Revenda por catálogo no Complexo da Maré (RJ)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Implementado no Brasil a partir dos anos de 1940, o Sistema de Vendas Diretas (SDV) já possuía certa relevância para a economia doméstica de territórios como os Estados Unidos e países europeus, desde os séculos XVIII e XIX, com os vendedores de enciclopédias e itens de perfumaria. Essa modalidade de vendas estipula dois elementos fundamentais: a comercialização de bens de consumo fora de um ponto comercial fixo e as interações face a face, que caracterizam a chamada “venda por relacionamentos”. As revendedoras por catálogo do Complexo da Maré demonstram modos distintos de configuração das vendas diretas em seus territórios. Lidas pela política pública como subempregadas, desempregadas, beneficiárias de programas sociais ou simplesmente informais, elas fazem com que a revenda seja um universo múltiplo cotidianamente. No geral, elas começaram a vender “revistinhas” para se manterem ocupadas, para juntar o “útil ao agradável” por já consumirem os produtos, pela associação a outras ocupações como a de manicure, ou então, pela necessidade de fazer dinheiro. Permanecem em atividade, em resposta quase uníssona, porque “gostam” e tem “prazer” em revender.

Contrariando a ideia de que a revenda é fundamentada na comercialização fora de pontos comerciais fixos, elas estabelecem tais pontos, sejam eles salões de beleza, lojas, “boutiques” congregadas à salões, barracas em feiras tradicionais da favela, criando espaços de sociabilidade entre vendedoras e consumidoras que são permeados por outras sociabilidades, como a religiosa. Isso não significa que elas não se locomovam pelo território. Pelo contrário, tecem redes de clientes que perduram no tempo-espaço através dos seus laços de proximidade (vizinhos, familiares, amigos) que as fazem se locomover dentro de um raio de circulação específico, fazendo com que percorram alguma distância. Distância essa que também é mediada pela forma como se apropriam das ferramentas digitais para executar essa tarefa - os status do Whatsapp se transformam em um jornal de ofertas das campanhas ao mesmo tempo que é um meio para realizar cobranças.

Neste verbete, enfocarei a relação da revenda com o território da Maré. A revenda por catálogo é composta por elementos físicos, materiais e objetivos que desempenham papéis importantes no fazer dessa atividade. Ela implica em uma circulação material e na circulação das próprias revendedoras, a medida em que distâncias são percorridas dentro e fora da favela: entre as redes territoriais que vão sendo conformadas por relações subjetivas, e as coordenadas dos dados no online que garantem que os pedidos sejam feitos e entregues em seus destinos finais. A constituição de espaços de revenda – sejam eles quais forem – ocasiona relações que extrapolam as fronteiras do comércio, estipulando espaços de sociabilidade entre essas mulheres. A revenda participa do plural comércio da Maré como qualquer outro tipo de negócio. As mulheres transformam espaços com os quais possuem vínculos pessoais em pontos de comércio – como a casa –, e criam outros espaços especificamente para revender – como lojas ou barracas na feira – ou se utilizam de algum que pelo menos comporte essa atividade – como os salões de beleza. Os "espaços de revenda" se configuram enquanto espaços de experiência compartilhada entre mulheres, abrangem as circulações que as revendedoras fazem entre eles e acomodam para além de produtos, as relações socioeconômicas.

O jogo de divisão do território por onde elas vendem se dá a partir das experiências de vendas que elas vão acumulando com o tempo, e no geral, se baseia na confiança entre vendedora e cliente. Uma particularidade da Maré é que o comércio tende a ser mais noturno devido à grande parte de seus moradores estarem voltando do trabalho nesse momento. Isso também influencia na logística da janela de horários que as revendedoras vão estar disponíveis para revender. Igualmente, É bastante comum haver barracas nas calçadas das ruas durante a semana. Nos fins de semana, elas se multiplicam e compõem as feiras livres das ruas principais, como a Teixeira Ribeiro na Nova Holanda, desde o início da manhã até tarde da noite. Nelas, a revenda também se faz presente. É possível “colocar a barraca na feira” em épocas festivas para aproveitar a movimentação por presentes e lembrancinhas, como no Natal, mantê-la durante o ano inteiro todos os dias da semana ou apenas nos finais de semana. A revenda fazer parte da paisagem das feiras evidencia as múltiplas possibilidades de maneiras para a realização de vendas no território da Maré, além de indicar que esses tipos de produtos estão, de alguma forma, presentes no cotidiano de seus moradores. Outros recursos são utilizados pelas revendedoras para fazer com que a revenda aconteça, como vitrines em lojas e salões, deixar a revista com a manicure para ela mostrar para as clientes (e posteriormente, ganhar uma porcentagem em cima do que foi vendido) e a congregação de empreendimentos em um só (ou seja, transformar lojas de revenda e outro tipo de estabelecimento em uma única loja).

O estabelecimento dos pontos fixos demonstra certa territorialidade monetária na divisão dos espaços do Complexo da Maré. As revendedoras precisam manejar o dinheiro que entra com a revenda dos produtos e o dinheiro que sai com o pagamento dos aluguéis de seus espaços. A territorialidade monetária demonstra que a heterogeneidade das favelas da Maré compreende, dentre outros fatores, uma multiplicidade de ofertas e preços em torno dos imóveis baseada na proximidade ou distâncias de lugares atravessados por diversas classificações, como “perigosos” ou “bons para as vendas”. A revenda por catálogo no Complexo da Maré, sobretudo, demonstra a construção cotidiana de diversas formas de ganhar a vida bem como de utilização e apropriação dos espaços na favela.