Relatos sobre o cotidiano em meio à violência armada (depoimentos)
As experiências relatadas aqui, a partir de um grupo de pessoas — na maioria mulheres negras — que participou do curso Falando Sobre Segurança Pública na Maré, tratam basicamente de vida, resistência e uma ousada dose de criatividade para enfrentar os percalços de quem vive numa favela carioca
Autoria: Redes da Maré.
Apresentação[editar | editar código-fonte]
Dada a sua localização geográfica, entre as três principais vias da cidade — Linhas Vermelha e Amarela e Avenida Brasil, por onde circulam mais de um milhão de pessoas por dia –, a favela da Maré, com seus quase cento e quarenta mil moradores se impõe no cenário da cidade.
Porém, a forma como essa favela da Zona Norte da cidade é representada, bem como seus moradores, esteve e está pautada por visões marcadas por uma série de preconceitos. Mas isso não é novidade.
Desde o surgimento da primeira favela no Rio de Janeiro, esse “território dos pobres” foi visto com desconfiança. A favela, na verdade, foi e continua sendo tratada como o espaço da não cidade. Um território onde os direitos dos moradores podem ser suspensos e o Estado — que deveria ser o guardião da lei e da Constituição — em nome da segurança pública age, em muitos casos, ao arrepio da lei.
Para discutir o lugar da favela nessa cidade, como a vida é afetada pelas políticas de segurança pública e, a partir daí, desfazer mal entendidos, preconceitos e visões parciais que orientam Estado, mercado e instituições da sociedade civil, é preciso “olhar para dentro” desse território.
Esse movimento, no entanto, não se faz sem conseguir uma aproximação das camadas internas da vida na favela. É justamente nesse sentido que os textos apresentados neste trabalho caminham. Mais do que crônicas, os escritos aqui são testemunhos, sempre na primeira pessoa, de indivíduos que moram, trabalham e vivenciam as dores e alegrias dos favelados.
Depoimentos[editar | editar código-fonte]
Um ensaio sobre o cotidiano das crianças na Maré[editar | editar código-fonte]
Autoria: Kamila Camillo.
Me chamo Kamila Camillo, tenho 30 anos, sou fotógrafa, psicóloga e atualmente moro na Vila dos Pinheiros, na Maré. Minha relação com a fotografia se deu a partir dos 14 anos, onde eu registrava eventos católicos. Desde então muitos processos atravessaram minha trajetória, mas nunca parei de fotografar.
Nasci e vivi minha infância na Nova Holanda, também na Maré, de onde trago lembranças de uma infância feliz em que tive oportunidade de brincar na rua e experimentar a liberdade de ter o território como espaço de diversão. Me recordo de brincar de pique-esconde, pingue- -pongue, pique alto, taco, queimado, subir em árvores, comer frutas do pé etc. Essa liberdade de alguma maneira foi interrompida na minha adolescência, momento em que tomei consciência do acirramento da violência armada e da falta de segurança pública neste território.
Entendo que as imagens apresentadas a seguir revelam o cotidiano de brincadeiras das crianças na Maré, fato que contribui para desconstruir estigmas relacionados à favela e me remetem ao sentimento de liberdade da minha infância. Ainda que essas crianças tenham seu direito de brincar violado pelas várias expressões da violência, a pureza e a inocência resistem.
Militarização e o não direito à segurança pública[editar | editar código-fonte]
Autoria: Arthur Viana.
(...) As mesmas cadeiras, mesmas bundas
Mesmas brincadeiras, as mesmas crianças
Diferentes cadeias, mesmos presos
Mesmo povo, mesma falta de esperança
Por enquanto a bala canta, Raps das Armas
Na sugesta a vala enche, Rap das almas
Enquanto elas são drama queens, rainhas vivem o drama
Da Rocinha ao Queens já superaram o drama
Talvez criação, talvez ação de cria
Talvez falta de ação, seus homens porcaria
Nós somos drogaria que não paga imposto
Nós somos a mancha de sangue e o suor no rosto
Nós somos seu problema, sua solução
Ou então se imaginem sem nós
Somos vulcão, erupção
Suas armas criaram seu próprio algoz
Seu próprio assassino
djonga [heresia]
Introdução[editar | editar código-fonte]
O presente texto tem o objetivo de relatar minha perspectiva sobre o território em que vivo. Sou morador da Nova Holanda, localizada no conjunto de favelas da Maré, o maior do Rio de Janeiro. A partir da minha vivência como homem preto e favelado, percebo que esse espaço é constantemente criminalizado e estigmatizado. Este fato implica diretamente em como é pensada e desenvolvida a política de segurança pública nesse local.
Primeiro apresento uma breve síntese do processo histórico de criminalização da pobreza e estigmatização da população negra e favelada e como esses processos direcionam a política de segurança pública na atualidade. Por fim trago minha análise sobre o que percebo a partir da vivência no meu local de moradia.
Criminalização da pobreza e segurança pública[editar | editar código-fonte]
Foi construído no imaginário popular o discurso de que a violência é produzida nas favelas e áreas periféricas. Nessa perspectiva, propaga-se a ideia de que a violência supostamente produzida nesses espaços é disseminada para o restante da cidade através dos favelados. Percebemos esse discurso no senso comum, na mídia e até nas falas dos governantes do estado. Destacamos uma ocasião de 2007 em que Sérgio Cabral, então governador do estado do Rio de Janeiro, em entrevista ao portal G1se refere à favela da Rocinha como “uma fábrica de produzir marginais”. Em 2016, esse mesmo governante foi preso por recebimento de propina e lavagem de dinheiro. Juntando suas oito condenações, sua pena já chega a 197 anos e 11 meses de reclusão. Sérgio Cabral não era morador da Rocinha ou de alguma outra favela. O fato de ter sido acusado de ter desviado R$224 milhões não o classifica como marginal no imaginário social.
Os atributos apontados à imagem que constitui as favelas reverbera em seus moradores, sendo comparados a indigentes, sujos, criminosos, sem educação, além de outros termos pejorativos. Esse mesmo olhar preconceituoso e tendencioso não foi criado pelas pessoas que residem nesses locais, mas sim pela parcela da população que se beneficia com essa hegemonia discursiva.
Ao estudar a história do nosso país, identificamos que a prática de julgar valores e culturas alheias, baseadas nos seus princípios morais, também foi utilizada para escravizar povos africanos entre os séculos XIV e XIX. Não é coincidência que essa mesma elite escravocrata ainda detenha o poder político e econômico no Brasil.
No artigo 144 da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, o direito à segurança pública está regulamentado como “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”. A partir do que prevê a legislação, levantamos a questão: a quem serve a segurança pública?
Apenas dois meses depois da família real portuguesa chegar ao Brasil, em 1808, foi criada a Intendência Geral da Polícia da Corte e do Estado do Brasil. Entre suas atribuições estavam a limpeza urbana, investigação e órgão de punição dos crimes. Segundo Holloway (1997), no decorrer do século XIX cerca de 50% da população era formada por escravizados ou ex-escravizados. A população negra representava também 99% dos presos julgados, sendo todos nascidos na África. Pessoas brancas estavam oficiosamente “acima da lei”, eram presas apenas em crimes contra o Estado.
Essa lógica punitivista e seletiva na forma de operação do sistema de justiça ainda se faz presente nos dias atuais. Através do Monitoramento da Violência, fruto da parceria entre o portal G1, o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foi relatado que atualmente a população carcerária conta com 704,4 mil presos e o número passa de 750 mil se forem contabilizados os em regime aberto e os detidos em carceragens da Polícia Civil. A capacidade dos presídios é inferior a 416 mil, gerando um déficit de 288.435 vagas. Os dados foram produzidos com base nos 26 estados e no Distrito Federal. Entre os detentos, 61% são negros (pretos ou pardos na definição do IBGE), de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional. Vale lembrar que, segundo o último Censo do IBGE (2010), 53% da população brasileira possuem essas características.
Outra instituição que ganhou popularidade no século XIX foi o Exército Brasileiro. Liderados pelo Marechal Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, que ironicamente também foi apelidado de “O Pacificador”. O Exército foi utilizado para combater as Revoltas Regenciais. Exemplo disso foi a Revolta da Balaiada, que ocorreu entre os anos de 1838 e 1841 no Maranhão. Segundo Jeanne Abi-Ramia (2016) os protagonistas da revolta eram “homens livres e pobres, como vaqueiros, artesãos, lavradores, negros, mestiços e escravos que enfrentaram a ordem dominante, representada por setores como o dos grandes proprietários agrários regionais.
A ação que efetivaram foi uma resposta à violência da sociedade escravista.” Para combater a situação, a Regência enviou ao Maranhão, como Presidente e Comandante das Armas da Província o coronel Duque de Caxias. Ele recebeu o comando de todas as tropas em operação no Maranhão, Piauí e Ceará, assumindo o comando em 7 de fevereiro de 1840.
Calcular com precisão a quantidade de envolvidos não é algo simples, devido à mobilidade daqueles que participavam do conflito. De acordo com números recolhidos em documentos oficiais, seriam em torno de 11 mil no Maranhão e entre seis e oito mil no Piauí. Tal aproximação apenas é possível tomando como referência os dados assinalados pela repressão — mais de seis mil mortos e centenas de prisioneiros.
Destacamos esse período da história pois identificamos uma atuação similar nas ações do Exército Brasileiro nas favelas na atualidade. Podemos exemplificar as missões da Garantia da Lei e da Ordem (GLO) que são realizadas por decreto exclusivo do presidente da República. Ocorrem nos casos em que há o esgotamento das forças tradicionais de segurança pública, em graves situações de perturbação da ordem.
Entre cinco de abril de 2014 e 30 de junho de 2015 as Forças Armadas ocuparam a Maré. O objetivo seria de pacificar a região e estabelecer condições favoráveis à implantação de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Durante os 15 meses, a área onde vivem aproximadamente 137 mil moradores, recebeu mais de 23 mil militares de distintas regiões do país.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2017, foram gastos R$ 529 milhões para a manutenção da tropa, R$ 35,3 milhões por mês, ou seja, R$ 1,18 milhão por dia. Na época, a diretriz ministerial nº 9 orientou o emprego das tropas em missão de GLO.
Afirmar que o Estado não se faz presente nas favelas é uma falácia. O Estado está nas favelas, porém não de forma a garantir e efetivar direitos. Essa relação contraditória, do não pertencimento com as questões do território foi construída historicamente. E afirmada, por exemplo, quando se decide investir R$1,18 milhões por dia em policiamento e não em educação para a mesma população. Não existindo política preventiva, enxergando esses moradores apenas como números e corpos a serem abatidos ou encarcerados. Apenas culpabilizando esses indivíduos, sem questionar o contexto social no qual estão inseridos.
A favelização é um processo muito comum em países em desenvolvimento, devido ao seu crescimento acelerado e desordenado, associado aos problemas de planejamento. O resultado é uma segregação urbana, causando a exclusão social. Com a urbanização da cidade do Rio de Janeiro, que só deixou de ser capital federal em 1961, muitos postos de trabalhos foram abertos, influenciando a migração de áreas rurais em direção a áreas urbanas.
Pensar a favela como pertencente à cidade vai além dos termos geográficos. É preciso reconhecer que a história das favelas é a história da cidade. A estruturação de favelas se deu em resposta à falta de propostas habitacionais na época. Houve muitas remoções, principalmente no Centro da cidade e na área da Lagoa Rodrigo de Freitas. A favela Nova Holanda, por exemplo, foi concebida como um Centro de Habitação Provisório em 1960. Abrigando moradores da Favela do Esqueleto, Praia do Pinto, do Morro da Formiga e do Morro do Querosene.
A proposta seria que esses moradores que residiam de forma provisória na Nova Holanda fossem realocados para conjuntos habitacionais permanentes — como Vila Kennedy, Cidade de Deus etc. Eles seriam responsáveis por pagar o apartamento, mas como não tinham condições, acabaram ficando. Devido ao racismo estrutural advindo do período de escravidão, a população negra está concentrada nas favelas e periferias, espaços que sofrem em seu cotidiano violências e violações, fruto da política de segurança pública.
Considerações finais[editar | editar código-fonte]
A partir das reflexões realizadas ao longo do texto, destaco que se existe uma parcela da sociedade que tem assegurada o direito à segurança pública, essa população não é a população negra e favelada.
O Brasil atualmente possui 12 milhões de pessoas morando em favelas, que movimentam anualmente R$ 64,5 bilhões. O Instituto Data Favela revela em sua pesquisa que, só no Rio de Janeiro, são 2 milhões de favelados, movimentando R$12,3 bilhões anualmente, refutando o discurso de que as favelas são carentes e precárias por excelência. E boa parte desses recursos não são direcionados à própria população. O maior investimento do Estado nas favelas é de uma segurança pública que não serve a esses moradores.
Só em 2018 foram destinados a gastos com segurança pública no Rio de Janeiro R$12,85 bilhões. Boa tarde desse dinheiro não foi destinado à inteligência da polícia ou preparo dos agentes de segurança pública. Infelizmente, vivemos sobre uma ótica de colocar cada vez mais oficiais nas ruas, despreparados e com a imagem estabelecida de onde residem os inimigos sociais.
A partir da minha vivência no território, afirmo que não existem fábricas de armas aqui. Essas armas não são produzidas nas favelas. Seria mais fácil interceptar essas armas antes que chegassem ao território. Minha percepção é que existe uma inapetência estatal, não é interessante acabar com a dita violência. Esse discurso de “guerra às drogas” é lucrativo para alguém. A venda de armas e munições, seja para o Estado ou para os grupos armados, vem movimentando dinheiro. Encabeçando as munições mais utilizadas pela polícia, a munição de .40 S&W custa em média R$4720 no Brasil, segundo o Portal da Transparência a Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC).
Nessa sensação produzida e legitimada diariamente sobre a insegurança e tempos violentos, a segurança privada se tornou um mercado. São câmeras, carros blindados, seguranças particulares e cercas elétricas. O direito ao patrimônio continua mais importante que o direito à vida no Brasil.
Nos primeiros 90 dias de 2019 foram registrados 434 mortes envolvendo ação policial. Índice mais alto dos 83 trimestres registrados desde 1988, quando passou a ser contabilizado. O levantamento foi feito com base nos dados do Instituto de Segurança Pública (ISP). O Rio de Janeiro é o estado que lidera a taxa de mortes por agentes de segurança pública. Em 2018 foram 1.534 vítimas, correspondendo a 25% das mortes cometidas pela polícia, como apresentam os dados do Núcleo de Estudos da Violência da USP. A taxa é a mais alta registrada no estado desde 1998. A pesquisa mostrou também que o número de policiais mortos sofreu redução de 18% no período: foram 374 oficiais assassinados em 2017, contra 307 em 2018. Mesmo sobre esse contexto histórico e social, há quem diga que vivemos em tempos de impunidades. Que o país com a terceira maior população carcerária do mundo, prende pouco. Que a polícia que mais mata no mundo, mata pouco. Afinal, quem são esses corpos matáveis que não geram comoção?
Atravessamentos cotidianos[editar | editar código-fonte]
Autoria: Fernanda Viana.
Sou Fernanda, mãe solo de três filhos. E venho aqui compartilhar um pouco das minhas vivências no local que moro a partir de fatos do meu cotidiano.
O sol atravessa a cortina, levanto e coloco as blusas, as meias, e as mochilas no sofá. A água enche a leiteira e logo a água ferve. Os dentes e os rostos sonolentos já foram lavados. No cabelo da menina eu passo uma escova e prendo com uma xuxinha verde. Tiro algo do congelador para o jantar e coloco em cima da pia, como de costume. É hora de ir. Fecho a porta, coloco a chave dentro do mesmo vaso de planta, aquele bonito, onde as flores só despontam em setembro. E saio já pensando em tudo que terei que fazer antes do por do sol. As tarefas a serem realizadas no trabalho, a ida ao supermercado na volta para casa, o pagamento de algumas contas. E ao retornar à casa, auxiliar as crianças no trabalho escolar, haja vista que o prazo não costuma ser longo. Depois de levá-los à escola, pego “minha reta” para o trabalho, e tomara que a condução não passe por fora e eu chegue no horário.
No auge da minha programação mental, por uma fração de segundos, meus pensamentos são roubados por um silêncio ensurdecedor. Logo na hora em que deveria estar passando o carro do ovo e ouvindo o senhor, que bate no botijão de gás e grita: “olha o gás, olha o gás”. No entanto, os mesmos não deram sinal de vida. Nem as crianças da educação infantil, que mesmo estando na metade do ano letivo ainda choram para ir à escola de manhã, não passavam. Abro a porta que acabei de fechar, vou à janela e ouço que estouraram fogos, bem no momento que coloquei o rosto para fora. Um seguido do outro. E vinham da esquina. A rua estava completamente deserta, ouvia-se apenas o barulho dos fogos e o cinza da fumaça adentrava a janela. Enquanto eu buscava o celular para saber se alguém já tinha postado algo nos grupos escolares de Whatsapp, que é onde nos comunicamos sobre, as crianças sentadas no chão, entre os sofás, já tiravam os sapatos. Mais um dia sem aula para engrossar os 35 da lista anual. Mais uma falta injustificada, que me descontará aquela importante parcela de uma compra a prazo. Mais um dia de pânico. Mais um dia onde seremos mostrados pela mídia seletiva de uma forma tendenciosa, onde vão tentar justificar o injustificável, acalentar o que não tem acalanto.
Minhas crianças choram com o som dos tiros cada vez mais próximos, e os homens dos helicópteros parecem que querem recolher as roupas do varal, de tão próximo que estão da laje da minha casa. Balas e armas de guerras, neste momento, voam de um lado para outro, de cima para baixo. Independentemente do que possa dizer qualquer mídia, sabíamos que aquele dia seria um dia perdido. E sempre esperamos que ao final dos dias perdidos, vidas não se percam. Em uma operação policial em território de favela, as leis, normas, regras e protocolos não são respeitados pelo Estado. Uma questão que deveria deixar qualquer cidadão da cidade indignado. O apelo pela vida não pode ser em vão. É difícil explicar aos filhos como o mesmo Estado que aumentou o número de escolas de 19 para 45, inviabiliza seu acesso em decorrência de operações policiais. Assim como os serviços prestados nos postos de saúde da região. O Estado decreta guerra a este espaço quando determina que para atuar aqui, medidas extremas e o não seguimento de normas podem ser estabelecidos. Condenando toda uma população à marginalização, que a vê como causadora de problemas de ordem pública.
É difícil explicar aos filhos que a indústria internacional de armas movimenta milhões e que nós somos vistos pelo Estado como exército inimigo. É muito difícil explicar aos filhos que a insegurança pública, decorrente de operações, é um problema de todos. Mas que nem todos se importam com o que acontece aos moradores do lado de cá da Avenida Brasil. Fechar os olhos para violações em decorrência de operações policiais é uma atitude cômoda. Assim como não questionar o modo como armas e drogas, que nem aqui no país são produzidos, chegam a este espaço. E quem são os atores que se beneficiam com todo esse ambiente de guerra às drogas? São questionamentos que faço enquanto sentados no chão entre um sofá e outro tentamos sobreviver. E quando os carros e helicópteros pretos, que mais parecem caixa de matar gente, vão embora, deixam medo, incerteza e dor. Como se neste lugar da cidade os moradores não fossem gente. Naturaliza-se assim a barbárie e o genocídio de um povo. Como se suas vidas não importassem. Como se para este lugar não houvesse leis e que o Estado tivesse licença para matar. Onde a “brincadeira” do dia fosse de tiro ao alvo, só que com a vida dos moradores. Que são tão cidadãos, quanto os que moram em outros lugares da cidade. Pegamos todas as nossas dores e medos e transformamos em garra, em luta, em vontade de mudanças para uma política de segurança pública, onde de fato nos traga segurança e não atravesse nossas vidas de forma tão violenta, que respeite a vida e trabalhe com inteligência. Para que nossas vidas não se resumam em resistir e sobreviver entre uma barbárie e outra.
Sobreviver em um lugar onde a sociedade julga morar pessoas desumanizadas e participantes de toda ilegalidade, e com isso, não ter seus direitos resguardados, não é fácil. E o mais difícil ainda é ter que explicar aos filhos a inércia, pouco caso ou apatia de toda a sociedade em relação às violações de direitos que ocorrem aqui. Explicar como a sociedade, de um modo geral, se comove com assassinato de crianças, no entanto, jovens negros estão sendo “genocidados” sem que haja nenhum tipo de comoção, é muito cruel.
Instituições como a Redes de Desenvolvimento da Maré vêm construindo ao longo da sua existência, perspectivas, possibilidades e protagonismo do morador na disputa de narrativas e no acesso à cidade. Não somente se entender como sujeito de direitos, mas também se entender como pertencente à cidade — e, por isso, reivindicador de direitos, inclusive ao de morar na favela e ter a cidadania em sua plenitude — é muito importante. Pois, para quem nasceu e foi criada em favela, ver os meninos que cresceram, estudaram e fizeram algum tipo de atividade ficando pelo caminho, ir ao enterro de jovens negros e dar pêsames a mães periféricas, infelizmente, é rotineiro.
Vidas faveladas importam: uma reflexão sobre a segurança pública nas favelas[editar | editar código-fonte]
Autoria: Patrícia Vianna.
Trabalho em favelas há mais de trinta anos, e cada vez mais me apaixono pela diferente rotina do dia a dia nestes espaços. Nasci em Juiz de Fora, Minas Gerais, mas saí muito pequena de lá e morei em outras cidades com a minha família, até que vim para o Rio, na Tijuca, quando tinha nove anos de idade. Quando me casei, aos 24 anos, morei por uns anos em Petrópolis e voltei para o Rio um ano após a minha separação. Desde então, vivo na Tijuca. Vivo não; moro lá! A minha vida, nos meus últimos 18 anos, realmente tem sido na Maré.
Muitas pessoas que eu conheço me perguntam se eu não tenho medo de trabalhar na Maré porque leem ou escutam, com muita frequência, coisas violentas que acontecem aqui. Infelizmente, isso é verdade, mas apenas parte da verdade. Aqui na Maré acontecem coisas maravilhosas também. Quem não está aqui no dia a dia, só fica sabendo da ausência, da carência, da violência e não tem ideia de como este é um espaço rico em muitas coisas, tais como: diferentes culturas, variedades gastronômicas, maravilhosas maneiras de se divertir, muita solidariedade entre as pessoas e um lugar com muito potencial. Onde moro, pouco conheço meus vizinhos. Não sei das dificuldades que eles passam e muito menos se precisam de alguma ajuda. Nas favelas, todos se conhecem e, quando acontece alguma situação complicada, muitos correm para ajudar. Você sabe que sempre terá o apoio de alguém. Enfim, é um lugar muito gostosode se viver, “apesar de”, como disse Clarice Lispector.
Em relação à questão da violência, não deixo o medo me paralisar. Penso a todo instante que tenho um compromisso ético com essa população e não posso deixar esse sentimento me invadir e me impedir de atuar, mesmo nos momentos mais tensos. Vejo que, também, muitos moradores e moradoras entram em pânico quando há confrontos, tanto entre grupos civis armados, quanto entre a polícia e estes grupos, embora eu perceba que o desespero maior é quando há operações policiais. Ninguém se acostuma com a violência! E não é para se acostumar! NUNCA! Todos os dias, a população das favelas e periferias sofre, mas resiste. Ela luta com toda sua força para que a vida não tenha mais violência ou, pelo menos, diminua. A esperança é a última que morre!
Talvez seja melhor fazer um relato de uma das múltiplas histórias arrasadoras do nosso dia a dia na Maré, para que você compreenda o que estou querendo dizer:
O dia amanhece e a claridade vai tomando conta dos pequenos espaços de cada casa de uma das estreitas ruas da favela. A mulher, como em muitas dessas casas, é quem acorda primeiro e vai providenciando os primeiros movimentos daquela família. Ali moram a mulher, seus três filhos, uma amiga e um sobrinho, filho de seu irmão. É hora das duas crianças mais novas se levantarem para colocar o uniforme e ir para a escola. Não podem perder a hora, senão ficam sem o café da manhã oferecido pela escola e só vão poder comer na hora do almoço, também oferecido pela escola. O mais velho parou de estudar no ano anterior, porque repetiu duas vezes a quarto e a quinto série do Ensino Fundamental, e se desinteressou completamente em continuar seus estudos. O sobrinho trabalha no comércio como vendedor de uma loja que fica bem próxima da sua casa. Mas como só trabalha à tarde, pode dormir um pouco mais e, como todos dormem num mesmo cômodo, as crianças procuram não fazer muito barulho para não acordar os outros. A mãe trabalha em uma instituição social dentro da Maré e também precisa se apressar para não se atrasar. A amiga se levanta para ajudar as crianças a se arrumarem e sai à procura de um trabalho. Ficam em casa o filho mais velho e o sobrinho. As ruas e vielas vão ficando mais 37 movimentadas e as vozes das pessoas vão sendo cada vez mais audíveis. O menino de oito anos leva a irmã de seis para a escola dela e segue o caminho para a sua. A dois quarteirões da escola escuta barulho de fogos, aparentemente vindo de um lugar bem próximo. O menino não sabe para onde correr e lembra-se da casa de um amigo naquele quarteirão. Corre, abre o portão e... tiros... muitos tiros. Quando a mãe do amigo abre a porta de casa, vê o amigo do filho caído no chão. Seu corpo, ainda quente, já estava sem vida. A mulher grita enlouquecidamente e chora sem parar. Os vizinhos não sabem o que fazer. Os tiros param. Mas não tem nada mais que se possa fazer. A favela inteira chora. Mais uma criança morta por causa de uma guerra insana. Mais uma família estraçalhada. Como dizer para a mãe, para os irmãos, para os amigos, que essa criança partiu e não voltará nunca mais? Ele foi brutalmente arrancado de suas vidas!
A cada dia morremos um pouquinho, vamos perdendo a alegria de viver e tentando recuperá-la a todo instante. Nos dias seguintes de uma tragédia como essa que relatei, vejo moradores e moradoras tentando continuar sua vida, torcendo para que seja um dia mais tranquilo, sem confrontos, sem violência, sem desrespeito, sem barbáries. Que seja apenas um dia NORMAL!
Na instituição em que trabalho temos projetos que certamente contribuem para que a população das favelas possa conhecer melhor seus direitos e exigir do Estado o mesmo atendimento e cuidado que existem em qualquer outra parte da cidade, seja em relação à saúde, à educação, à moradia e também à segurança pública. Nossas crianças deixam de ter aula pelo menos 15% dos dias letivos todos os anos, por conta da violência. Isto sem considerar que o ensino nas escolas da Maré não tem a mesma qualidade que as escolas localizadas em outros bairros da cidade. Acontece com muita frequência o desestímulo de crianças em continuar nas escolas, especialmente quando elas se deparam com dificuldades de aprendizagem que, infelizmente, não são resolvidas e só aumentam com o passar dos anos. Consequentemente, a criança repete de série uma, duas, três vezes, até que desiste de estudar. Como podemos garantir que essas crianças terão, no futuro, as mesmas oportunidades e condições que qualquer outra? Tentamos mostrar à sociedade, especialmente às pessoas que não circulam nesses espaços, que é responsabilidade de todos não permitir que essa desigualdade absurda permaneça.
Há possibilidades de mudança? Essa é a pergunta que me faço todos os dias. Sim, acredito que algum dia, em algum momento, o Estado vai entender que essas operações “enxuga gelo” não irão melhorar e muito menos resolver a situação em que nos encontramos. Avalio que as soluções não estão dentro da favela. Sabemos que as armas e drogas vêm de fora e que são necessárias ações inteligentes, bem planejadas. Alguém realmente acredita que os “grandes” traficantes estão dentro das favelas, que sejam esses pobres e negros cotidianamente assassiados? Não sou uma pesquisadora especialista em segurança pública, mas me parece que outras ações, como por exemplo fiscalização nas fronteiras terrestres, marítimas ou aéreas seriam muito mais eficientes e eficazes. Acredito que se nossos governantes quiserem mudar esta situação, eles têm condição. Sei que não deve ser simples, que deve ser bastante complexo, pois há várias questões envolvidas, especialmente questões políticas e de interesses pessoais e corporativos.
Mas sim, ainda assim, acredito que seja possível!
Ele, simplesmente ele![editar | editar código-fonte]
Autoria: Shyrlei Rosendo.
Ele? Negro, jovem, morador de favela.
Ele? Um sonho, uma possibilidade de vida.
Ele? Um menino com idade de menino,
Obrigado pela vida a se fazer homem antes do tempo.
Ele? Uma dor, com uma ferida exposta.
Ele? Um menino que o pai, o Estado roubou-lhe à vida.
Ele! Ele!
Mil vezes ELE!
Uma força!
Um brilho nos olhos!
Uma coragem!
Um amor traduzido em gente que o Estado tenta destruir.
Mas, ele é Ele!
Maior que todas as forças,
Maior que esse Estado.
Ele? Um menino da Maré que a vida o aguarda para ensinar
[e fazer brilhar.
Insegurança pública[editar | editar código-fonte]
Autoria: Flávia Cândido.
Sou Flávia Cândido, mãe solo de três meninos, feminista negra, moradora da favela da Maré desde quando nasci, estudante de Letras na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), ativista de direitos humanos e atualmente trabalho como assessora parlamentar.
A violência dentro das favelas ganhou proporções inacreditáveis com o passar dos anos, após vários governos que não exerceram uma segurança pública preventiva e optaram por desenvolver ações abusivas com o discurso de “guerras às drogas”. Há trinta anos vejo o governo, que deveria ser responsável por garantias de direitos, fortalecendo com suas operações policias as perdas de escassos benefícios.
Não houve testemunhos sem lutas. Os movimentos sociais, as ONGs e moradores da Maré sempre foram resistência. Algumas pessoas acreditam que a frase “Maré Resiste” é algo romantizado, mas a força de um favelado “mareense” é diária. Parece algo surreal ter um governo que não visa o desenvolvimento educacional para as crianças e os adolescentes da favela. Os impactos causados pelas operações policiais são sempre negativos, cerceando o direito dos moradores, trazendo implicações diretas para quem vive ou atua no território.Efeitos imediatos acabam ocorrendo em dias de atuação policial, estas quebras na rotina impedem o acesso à escola, ao posto médico, o retorno para casa, perde-se totalmente o simples direito de ir e vir.
O cotidiano de uma família favelada é de perseverança, e ser mãe dentro deste contexto é lutar todos os dias e passar para os filhos a credibilidade que um favelado pode ser otimista. Não é fácil ter que procurar escolas longe da sua residência para que seu filho tenha garantia de ter aulas todos os dias sem ser interrompido por uma incursão policial. Estudar fora do seu território não significa estar livre dessa metodologia abusiva. Escutar relatos de um filho sobre como ele sentiu medo quando “o águia” estava dando voos rasantes no horário que ele estava no curso preparatório, saber que seu filho de apenas 15 anos “tomou uma geral” da PM com direito a um “pedala” antes de ser liberado.
Pode parecer mentira, mas é algo comum acordar ao som de tiro, escutar o barulho medonho que faz o blindado, e saber que é período de prova e seu filho não irá à escola. Ou que seu filho vai para a aula e meia hora depois começa uma operação, uma incursão policial que dura mais de doze horas. É fundamental ter amigos que vivem fora da Maré neste momento, pois são eles que acolhem minhas crianças. Essa é a minha rotina e de muitas mulheres em dias que o governo resolve atuar “contra às drogas”. Entretanto, a atuação é contra a educação, contra o direito de ir e vir, contra o direito de aprender.
O acolhimento aos filhos após as opressões feitas pelo Estado é sempre doloroso. Conversar e tentar amenizar o sofrimento dos seus em relação aos abusos é um exercício difícil, falar sobre resistência nesses momentos é sempre com um grande nó na garganta, fazer a aflição vivida por seus filhos não se tornar revolta é a vitória nessas ocasiões.
Só que o Estado é cruel com seu “trabalho” desenvolvido na segurança pública, as balas perdidas acham corpos com menos de 15 anos de idade, na favela da Maré e em várias outras do Rio de Janeiro. Mulheres como eu enterram filhos como os meus. É preciso ter sabedoria para informar esses tipos de ação, é preciso dizer que temos que resistir e sobreviver.
Será justo o estado do Rio de Janeiro viver um apartheid? É certo ter que explicar para meus filhos cotidianamente que todos somos iguais como cidadãos, porém o governo trata as favelas como zona de guerra e deturpa os valores dos direitos humanos? É fato que numa guerra os dois lados estão em combate, mas quem está morrendo de fato são os favelados e favelados jovens com idades semelhantes a dos meus filhos. 43 Seguimos diariamente lutando contra a opressão da insegurança pública, fazemos do luto dos nossos um enfrentamento, buscamos uma rede de apoio e resistência para termos lazer, cultura, educação, saúde, porque somos dignos desses direitos.
Lutar por justiça e igualdade faz parte da minha vida desde os 13 anos de idade. Atuei em vários movimentos fora e dentro da Maré, atuação partidária e não-partidária. Fazer parte de movimentos que buscam melhorias para os territórios favelados e periféricos é fundamental para me revigorar após uma violação. O Núcleo Marielle Franco (do qual faço parte há quatro anos) e o Fórum Basta de Violência da Maré (que participo há dois anos) são fundamentais para o meu fortalecimento.
É um desafio corriqueiro para quem mora em favela criar seus filhos e lidar com este tipo de realidade. São incontáveis os dilemas que precisamos enfrentar para levar uma vida minimamente “normal”.
A segurança pública e a máscara por trás da "pacificação" promovida nas favelas[editar | editar código-fonte]
Autoria: Kananda Ferreira.
A negligência do Estado dentro das favelas no cumprimento de direitos provém desde o seu surgimento, passando por diversas tentativas de remoção, criminalização e chacinas cometidas por agentes públicos (que são homenageados ou promovidos). De lá pra cá, o tempo passou, mas essa omissão tem se mostrado cada vez mais explícita quando se trata de segurança pública nesses espaços. Um direito constitucional e impessoal que deveria ser estendido não só para o asfalto, mas também para quem vive nas favelas.
Entretanto ele se distancia cada vez mais através da inserção de uma política de controle social em prol de interesses políticos, econômicos e sociais. Uma ausência que se tornou uma presença desastrosa, cuja pacificação entra com balas perdidas e sai com corpos achados em nome da lei e da soberania nacional.
Uma segurança momentânea que, na prática, transformou o Rio em um laboratório cujo conceito de “guerra” foi inventado para legitimar o uso da força através da violência como uma “solução”, cometida na retirada de direitos fundamentais nas periferias e na projeção da sociedade do medo. As incursões policiais (com o uso de caveirões, snipers, helicópteros com atiradores e armas bélicas pesadas) colocam o policial como o “julgador e executor” da lei e estimula uma série de violações e execuções de pessoas (sejam envolvidas ou não com o comércio varejista de drogas).
A desumanização dessas vidas, concretizada ainda mais dentro das instituições da Polícia Militar pelo ensino, se dá pela tortura como um modo de extração de uma verdade e pela não realização das perícias para elucidação e investigação das causas — em grande parte cometida pela remoção dos corpos por policiais ou a dificuldade na entrada da Defesa Civil por conta do clima tenso deixado pelas ações.
A ineficiência por trás do gasto elevado do dinheiro público nas propagandas do governo voltadas para essa área e a falta de planejamento instigou uma série de operações fatais e brutais interligadas a uma vingança. Os traumas psicológicos deixados, a injustiça perante a banalização das mortes (justificadas por mero engano, legítima defesa, medo ou acidente e legitimadas por falas de autoridades públicas), a paralisação de serviços públicos e civis em risco de vida iminente (tanto fora quanto dentro dos territórios marginalizados) são sequelas graves de uma política que usa os direitos humanos como moeda de troca em nome de uma proteção seletiva que mata.
A guerra à favela a coloca como se fosse o problema da violência na cidade quando, na verdade, existe uma centralização do ódio e da marginalização por trás da justificativa de “guerra ao tráfico/drogas/ armas”. A violência da exclusão se interliga ao agravamento da desigualdade social e racial, à extensão da corrupção por trás da revenda de armas, drogas e munições e ao fortalecimento de uma hierarquia de poder sobre o outro, ligado à meritocracia e ao racismo.
A ampliação dessa agonia cotidiana, vivida por quem mora na favela, se estende para a cidade e mostra o quão longe está o cessamento de uma violência decorrente de um abismo social histórico no país em relação ao desenvolvimento e acesso à cidadania. Uma população semeada no ódio e na despolitização e corrompida pelo medo em prol de interesses políticos e econômicos para subversão da democracia. Se silenciar diante dos gatilhos é colaborar com essa política genocida 47 e enraizadora de consequências de um passado ligado à escravidão. Tal direito constitucional nas favelas se volta como uma necessidade histórica de humanização e potencialização de protagonistas capazes de criar, refletir, intervir e ampliar as suas narrativas dentro dos ambientes acadêmicos e da gestão política como cidadãos plenos de direitos e deveres.
Através de coletivos, ONGs, projetos sociais e dos próprios moradores, as favelas se mostram cada vez mais como a solução e agentes da sua própria existência, não o problema e uma ameaça social. A apropriação da lei (como a Ação Civil Pública (ACP), na Maré) e da tecnologia como uma ferramenta de diálogo para reafirmar a integridade de vidas também é importante para expor os problemas e a necessidade de se discutir com a cidade sobre as suas obrigações.
A mobilização e a articulação de debates sobre os planos de segurança — que não nos protegem — e seus impactos são necessárias para defender os nossos direitos e para deslegitimar a persistência de massacres realizados pelo Estado. Não dá para afirmar que os lugares mais seguros são aqueles que têm mais policiais, mas sim onde se tem mais acesso à justiça e serviços sociais voltados ao desenvolvimento, e com a implementação de políticas públicas que pautem a dignidade, o respeito, a cidadania e a autonomia.
Eu nunca vou esquecer do lugar onde nasci[editar | editar código-fonte]
Autoria: Fagner França.
Desde criança, nunca gostei da polícia. Nem tinha como aprovar as ações que desde sempre tiveram dentro da favela onde moro. Sou cria da Maré, e nunca me senti protegido por tais representantes do Estado, nem dentro, muito menos fora da comunidade.
Hoje cedo, fui abordado mais uma vez de forma truculenta, e a resposta para a abordagem foi que havia uma moto preta efetuando assaltos pela linha vermelha.
Quando disse onde morava, um policial fuçou minha mochila na certeza de encontrar algo ilegal, até minha comida ele revirou. Enquanto isso, o outro pesquisava meu nome e de meu sobrinho no sistema.
A cor da minha pele foi vista antes da cor da minha moto, e não tenho dúvida que essa não foi minha última abordagem policial.
O medo permanece e se externa ao meu corpo com tremores, meu sobrinho chorou no caminho desabafando. A mão armada do estado não me ofereceu segurança nunca, pelo contrário, me causa o medo da morte, que jamais será desconstituído por aqueles que confundem guarda chuva, furadeira ou qualquer objeto.
“Escuta esse barulho pai, é tiro de novo né! Caramba não vai ter aula!”
Lágrimas descendo do rosto.
Essa é minha filha, mais uma pessoa com a rotina alterada pelas operações policiais na Maré. Já não bastou uma noite inteira de confronto e um céu cheio de estrelas vermelhas. Nesta manhã, somos iluminados por um sol de farda escura. Quantas casas entrei pra sair e quantas casas vou ter que entrar pra voltar.
Uma operação policial não pode se transformar em parte da rotina de um morador de favela, não podemos normalizar a violência de forma alguma. Entretanto, diariamente vemos para onde são destinadas as incursões do Estado, cada dia mais violentas.
Vinte e oito anos morando em favela, naturalmente construí um ciclo de amizades enquanto me refugiava para não ser alvejado. Quando menos esperava uma porta abria: “entra aqui garoto!”
Dona Dalva, Seu Roberto, Xodó Pagodeiro e Ivan, que conserta geladeira, nunca fecharam a porta pra mim. Outros que passei a conhecer nesse mesmo processo de cuidado com a vida sempre oferecem café, pão ou bolo, pra acalmar junto com uma conversa em meio aos estrondos, como se fossem pancadas de chuvas forte no verão, que fazem a gente se esconder no banheiro, embaixo da cama ou em lugares impossíveis de se pensar numa brincadeira de pique-esconde.
Outro dia, me emocionei num enquadro, quando ouvi do outro lado, num grito desesperado: “meu filho não!” Nem era minha mãe, mas naquele momento a Maré subiu, Dona Glória, que me viu nascer, já veio com um café forte amargo na mão e disse: “os homi falaram que não é ele, não…”
Dessa vez, perceberam antes do: “pior que não era ele, não”. Mas as balas aqui não têm direção e muitas vezes tive de chorar pela morte de um amigo irmão.
Operações policiais na favela - seria o tiro mais letal que o vírus?[editar | editar código-fonte]
Autoria: Ana Paula Godoi Medrado.
Com a pandemia, a minha indignação com a crueldade das operações policiais na favela aumentou. Quando penso nessas intervenções no meu território em um cenário de hospitais lotados devido à maior crise sanitária em 100 anos, vejo que a luta pela vida das pessoas que moram na Maré torna-se ainda mais desafiadora. Se há um obstáculo letal, que pode inclusive invadir seu lar e te matar dentro de casa, ambiente que deveria ser considerado seguro, sair nas ruas para procurar ajuda em casos graves de Covid-19 não é uma opção viável diante destas intervenções.
Inclusive, em um desses confrontos, acredito que a minha família possa ter se contaminado pelo Coronavírus. Moro no Parque União, uma das 16 favelas da Maré, no terceiro andar de um prédio familiar. No momento em que começou o tiroteio e o helicóptero sobrevoava minha casa, o barulho e o medo de sermos alvejadas tornou-se tão intenso que eu, minha mãe e irmã, descemos para nos abrigar na casa da minha avó, que mora no meio do prédio, o que nos dá mais segurança. Ficamos no chão do quarto da minha tia que fica nos fundos, longe da janela e de frente para a rua.
No início de dezembro de 2020, minha mãe tinha testado positivo para a covid-19 e estávamos seguindo com o nosso isolamento social, evitando contato com os outros parentes. Porém, em uma dessas atividades policiais - como de costume - minha irmã desceu para se proteger, lembrei a ela que poderíamos estar contaminadas também e ela pegou uma máscara para tentar impedir a transmissão do coronavírus. Após uns dias, minha avó ficou indisposta e o pior se confirmou: ela teve uma forma grave da doença, a ponto de ser intubada. E meu avô, que já estava muito debilitado de saúde desde o início do ano, faleceu no dia 24 de dezembro, véspera de Natal. Não sabemos se foi o vírus, pois seu teste deu negativo.
Foi um período muito doloroso para a minha família, procurei combater o sentimento de que pudesse haver alguma culpa da nossa parte, porque quando lembro desses momentos de atividades policiais, percebo como os nossos corpos reagem de forma automática, pois descemos as escadas correndo e preocupadas. Minhas tias e minha avó, muito antes de batermos na porta, também já estavam acordadas abrindo para que a gente pudesse entrar. Assim como o nosso instinto de se proteger é grande, o da minha avó e da minha tia de nos abrigar é enorme, pois antes de batermos na porta, elas já nos abriram a casa. É tudo tão rápido e dinâmico que parece uma dança caótica ensaiada que repetimos mais uma vez, mesmo não querendo repeti-la. E esse é o tipo de cicatriz tão sutil e imperceptível, que talvez se eu não procurasse refletir, simplesmente não perceberia como reajo nesses momentos.
As balas nas casas são como essas mesmas cicatrizes, só que visíveis. Diferente de machucados que criam cascas e saram, às vezes elas levam vidas e nos deixam marcas cada vez mais profundas de um Estado que nos negligencia em muitos aspectos. Esse mesmo governo que deveria nos oferecer segurança também não respeita uma liminar do Supremo Tribunal Federal que proíbe operações policiais na pandemia, já que essas incursões representam também um perigo à vida dos moradores. As forças de segurança entram na favela de forma abrupta, mesmo em uma pandemia, sem aviso, ambulância ou respeito por nossas vidas.
A última operação policial que presenciei durou 26 horas e começou por volta das 15 horas do dia 16 de julho de 2021. Ela foi tão repentina e violenta que minha tia não conseguiu fechar a janela da sala. A sensação que eu tive foi como se a polícia tivesse surgido de paraquedas ali na minha rua, com o helicóptero chegando cada vez mais perto das casas. Passado um pouco o susto inicial, começamos a informar e localizar a família, e o medo passou a ser pela volta de um de nós do trabalho, da segurança da minha tia que tem uma creche na esquina e precisa manter os bebês calmos e protegê-los, da gente conseguir se comunicar e monitorar o grupo da família. Olhamos as redes sociais, vimos as postagens das pessoas e de instituições como a Redes da Maré, que apura e informa o que está acontecendo, que colhe relatos e acolhe um pouco da angústia dessas pessoas, assim como procura entender com as instituições do poder público o motivo e o tempo que deve durar a ação policial.
Nessas horas, penso nos serviços de saúde interrompidos, nas escolas, nas crianças que brincavam na rua e nas pessoas que, como de costume na favela, têm o hábito de ficar na porta de suas casas, já que aqui a rua é como se fosse um quintal. Também lembro de quem estava ansioso para se vacinar contra a covid-19 e não pôde, assim como das atividades mais básicas e cotidianas como a ida ao mercado, o estudo, as tarefas domésticas e o lazer sendo suprimidos. A gente para a nossa vida e eu só tenho um desejo nesse momento: que ela não seja interrompida de vez.
A cada acontecimento como este, parece que novos elementos são somados, como os cães farejadores transitando pela rua a madrugada toda, algo que antes dificilmente se via em operações policiais. Durante a entrada nas casas, me pergunto se caso um desses policiais entre na minha casa ele vai ter algum olhar estigmatizado sobre os meus pertences. Instala-se um terror psicológico ao pensar em tantas questões mesmo antes do fato se concretizar. Mando mensagem para a vizinha e checo se está tudo bem, se é que alguém consegue ficar bem nesses momentos.
Acredito que o mais triste é entender que é uma prática sem fim, algo tido como normal que irá acontecer de tempos em tempos e que faz parte de uma realidade aparentemente imutável, fruto de um determinismo social. Mas quem é que poderia determinar uma atrocidade como forma de enfrentamento? Pior, como toleramos isso? Por isso, um plano de redução da letalidade é primordial para o Rio de Janeiro, porque deveria ser inegociável pensar a questão do ponto de vista de quem sofre. Vivemos apesar da violência e não queremos ter que viver com ela atravessando nossas lembranças. Em alguns casos, infelizmente, ela é protagonista de uma dor inconcebível: a da perda.
A primeira vez que eu vi um caveirão na favela, eu tinha 12 anos de idade. Estava com a minha irmã de 6 anos e me recordo vivamente dela falar “caveirão” gaguejando, quando o vimos passar lentamente tão pertinho da gente. Será que todas as crianças do Rio de Janeiro já sabem desde a infância que aquele carro pode matá-las? Outras como eu, com 12 anos, precisam pensar em táticas e resgatar na memória quais são as opções para se proteger? As estratégias já conhecemos desde criança: podemos nos abrigar em algum lugar, e se estivermos no meio da rua, temos que nos jogar no chão, mas correr não é uma opção, porque essa pode ser considerada uma atividade suspeita e representar um risco de ser alvejado. Este foi um marco na minha infância, onde eu comecei a entender que eu vivo em um mundo diferente de muitas outras crianças e pré-adolescentes que não precisam refletir sobre esses assuntos.
Não é que moradores de favela não pensem também na vulnerabilidade dos agentes, mas a questão é que o morador que não possui proteção como colete ou armamento, até porque só iria contribuir para mais violência por reforçar o estereótipo de que todo morador tem envolvimento com os grupos armados que dominam o território. Os agentes de segurança pública, além de disporem de mecanismos de proteção, deviam ter sua atuação respaldada em um planejamento que evite ao máximo a letalidade dos membros das corporações, dos moradores e dos sujeitos envolvidos com atividades ilícitas, pois é uma política de segurança pública que deveria prezar pela vida.
Acredito que seja comum - principalmente para pessoas de fora da favela - levantarem a questão da segurança dos policiais. O morador não é visto como a vítima, que está no meio desse tiroteio de forma literal e figurativa, mas é alvo também da atuação policial. Eu vi a minha graduação, meu trabalho e os meus estudos complementares - como cursos relacionados à minha profissão e de inglês - serem completamente afetados. Assim, até a luta por melhores condições de vida e de trabalho é dificultada por essa violência de Estado, que nos afeta material e psicologicamente. Isso coloca em xeque a suposta meritocracia que a sociedade prega, como se apenas o esforço bastasse para mudar a realidade, ignorando as violências vivenciadas por parte da população.
Em 2019, eu concluí a universidade em um período muito turbulento, com uma média de 2 operações policiais por semana. Além das preocupações de dar conta de tudo, sobre uma possível efetivação no estágio, esses constantes desrespeitos só complicam ainda mais a vida de pessoas de favela que já lutam para acessar espaços que não são pensados para que elas ocupem.
Falar sobre isso é tido como tabu e incômodo para muita gente. As pessoas lamentam, se silenciam e há quem queria conversar a respeito, ou procuram, acredito até que com as melhores intenções, propor soluções como: por que você não sai da favela? Essa frase foi dita para mim em um dia em que estava contando que consegui sair de casa em meio a uma operação policial para chegar ao curso, quando expliquei o porquê de estar atrasada e chegando no intervalo do curso. Eu queria ter dito para essa pessoa que eu gostaria que tantas pessoas não passassem suas vidas precisando lutar para sair da favela, o lugar em que seus pais cresceram, ao qual você pertence e tem tanta influência na sua existência. Gostaria inclusive que as pessoas tivessem a liberdade de sair da favela se assim quisessem e não como uma lógica de sobrevivência social, mas a própria ausência de segurança pública implica que as pessoas queiram ter melhores recursos financeiros para isso.
Uma pergunta que deixamos de fazer também é: onde vamos “colocar” esse povo todo se estimularmos que eles saiam de suas casas? O sistema faz pessoas acreditarem que a solução para uma questão de segurança pública é que elas saiam da favela em meio a um déficit habitacional.
Isso demonstra como o racismo estrutural torna esse discurso desonesto, porque diante da crescente desigualdade social e racial essa conta não fecha. O mesmo sistema que diz que a solução é acabar com as favelas, locais de resistência negra na cidade, dificulta a mobilidade social dessas pessoas.
O que me chateia é essa barreira invisível que separa as nossas vidas. Enquanto uns podem ser livres para estudarem e serem apenas médicos, advogados ou engenheiros, a nossa luta para alcançar esses espaços é por sobrevivência por conta desses desafios. Enquanto a sociedade olhar a favela com esse viés de combate, ela continuará a validar todas essas agressões. Em um mundo pós-pandêmico em que ansiamos pela normalidade e pensamos em um “novo normal”, acredito que em meio a tantos retrocessos como o aumento de pessoas em situação de extrema vulnerabilidade alimentar, ou com dificuldade de acessar a educação, reforço que a política de segurança pública não pode ser mais um desses mecanismos de violação, porque em meio a tantas fragilidades, esta se instaura por uma lógica de pensamento genocida.
A favela é o coração da cidade. A Maré, por exemplo, atravessa as três principais vias expressas do Rio de Janeiro. Exportamos mão de obra (termo que o mercado de trabalho gosta de usar ao invés de pessoas) para as mais variadas áreas e serviços. Em alguns casos de operações policiais, essas vias ficam paradas, interrompendo todo um fluxo de pessoas que moram na Maré e/ou querem voltar para suas casas na Zona Norte, na Zona Oeste e na Baixada. Se quisermos uma cidade menos violenta, precisamos repensar os aspectos sociais que norteiam a favela, como essa invisibilização de problemas históricos e estruturais. Gostaria que as pessoas de fora da favela pensassem sobre o incômodo que sentem em falar sobre isso, mas também pensassem em quem vive esta realidade.
Eu evito pensar na morte, porque ela é a interrupção da vida e eu não quero pensar que a minha vida pode ser em vão e esvaziada dessa forma, em meio a tanto esforço, o tanto que já fiz, posso e quero realizar. Não quero ter que viver com o medo de perder alguém querido, ou algum conhecido. Penso que isso é uma “morte em vida”.
Ao mesmo tempo em que procuramos não pensar apenas nessa escassez programada, é também na dor e no coletivo que eu encontro o poder de cura. A favela se une e se protege, compartilha informações, cuida das crianças e dos idosos e compartilha dessa dor, que muitas vezes não dói exatamente na gente, mas é sentida e compartilhada. É inconcebível viver em um mundo em que uma mãe precisa enterrar seu filho por essas questões que são fruto de uma má gestão, de um pensar político que nos vê como menos humanos. Eu quero deixar de falar sobre violência, pois já se percebe a criatividade, proatividade e a realização de sonhos em meio a esses desafios. Adoraria poder ver o que realizaremos ainda mais, sem essas amarras limitando a nossa potência e os nossos corpos. Sem que as regras do jogo fossem tão desfavoráveis pra gente.
Ensino de dança e segurança pública: conexões possíveis na escola livre de dança da Maré[editar | editar código-fonte]
Autoria: Gabriel Lima.
Eu era o único professor negro na ELDM naquele momento e, ainda por cima, falando de um assunto que sempre afasta as pessoas: dança afro. Com tambores, cantigas, tudo que leva ao racismo, ao racismo religioso, ainda que não houvesse em minhas aulas nenhuma correlação com as religiões de matriz africana. Já na minha chegada, percebi que minha estada na Maré seria feita de confrontos e aprendizados.
Eu venho também de um território favelado, como a Maré. Moro na Pavuna, bem no meio de duas subidas para o Morro da Pedreira. Minha vivência da favela sempre foi a do asfalto. Eu nunca subi o morro, não há venda ilegal de drogas próximo da minha casa, não vejo grupos armados no meu dia a dia, ainda que esteja sujeito às privações e estigmas de morar na periferia. Minha realidade periférica ganhou novas nuances quando cheguei à Maré. Nos meus primeiros anos trabalhando no CAM, que fica bem próximo da Avenida Brasil, não precisei adentrar a Maré. Mas em 2018, minha dinâmica no território mudou. Comecei a fazer a coordenação da ELDM e, como coordenador de projeto, ganhei outras responsabilidades, que incluíam maior circulação pelo território.
Lembro da minha primeira entrada “mais profunda” na Maré, em meados de 2018. Com instruções sobre como chegar no prédio central da Redes da Maré, entrei pela Rua Sargento Silva Nunes, a partir da Avenida Brasil. Alguns metros à frente, avisto grupos armados. A onda de medo e ansiedade ao ver pessoas portando armamento pesado foi enorme. Segui para o prédio da Redes. Ao sair, me deparei com a mesma cena, agora um pouco mais “acostumado”. Ninguém falou comigo ou me indagou sobre para onde eu ia. Nada. Maior do que aquilo que eu entendia como ameaça, era o meu medo em estar numa situação absolutamente nova para mim. Saí da favela. Cheguei na Avenida Brasil.
Imediatamente ao alcançar a avenida, me deparei com um carro da polícia. Ao me avistarem, dois policiais me abordaram. Perguntaram de onde eu vinha, para onde eu ia. Revistaram minha mochila, me colocaram apoiado no camburão para me revistarem. Foram racistas ao verem produtos para meu cabelo afro na minha mochila. Após a revista e convencidos de que eu não era usuário ou traficante de drogas, me deixaram ir. Essa foi só a primeira de diversas abordagens policiais às quais fui submetido nos seis anos em que estive na Escola Livre de Dança da Maré. Relato isso aqui para que você que me lê saiba um pouco de onde venho e de onde falo.
Enquanto coordenador da ELDM, uma de minhas responsabilidades era pensar as atividades para a Escola. Muito estimulado à época pela coordenadora do então eixo de Arte e Cultura, Isabella Porto, comecei a cultivar uma aproximação com o eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça. Aproximar a ELDM deste eixo era uma missão que começaria a ser cumprida naquele ano de 2018, através do Núcleo de Formação Intensiva em Dança, o Núcleo 2. Este grupo, formado por jovens entre 14 e 24 anos, realiza uma formação intensiva em dança contemporânea na ELDM, tendo aulas diárias no Centro de Artes da Maré2. Ter o eixo Segurança Pública mais próximo foi uma oportunidade para que pudéssemos incorporar diferentes temas do cotidiano à formação oferecida aos jovens. Além disso, era perceptível na rotina do Núcleo 2 que discutir segurança pública era um desejo dos jovens.
Em 12 de dezembro de 2018, tivemos o primeiro encontro do Núcleo 2 com o eixo. Os jovens foram estimulados a pensar sobre o que entendiam por segurança pública, sobre o que era juventude para eles e sobre como era ser jovem na favela. Este primeiro encontro abriu as portas para que pudéssemos ter uma série de outras conversas muito importantes para a Escola Livre de Dança da Maré e para o Núcleo 2.
Particularmente, vi naquele encontro uma conexão que para mim não tinha precedentes. Eu já vinha estudando dança há muitos anos, em muitos lugares diferentes, mas em nenhum momento da minha formação eu havia tido a oportunidade de pensar sobre outras questões que também atravessassem o corpo que dança. Ali, na Escola Livre de Dança da Maré, que foi minha primeira experiência profissional enquanto docente de dança, eu via algo inédito acontecer e tinha certeza de que mudaria muito a forma como aqueles jovens viam seus corpos e suas danças.
A partir do encontro, demos início a uma parceria muito importante, tanto no campo profissional, quanto no pessoal. Ao longo dos anos, muitas situações referentes à segurança pública se colocaram diante de nós. Inúmeras.
Ter os espaços de encontro do Núcleo 2 com o eixo DSPAJ foi de extrema importância para dar meios para que aquelas/es jovens que estiveram na ELDM naqueles momentos pudessem exteriorizar de alguma forma seus anseios, medos, incômodos. Na mesma medida, os encontros sempre tiveram um caráter formativo também, dando ferramentas para que aquelas/es jovens pudessem melhor elaborar as questões de segurança pública, em especial em territórios favelados, e como elas as/os afetavam. Entender racismo estrutural, por exemplo, foi algo de grande importância dentro do contexto dos encontros, uma vez que é sempre significativo o número de estudantes pretos na ELDM. Operações policiais na Maré, que impediam as aulas, conflitos armados no meio da tarde, assassinatos da população preta carioca em diversos bairros. Nada passou despercebido quando no assunto da segurança pública.
Em 13 de março de 2019, tivemos o segundo encontro com o eixo de Segurança Pública. Neste encontro, os jovens tiveram a oportunidade de conversar a partir dos dados do Boletim Direito à Segurança Pública de 2018 e discutir como aqueles dados os impactavam. O encontro contou com a realização de dinâmicas onde os jovens puderam, de forma lúdica, pensar sobre privilégios. Desse encontro saiu a provocação “o que é segurança pública para você e como ela afeta o seu direito à arte?”. A partir desta provocação, os jovens foram estimulados a escrever sobre o que sentiam em relação a esse tema, que tanto afeta suas vidas. Os relatos produzidos estão espalhados ao longo deste texto, que é escrito, portanto, a várias mãos.
Várias situações que colocaram a segurança pública na Maré em pauta ocorreram ao longo do período compreendido entre 2018 e 2021, o tempo em que estive à frente da coordenação da ELDM. Destaco aqui a Ação Civil Pública ACP da Maré e sua suspensão, em 2019. Como resposta à suspensão de tão importante instrumento para a proteção de territórios favelados contra a truculência das operações policiais, a Redes da Maré convocou alunos de escolas públicas da região e beneficiários dos projetos da instituição para a escrita de cartas a serem entregues para o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ). Nas cartas, as crianças e jovens relataram como era a vida na Maré em dias de operação policial, destacando a importância da ACP da Maré. O Núcleo 2 foi convidado a participar da escrita das cartas e, em 28 de agosto de 2019, participou de uma conversa com a Associação de Juízes para a Democracia. Nesse encontro, que ocorreu no Centro de Artes da Maré, aconteceu a discussão dos processos relacionados à ACP da Maré, a mobilização dos moradores e a entrega das 1509 cartas feitas por eles para o TJRJ.
Neste momento, a conexão da ELDM com o eixo de segurança pública já estava consolidada e passamos a fazer parte dos convites do eixo para suas atividades. Em 2020, já dentro da programação do Curso Falando Sobre Segurança Pública na Maré, tivemos um único encontro antes do início da pandemia de covid-19. Não conseguimos prosseguir com os encontros devido ao isolamento social imposto pela pandemia, mas naquele momento já era um desejo ter as produções nascidas no encontro registradas, fato que se realiza nesta publicação.
Os encontros puderam ser retomados em 2021, de maneira remota. Nesta retomada, e agora em contato com pessoas de diferentes partes do Rio de Janeiro e do país, o Núcleo 2 pôde continuar as discussões sobre segurança pública, racismo e violência policial. Mais uma vez foi aberto espaço para a colocação individual sobre as questões de cada participante sobre o tema, bem como foi dada a oportunidade de diferentes vozes serem ouvidas.
Considerações finais[editar | editar código-fonte]
A conexão que vem sendo estabelecida entre a Escola Livre de Dança da Maré e o eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça vem se mostrando uma poderosa ferramenta educativa dentro da formação em dança oferecida pela ELDM. Ter diferentes formas de entender o corpo que dança e que está à mercê da violência e da falta de segurança pública vem se tornando um traço muito positivo nas práticas da escola. Com essa conexão entre esses dois diferentes eixos da Redes da Maré , Segurança Pública e Arte, Cultura, Memórias e Identidades, conseguimos acessar nossos alunos e alunas de mais formas, dando um caráter ainda mais integrado à formação e possibilitando novos encontros e atravessamentos para os jovens que passam pela ELDM. Essa conexão entre os eixos reverbera de modo positivo quando temos os jovens participando e produzindo materiais (escritos, falados, de dança...) que dialogam com seus incômodos e questões e que têm nos encontros com o eixo de DSPAJ um lugar de articulação e possibilidades ampliados.
Em busca da decolonialidade: uma luta pela existência[editar | editar código-fonte]
Autoria: Joelma Sousa dos Santos.
A proposta desse texto é possibilitar a reflexão sobre a colonialidade dos espaços de favelas e periferias, algo que transcende as particularidades do colonialismo histórico e que não desapareceu com a independência ou processo de descolonização. Tentarei explicar porque a colonialidade é a continuidade das formas coloniais de dominação e exploração, sendo a segregação racial e a criminalização dos espaços de favela e periferias uma das consequências.
Baseando-se em uma perspectiva decolonial, a antropóloga Curiel (2014) compreende que a raça e o gênero foram essenciais para a construção epistemológica moderna colonial, essas diferenciações continuam a ser produzidas na contemporaneidade, mesmo que existam narrativas de avanços dentro da suposta democracia racial e sufrágio. A consequência das opressões raciais não se dá a partir de um somatório de experiências, mas sim de um entendimento de como as categorias de raça, classe, gênero e sexualidade atravessam as nossas vidas, nossa população e territórios, sistematicamente, desde o colonialismo histórico até a colonialidade moderna, e como isso impacta pessoas que não tiveram acessos privilegiados a partir do conceito da raça, classe, gênero e sexualidade.
A perspectiva decolonial nos permite refletir e analisar a segregação espacial para além de um mecanismo e instrumento de seletividade imobiliária e de classe, pois observa-se que, como a colonialidade, está totalmente impregnada e imbricada pelos códigos de raça, classe, gênero e sexualidade. Dessa forma, não é possível falar de segregação espacial sem observá-la como resultado das tensões da interseccionalidade de raça, classe e gênero.
Não é à toa que em nosso país a história da intervenção social nas favelas cariocas confunde-se com a história da expansão do capitalismo, que tem o racismo como principal elemento de sua formação, sob um modelo urbano industrial e com a incorporação da “questão social” na agenda política do Estado. Porém, a execução dessa agenda se baseia na segregação espacial e racial. Segundo o diário O Estado São Paulo, publicado em 13 de abril de 1960, a população branca do Rio de Janeiro era de 1.660.834 e a população negra 708.459. Deste número, a população das favelas cariocas era composta por 55.436 brancos e 113.218 negros.
Ainda que a escravidão tenha sido abolida, a lógica e as formas da colonialidade continuam a todo vapor nos espaços de favela e periferias. O principal pressuposto do colonialismo histórico foi estabelecer o homem branco-cis- -heterossexual como modelo a ser seguido de humano e civilizador, e tudo que está fora ou não alcança tal modelo se torna alvo de opressão, combate e violência.
Historicamente, observa-se que a sociedade brasileira foi constituída seguindo padrões eurocêntricos por meio da desumanização das pessoas negras, que se dá por diversos âmbitos, com cada operação policial, cada genocídio epistemológico, a cada intolerância religiosa, cada injuria racial, a cada ida ao shopping, supermercado, praia. A cada racismo sofrido, a nossa dignidade humana – da população negra - é ininterruptamente violentada dentro da perspectiva da colonialidade.
No Brasil, é comum vermos discursos que relativizam o racismo, ou mesmo que defendam a inexistência dele. O racismo se expressa de maneira tão perversa que alguns espaços a pauta antirracista foi apropriada pelo capitalismo, onde personalidades negras utilizam a pauta do racismo para se autopromover, impactando muitas vezes na deslegitimação da luta histórica do Movimento Negro Brasileiro e vão de encontro com a perspectiva decolonial. Dessa forma, reafirmamos a importância de compreender o racismo de maneira estrutural, em suas múltiplas dimensões.
Necropolítica e segurança pública na perspectiva colonial[editar | editar código-fonte]
Segundo Fanon (2008), a primeira coisa que a população negra aprende é a manter-se no seu lugar, não ultrapassar os limites. O universo atribuído às pessoas negras foi sistematicamente condicionado pelo não negro. Afinal, vivenciamos séculos de colonização, que se perpetua pela colonialidade moderna que determina um olhar sobre o outro. Seguindo a perspectiva de Fanon, a política de segurança pública é mecanismo de intermediação entre aqueles que detêm e os que não detêm o poder. Dessa maneira, na visão do autor, os agentes da segurança pública são os algozes do regime colonial.
No dia 16 de julho de 2021, a favela Nova Holanda, Parque Rubens Vaz e Parque União vivenciaram mais de 24 horas de tensão, medo e terror, devido a uma operação policial justificada por denúncias de que ocorreria uma festa em uma escola local. Os agentes de segurança permearam o território por mais de 24h, em uma ocupação indevida. Nessa operação policial, foram utilizados helicópteros blindados e carros blindados (caveirões).
O pesquisador, filósofo e escritor camaronês Achille Mbembe (2018) traz uma reflexão do Estado em condições de soberania vertical aos campos de batalhas que não estão localizados apenas nas superfícies, se dão também no espaço aéreo transformado em uma zona de conflito. Essa é uma realidade vivenciada há décadas pelas favelas e periferias, pois a concepção do estado de exceção, a execução e a morte se tornam um assunto de alta precisão, sendo um elemento crucial para as técnicas de mortes e de inabilitação do “inimigo” a ser combatido. No dia 6 de maio de 2021, a favela do Jacarezinho foi marcada pela violência estatal, que teve como resultado 28 pessoas mortas pelo Estado em uma operação policial. Imagens divulgadas pelas redes sociais permitiram que pudéssemos vivenciar o tamanho da violência ali executada. Uma imagem que marcou foi a de um jovem negro morto com tiro de fuzil com o dedo na boca. Fica evidente para nós, que a supremacia branca da sociedade brasileira tem na violência sua principal sustentação.
Carolina Maria de Jesus (1960), em seu livro Quarto de despejo, retrata como era a vida na favela, um terrível testemunho de seu cotidiano, um submundo habitado por homens e mulheres aos quais falta o mínimo a que têm direitos, diante de sua condição humana. Para Clovis Moura (2019), da mesma forma que se justificou a escravização por séculos, os mecanismos do Estado ainda são usados nos dias atuais para marginalizar a população negra e a condição de bárbaro, legitimando a perseguição, repressão e execução sobre seus corpos.
Há séculos, a nossa luta segue em busca de conquista pelas mesmas pautas: direito à vida, ao emprego e busca pela dignidade. Nesse sentido, Abdias Nascimento (1978) nos deixou um legado em sua obra espetacular “Genocídio do negro brasileiro”, sobre o conjunto de políticas públicas que legitimavam e escamoteavam a violência sobre nossos corpos. Costumo dizer que o medo da morte é quase certo em nossas vidas, seja de tiro, de fome, doença e tristeza. Nossa vida para a supremacia branca segue não valendo nada, graças à naturalização da morte do corpo negro, o genocídio segue a todo vapor.
Considerações finais[editar | editar código-fonte]
Li uma postagem nas redes sociais sobre um jovem negro que foi morto junto com o cavalo no qual estava montado. Os comentários demostraram o quanto a violência racista e a desumanização da população negra ecoam na narrativa do conjunto da sociedade. Ao comparar o jovem com o cavalo, ambos mortos, o discurso da rede social reforça a banalização da violência contra esse grupo populacional, de como normalizamos e nos habituamos com a violência sobre o corpo negro. Nesse sentido, dados apontam que pretos e pardos representaram, em 2018, 75,7% das vítimas de homicídios. (Atlas de Segurança Pública, 2020).
A luta pela decolonialidade é uma luta pela descolonização das mentes, instituições e sociedade. A decolonialidade tem como objetivo mudar a ordem da sociedade racista capitalista mundialmente, logo alguma desordem deverá ser instaurada como foi no episódio de repúdio à morte de George Floyde. A perpetuação do genocídio do negro brasileiro dependerá da superação da colonialidade, sendo um mecanismo de manutenção dos privilégios da supremacia branca. Para romper com essa diferença, o branco precisa se olhar no espelho e arrancar de suas entranhas a maldição que lhe acompanha há séculos, afinal o racismo não foi criado pelo povo negro. Nesse sentido, a branquitude necessita reconhecer seus privilégios, abrir mão do saber absoluto, compreender qual é o seu lugar de fala, sobretudo quando se refere às favelas e aos moradores de favela, pois historicamente os brancos têm se beneficiado do racismo e nós, negros e negras, continuamos a morrer sozinhos.
Referências[editar | editar código-fonte]
ROQUE. Atila. Precisamos falar sobre genocídio do negro brasileiro. Nexo jornal.
IPEA; FBSP. Atlas da Violência 2020.
MOURA, Clovis. Sociologia do negro brasileiro. 2°ed. São Paulo: Perspectiva, 2019.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Ed. UFBA, 2008
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo – diário de uma favelada. São Paulo: Francisco Alves, 1960.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.
CURIEL, Ochy . Género, raza, sexualidad: debates contemporáneos.” Colombia, Universidad del Rosario. Disponível em: < http://www. urosario. edu. co/urosario_files/1f/1f1d1951-0f7e-43ff-819fdd05e5fed03c. pdf>. Acesso em: 22/09/2021
NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro, processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1978.
A política de segurança pública no banco dos réus[editar | editar código-fonte]
Autoria: Levi Germano Batista.
ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - é um meio de provocação ao judiciário para analisar a legalidade de atos de governantes que ameacem de lesão ou lesem direito fundamental previsto na constituição e tratados internacionais que o Brasil é signatário. A ADPF 635, conhecida como ADPF das Favelas, busca apontar a ilegalidade da política de segurança pública histórica e atualmente adotada no Estado do Rio de Janeiro, marcada por elevados índices de letalidade policial, sobretudo em territórios favelados, violando direitos como a vida e a dignidade humana de uma grande parcela da sociedade. No processo, os autores da ação pedem, entre outras coisas, que o STF obrigue o Estado do Rio de Janeiro a elaborar e implementar, com ampla participação popular, um plano de redução da letalidade policial, especialmente nas favelas cariocas.
Esta ADPF certamente se inspirou na experiência da Ação Civil Pública sobre Segurança Pública na Maré, conhecida como ACP da Maré. Esta foi proposta em 2016 no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, após uma operação policial na Maré que buscava apreender um foragido da justiça. Essa intervenção policial, com grande aparato bélico, iniciou-se abruptamente no meio da tarde, no momento em que o cotidiano da favela estava intenso, com expediente escolar e funcionamento dos postos de saúde e comércio local, interrompendo o dia para milhares de pessoas. A ação foi marcada por diversas violações de direitos, pessoas feridas por arma de fogo, casas arrombadas indiscriminadamente, e quando tudo isso ia se alongando até a noite, um grupo de moradores e instituições da Maré acionou o plantão judiciário para pedir a interrupção imediata da operação policial. O pedido foi acolhido pela justiça e posteriormente a Defensoria Pública emendou uma série de outros pedidos que visavam, sobretudo, a redução de riscos e dados de operações policiais em localidades densamente populosas, como as favelas.
Como fundamentação dos pedidos, se utilizaram dados e evidências sistematizados por instituições da sociedade civil, como a Redes da Maré, que tiveram peso indiscutível no resultado da ação judicial. Com isso, o pedido de plano de redução de danos e violações de direitos humanos foi acolhido pela justiça fluminense. O Estado, porém, apesar de obrigado judicialmente, não cumpriu efetivamente a determinação. Em vez disso, limitou-se a editar normas genéricas da prática profissional das policiais civil e militar.
Diante disso, percebendo que a letalidade policial no Rio de Janeiro aumentava vertiginosa5 2 5 mente, principalmente no período de governos com forte clamor de combate às drogas e criminalidade por meio de ações bélicas em favelas, as ideias da ACP da Maré foram levadas ao STF pela ADPF das favelas, para que os efeitos de tal julgamento pudessem servir de parâmetro não só para a Maré, mas para todos os territórios de favela. Diversas organizações da sociedade civil se reuniram para discutir a medida e o PSB (Partido Socialista Brasileiro) foi quem propôs a ação no STF. As demais organizações, como a Defensoria, ONGs e movimentos sociais, foram admitidas formalmente no curso do processo na qualidade de “amigos da corte” (amicus curiae), que as permite colaborar com dados e informações pertinentes ao caso em julgamento, para auxiliar os ministros julgadores. Assim, percebe-se que, em sua origem e desenvolvimento, a ADPF das favelas tem forte participação popular e da sociedade civil.
Diversos foram os impactos deste mecanismo no cotidiano das favelas. Em primeiro lugar, a ADPF foi fundamental para conter o avanço da letalidade policial em favelas, pois o governo estadual, mesmo diante da pandemia da covid19, não dava sinais de trégua em sua incessante busca de eliminação da criminalidade e do tráfico de drogas tão somente por meio do enfrentamento bélico em meio urbano, com elevada densidade demográfica. Os moradores de favela seriam, assim, tratados, mais uma vez, como população civil de um exército inimigo, de modo que eventuais mortes dessas pessoas seriam consideradas mero efeito colateral. Entretanto, graças ao movimento da ADPF, o STF determinou restrição de operações policiais durante a pandemia, salvo em hipóteses absolutamente excepcionais, que devem ser justificadas.
A decisão, em caráter provisório e emergencial, surtiu efeitos imediatos na letalidade policial e reduziu drasticamente as mortes violentas no Estado do Rio de Janeiro, o que significa várias vidas faveladas salvas. Entretanto, uma brecha da generalidade do termo “absolutamente excepcionais” permitiu que as polícias fossem, gradativamente, esvaziando a decisão ao realizar operações por motivos diversos, mas que na prática não tinham nada de excepcionais, como interromper bailes funk ou para retirar barricadas em favelas.
Em contrapartida, as organizações envolvidas na ADPF não cansaram de denunciar os descumprimentos da decisão do STF, pressionando, paralelamente, pela aceitação do pedido de determinação ao Estado que elabore e implemente um plano de redução da letalidade policial, que havia sido indeferida, por ora, como medida cautelar (pedido emergencial temporário, não definitivo). Devido a isso, em abril deste ano, o Ministro relator da ADPF, Edson Fachin, convocou uma audiência pública para discutir como seria o referido plano e sua importância. Participaram diversos movimentos sociais, instituições e, em especial, moradores de favela vítimas diretas da violência de Estado. Foi um momento histórico em que a favela teve voz na maior corte do país e é inegável o seu impacto no curso deste processo.
Não foi à toa que o Ministro relator mudou de posição em relação ao pedido do plano e decidiu votar a favor do seu acolhimento, no julgamento do recurso apresentado pelos autores da ADPF (embargos de declaração). O julgamento, porém, foi interrompido em 31/05/2021, em função do pedido de vista do Ministro Alexandre de Moraes, que só devolveu os autos no dia 11/10/2021, permitindo-se, assim, a retomada da apreciação do recurso pelo STF. Agora, cabe ao presidente da corte, Ministro Luiz Fux, agendar a retomada desse julgamento, o que pode ocorrer a qualquer momento.
A ADPF das Favelas é um marco na luta por uma política de segurança pública que de fato busque proteger a vida, balizando a atuação das forças de segurança nas periferias para que respeitem os direitos fundamentais dos moradores. O debate travado no âmbito do STF tem efeito estrutural na política de segurança do Estado do Rio de Janeiro e pode servir de precedente para todo o Brasil, quando a corte suprema se pronunciar definitivamente sobre a ação.
Por isso, é fundamental a participação popular nesse processo, que poderá afetar a muito longo prazo a vida dos moradores de favela. A depender do grau de conhecimento e de divulgação ampla do debate desse processo, incalculáveis vidas podem ser salvas ou perdidas, nos próximos anos.
Segurança pública e educação sanitária: a solução vem da favela[editar | editar código-fonte]
Autoria: Vânia Silva.
Sou Vânia Silva e moro há 46 anos no complexo da Maré. A partir das informações colhidas no trabalho com os moradores e a partir das minhas percepções enquanto moradora que vivencia e conhece as demandas e problemas dentro do território, ficam evidentes algumas questões que historicamente afetam os moradores de favelas no Rio de Janeiro. Entre elas, queria dialogar um pouco sobre duas principais: a necessidade de inserção dos jovens e adultos no mercado de trabalho e as formas inadequadas de manuseio e descarte do lixo neste território.
É fato que o desemprego é uma realidade histórica no Brasil, principalmente nos últimos anos. A pandemia, inclusive, piorou esta realidade. Os moradores da favela ainda convivem com outra questão: a criminalização do local onde vivem. Essa criminalização vem de uma ideia propagada pela mídia e pelas autoridades de que este local é violento e sobre uma suspeita que se tem de seus moradores. E tudo isso é produzido e reforçado por uma política de segurança pública que atua sobre a favela através de violência e violações de direitos, diferente do que ocorre no restante da cidade. Essa criminalização recai de maneira mais intensiva sobre os egressos do sistema penitenciário, que por conta disso, têm muita dificuldade de se inserir no mercado de trabalho.
Frente a essa realidade, uma das estratégias fundamentais é buscar parcerias com empresas locais ou de grande porte, na tentativa de inserir nossos jovens e outros membros da família no mercado de trabalho. Poderíamos também usar da mesma parceria com empresas que ministram cursos profissionalizantes e assim formá-los e capacitá-los para o mercado de trabalho. Em outra frente, podemos criar uma organização para o descarte do lixo nos territórios de favelas, assim também conseguimos gerar emprego para que essas famílias possam ter uma renda. É preciso implementar medidas que possam organizar e evitar o descarte incorreto do lixo.
Como a comunidade vem crescendo devido ao aumento de moradias, comércios e população, também aumenta o acúmulo de lixos nas ruas, becos e vielas do território das 16 favelas da Maré, ampliando focos de doenças com a proliferação de ratos e insetos, tornando-se um dos problemas mais intensos que atormentam os nossos moradores. Existe um atendimento que vem sendo realizado por uma empresa pública, mas que nos oferece apenas o trivial.
Diferentemente de outros locais da cidade, em que a política de resíduos sólidos ocorre articulando serviços e ações de limpeza urbana como a coleta seletiva de lixo e a limpeza pública, nas favelas ocorre apenas a coleta de lixo nas principais vias, que muitas vezes estão distantes da casa dos moradores. A favela é quase sempre vista como um espaço de exclusão, violência e pobreza. Além disso, o senso comum reproduz a favela como um lugar sujo. Essa visão impacta diretamente nas políticas de limpeza urbana. Seja implicitamente pela ideia de que os moradores de favela não precisam de um ambiente limpo e saudável, ou pela justificativa de que os serviços não funcionam por conta da violência armada no território.
Quando olhamos as ruas da Maré e as ruas de bairros da zona sul do Rio de Janeiro, vemos uma diferença substancial com relação ao descarte inadequado de lixo. Esse fato tem necessariamente relação com a educação dos moradores de ambos os bairros. Apesar da mobilização dos moradores e a educação ambiental serem determinantes para esse processo, o principal elemento para essa diferença entre os bairros é como as políticas públicas de limpeza urbana são executadas nesses diferentes locais. A favela também é cidade e é obrigação do poder público investir nestes territórios, inclusive no que se refere à educação sanitária.
Um exemplo de investimento em estratégias comunitárias de descarte de lixo é colocar ganchos nas paredes externas das casas para que o morador possa pendurar seu lixo sem que precise ficar jogado nas esquinas, passando uma visão mais organizada. E para prédios que tenham várias moradias de aluguel, implementar cestos com um metro e meio de altura também com ganchos, para que o lixo seja pendurado caso não haja mais espaço nos cestos.
Implantar também motos com suportes para que possam transitar pelos becos dos territórios das 16 favelas onde tenham mais facilidades de recolher o lixo, assim evitando que ele seja descartado nas esquinas das ruas da comunidade. Isso também poderia gerar mais empregos, se contratassem agentes do próprio território para realizar a limpeza do local. Assim, conseguimos manter a nossa comunidade mais limpa e ajudar famílias que se encontram desempregadas, sem nenhuma renda.
Além disso, devemos realizar um trabalho de reeducação do descarte correto no horário certo, para que o projeto funcione em parceria com a empresa pública que atua no território. É função do Estado proporcionar condições para que os moradores também participem da limpeza urbana de sua localidade.
Algo que também poderia contribuir para a melhoria das condições de vida dos moradores seria realizar uma pesquisa que comprove os problemas trazidos pelo excesso de lixo, e assim criar um projeto para que o Estado possa implementar políticas públicas atualizadas para o tratamento do lixo, de acordo com a dinâmica do território. Uma pesquisa que ouça os moradores e pense em soluções segundo a realidade local.
Aqui no Complexo, residem mais de 140 mil moradores. É um território que necessita de atenção nessa questão do lixo, pois pode evitar o aumento de ratos e insetos que contribuem para o aparecimento de vários tipos de doenças. Buscar soluções para este problema é uma questão de saúde pública. Sendo assim, é importante o uso de estratégias de prevenção em saúde para conseguir mitigar danos e riscos à saúde da população.
Resolvendo antigos problemas com soluções a partir da favela, podemos mobilizar a população na limpeza de seu território e ampliar a consciência sanitária. Além de criar emprego e fonte de renda, melhorando a vida de diversos moradores que sofrem com os impactos da política de segurança pública, inclusive nesta criminalização dos nossos trabalhadores.