagonistas de suas próprias histórias”, declarou Jack.
A escola terá como destaque a passista trans Daniela Arraio. Para ela, o enredo simboliza uma oportunidade de mostrar ao mundo que a comunidade trans é muito mais do que estereótipos. "Estamos aqui. Somos enfermeiras, professoras... Só precisamos de oportunidades", disse Daniela.
Além do desfile, a Tuiuti planeja transformar a história de Xica Manicongo em um rico material audiovisual, ampliando ainda mais o alcance dessa narrativa que une cultura, resistência e humanidade.
Portela[editar | editar código-fonte]
A Portela, escola da Zona Norte do Rio de Janeiro, vai homenagear o cantor e compositor Milton Nascimento em seu desfile no Grupo Especial.
A apresentação do enredo “Cantar será buscar o caminho que vai dar no sol – Uma homenagem a Milton Nascimento” marca a primeira vez que a Azul e Branca de Madureira vai homenagear um artista em vida.
O enredo é dos carnavalescos André Rodrigues e Antônio Gonzaga. Os dois são fãs do artista. O nome do enredo foi retirado, inclusive, da canção “Nos bailes da vida”, de autoria de Milton e Fernando Brant.
“A Portela entende Milton Nascimento como o grande astro da música brasileira e das brasilidades. Ela parte em procissão, em direção ao grande altar do Sol, para homenageá-lo, abraçá-lo e sermos felizes no carnaval do Rio de Janeiro”, afirmou o carnavalesco Antônio Gonzaga.
A história e importância de Minas Gerais também faz parte do enredo com a Congada e o Reisado. Estandartes da arte popular brasileira também ajudam a contar a história.
Nas ruas de Oswaldo Cruz e Madureira, os portelenses abraçaram a celebração do nome de Milton Nascimento.
Discussões e reflexões[editar | editar código-fonte]
O debate sobre a hegemonia de enredos afro-religiosos e de cultura negra no carnaval de 2025 ganhou destaque após declarações de Luiz Fernando Reis, ex-carnavalesco conhecido por seus enredo na Caprichosos de Pilares nos anos 1980. Ele criticou a "excessiva temática afro-religiosa", afirmando que, embora reconheça a importância do povo negro na história do carnaval e a dívida social com os afro-brasileiros, acredita que o excesso pode ser prejudicial. Para ele, a tendência pode ser um modismo influenciado pelo sucesso recente de escolas como Viradouro e Portela, que venceram competições com enredos afro.
Leandro Vieira, carnavalesco da Imperatriz Leopoldinense, discorda veementemente, argumentando que há uma generalização equivocada sobre as temáticas negras. Ele destaca que cada enredo tem sua singularidade e que as escolas de samba, como manifestações culturais originárias do povo pobre e negro, naturalmente refletem suas realidades e ancestralidades.
Nos últimos anos, escolas com enredos afro têm tido destaque, como Grande Rio em 2022 e Viradouro em 2024, além de vencedoras do Estandarte de Ouro. No entanto, críticos como Aluísio Machado, autor de sambas-enredo do Império Serrano, argumentam que a repetição de temas afro pode cansar o público e os jurados, defendendo enredos mais didáticos e populares.
Luiz Antonio Simas, escritor e jurado do Estandarte de Ouro, defende a diversidade dos enredos, destacando que cada escola aborda aspectos distintos da cultura africana e afro-brasileira. Ele vê as escolas de samba como uma forma de pedagogia popular, capaz de trazer narrativas que fogem à história oficial.
— Os enredos são muito distintos. A gente tem mania de encarar a África como uma singularidade que não faz sentido. Quando você analisa os enredos, vê a Imperatriz Leopoldinense com um mais ligado ao candomblé de ketu, associado a Oxalá. A Unidos da Tijuca vem para o Logun-Edé (de Oxum). Já a Paraíso do Tuiuti dialoga com o Brasil das africanidades com Xica Manicongo, que é completamente diferente dos outros dois — explica Simas. — Acho que as escolas de samba têm o papel de uma pedagogia popular. Então, essas narrativas que fogem à história oficial são muito importantes — enfatiza ele.
Recomendação de leitura[editar | editar código-fonte]