Ruth Barros

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Autoria: Diego Francisco.

Sobre[editar | editar código-fonte]

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Dedicar parte de sua trajetória a contar e registrar a história do lugar onde nasceu, cresceu e vive é até hoje uma das lembranças mais “gostosas” que Ruth Barros preserva. A moradora do morro do Borel, criadora do Projeto Condutores de Memória conta que a única coisa que a deixou triste foi não ter conseguido erguer o Centro de Memória do Borel. “Depois de tantos anos, é muito triste ver que o acervo que construímos já se perdeu bastante. Um pouco ficou comigo, outra parte com a Mauriléa, mas os documentos vão se perdendo”, lamenta.

Aos 68 anos de idade, Ruth coleciona boas histórias não apenas do projeto que criou, mas também da favela que viu crescer e se organizar nas mãos de trabalhadores e trabalhadoras como a sua mãe, de quem tem as primeiras lembranças de luta no Borel. “Eu via minha mãe trabalhando e ajudando nos mutirões, fazendo comida, era sempre um acontecimento. Eu era jovem, mas lembro bem. Eu vi o Borel se transformando na base de muita luta dos moradores e das moradoras!”

Ruth nasceu em 11 de julho de 1951, filha mais velha de três irmãos. Como cresceu no Borel, sem nunca ter morado em outra localidade viu as mais diversas transformações que ocorreram ali. Nunca de maneira distante, mas sempre engajada seja por força da participação da família, ou, mais tarde, por desejo próprio. A primeira escola que Ruth frequentou foi a Escola Municipal Araújo Porto Alegre, localizado na Usina, distante alguns minutos do Borel.

Foi no Instituto Santa Rita, escola de freiras também na Tijuca, que cursou o ginásio. “Foi um custo enorme conseguir uma vaga lá, mas ela insistiu e eu fui”, conta sobre a escola que não existe mais atualmente. O Ensino Médio foi concluído anos depois, no supletivo do Telecurso 2000, iniciativa da Fundação Roberto Marinho.

Uma história de engajamento[editar | editar código-fonte]

“Eu cresci ouvindo que a gente tinha de lutar para conseguir as coisas. Minha mãe falava sempre que tudo que a gente tinha foi conquistado com luta. E valia pra dentro de casa e fora dela. No Borel, foi tudo com luta. Para ter água, luta. Para ter direito a morar, luta. O que teve foi luta!”, conta.

Foi na Igreja Católica, aos 15 anos, que Ruth começou a participar dos trabalhos voluntários. Depois, com a implantação do Serviço Social da Capela Nossa Senhora das Graças, construída no Borel sob os esforços do padre Olinto. “Quando o padre Olinto chegou e se instalou nas proximidades do Terreirão, perto de onde eu morava, foi uma mobilização muito grande. Primeiro veio o Centro Comunitário, depois a construção da igrejinha (a capela Nossa Senhora das Graças) e os serviços que foram nascendo ali. Tinha apoio jurídico, o supletivo e, mais tarde a creche”, conta Ruth.

E é a creche que se torna porta de entrada para a vida profissional de Ruth. Em entrevista a Marcella Araújo, em 2012, Ruth contou um pouco como foi esse processo. “Se inscreveram 33 mulheres daqui com a Chácara do Céu. A seleção foi aberta para a comunidade, para mulheres. A questão de idade era até 50 anos e que soubesse ler e escrever e que conhecesse alguma coisa, que participasse da comunidade. Não era liderança, não se falava em liderança, mas uma pessoa que tivesse um vínculo com a comunidade. Uma pessoa que conhecesse a comunidade poderia se inscrever”.

E Ruth se inscreveu para participar do processo de seleção para uma das seis vagas de agente auxiliar de creche. “Eu nunca tinha trabalhado com crianças, mas conhecia bem a comunidade e o que se passava ali. Precisava do emprego e queria muito. Oportunidade quando aparece assim a gente precisa agarrar”, ensina.

Ruth foi uma das seis selecionadas e conta que esta experiência foi bem singular. “Não bastou ser selecionada, a secretaria tinha os recursos para pagar as agentes e merendeiras, mas a creche não estava de pé. Aí você já sabe, mais luta”, conta rindo. “A gente tinha o espaço mas não tinha mobília, então resolvemos pedir, fazer bazar, tudo que dava”.

Ruth conta que a mobilização da creche Raio de Sol inspirou as ações que fizeram. “vimos que o pessoal de lá tinha feito bazar, então a gente começou com bazar pedindo. Só que a gente começou com mais bazares e não pedíamos só aqui na São Miguel para os carros. A gente começou a pedir nas instituições, como no Colégio São José, no Hospital Ordem Terceira da Penitência, fomos no Colégio Regina Coeli, na Igreja São Camilo, em vários órgãos por aqui. A gente começou a pedir o que eles tinham para doar para a gente fazer bazar”, conta.

Para fazer os pedidos nas instituições, iam com um documento fornecido pela Prefeitura com o compromisso de criação da creche. Somaram a esse documento, um ofício da Associação de moradores e foram à luta. Segundo Ruth, as instituições doaram “coisa boa”: janelas, portas, vasos sanitários, carteiras velhas, roupas velhas, etc., que foram colocados à venda a preços baratos em bazares e em barracas do mercado informal montado na entrada da favela. Com o dinheiro levantado, as mulheres começaram as reformas do espaço da associação de moradores e compraram mobília e material para a creche. Como as obras eram feitas aos finais de semana, num esquema de mutirão, elas estavam levando muito tempo para serem concluídas. Por isso, as agentes decidiram pagar alguns moradores do Borel como pedreiros, enquanto elas faziam estágios na creche Raio de Sol.

Ao final de um ano, já em 1983, a segunda creche começou a funcionar no segundo andar da associação de moradores. Dois anos mais tarde, as agentes comunitárias passaram a contar com a ajuda do Sr. Altamir, diretor da Escola Municipal Araujo Porto Alegre. Sua filha havia acabado de falecer tragicamente em um acidente e ele e a esposa haviam decidido fazer caridade. Ao tomar conhecimento por meio de uma de suas alunas do curso supletivo noturno – e também agente comunitária do Borel – das necessidades da creche comunitária, escolheram ajudá-la. Por mais de seis anos, Sr. Altamir foi o “benfeitor” da creche: ele doava material, realizava festas de Natal, fazia doações de presentes para as crianças, etc.

Por volta de 1985, a associação de moradores pediu o espaço da creche de volta. Com medo de que a creche fosse acabar – o que iria acontecer caso não encontrasse outro espaço –, Ruth procurou o padre Olinto. “Quando eles falaram que estavam precisando do espaço, eu, como tinha uma integração na Igreja muito grande, participava da Igreja, de tudo, dos trabalhos, falei: Gente, padre Olinto comprou a casa que era do Ademir. E essa casa padre Olinto comprou para fazer um outro centro comunitário, um outro Centro Primeiro de Maio, porque lá no centro comunitário já não estava dando vazão. Tinha curso de eletricista, marceneiro, manicure, tinha os educadores, mecânico, artesanato, datilografia, cabeleireiro. Ele comprou essa casa do Ademir para colocar cabeleireiro, manicure, tudo num lugar só”, conta.

Após pouco tempo funcionando no segundo andar da capela, a creche foi transferida para o prédio de expansão do Centro Comunitário Primeiro de Maio.  Sr. Altamir, o benfeitor, ao tomar conhecimento da transferência de prédio, fez um pedido às agentes comunitárias: que batizassem a creche com o nome de sua falecida filha. Na transferência para o novo – e até hoje o mesmo – prédio, a creche foi batizada com o nome da filha daquele “benfeitor”, como forma de retribuição por toda a ajuda oferecida durante anos.

Da creche para a Secretaria de Habitação[editar | editar código-fonte]

Depois de dez anos de atuação na creche Santa Mônica, Ruth começou a trabalhar na Secretaria Municipal de Habitação (SMH), como supervisora da equipe de agentes comunitárias do Programa Favela-Bairro, vinculada à Coordenação de Educação Sanitária, atuando em favelas da Grande Tijuca, Penha e Jacarepaguá. Essa experiência foi crucial para o que viria a ser o Condutores de Memória alguns anos depois. “Trabalhar no Favela-Bairro me fez ver um novo processo de transformação nas favelas acontecendo na minha frente. Se antes a gente fazia mutirões, se organizava para garantir o mínimo, pela primeira vez a prefeitura estava fazendo uma grande intervenção. Foi muito impactante. No trabalho com as agentes comunitárias, eu tive a oportunidade de ver outras realidades e conhecer outras favelas. E eu sempre fiquei com uma coisa grudada na cabeça de que as histórias daquelas pessoas precisavam ser contadas, registradas”, diz.

No caso específico do Borel, Ruth conta que ficou feliz de ver acontecendo uma grande obra de saneamento, de redistribuição de água, de padronização das ruas e até abertura de novas vias, como o caso da Rua Nova. “A gente estava vendo uma grande transformação acontecendo e tinha uma grande expectativa também. Imagina, iam criar uma rua nova, muitas casas seriam demolidas, mas com a promessa de morar em um prédio na rua São Miguel ou ser indenizados para comprar uma casa em uma parte melhor do morro. Durante o Favela-Bairro, tinha o trabalho enquanto Estado, agente, que tinha de dar muitas informações, acalmar as pessoas e tinha a moradora, vendo muita coisa que a gente sonhou durante muito tempo”, relata.

As mudanças no Borel foram muito significativas, mas Ruth lamenta que a necessidade de manutenção por parte dos órgãos públicos ainda deixa a desejar. “Foi muito bom ver o saneamento chegar e a água encanada chegar em mais casas, mas a manutenção é algo que tem de ser frequente. Hoje ainda se sofre muito com falta de água. Fico lembrando que este é um dos problemas que nos acompanham desde que o Borel é Borel”, diz.

A experiência com a promoção da Saúde da Mulher[editar | editar código-fonte]

Ruth atuou como educadora da ONG Gestão Comunitária como educadora na área de saúde. Ali acumulou experiência na área de promoção da saúde da mulher e prevenção de DST/Aids, por meio de palestras e participação em diversos eventos da comunidade. Participou de diversos treinamentos na área de saúde da mulher, organizados pela ONG Gestão Comunitária e pela Sociedade Beneficente São Camilo. Nesse mesmo período, foi conselheira distrital de saúde da AP 2.2 e participou de várias conferências sobre a mulher.

Em 1999, recebeu da Câmara Municipal do Rio de Janeiro moção de louvor e reconhecimento pelo trabalho social voluntário realizado nas comunidades da Grande Tijuca.

Condutor(as)es de Memória[editar | editar código-fonte]

A experiência como agente comunitária e as lembranças da história do Borel foram cruciais para o desenvolvimento do projeto Condutores de Memória, formulado no âmbito da Agenda Social Rio em parceria de Mauriléa Januário e Maria Aparecida Coutinho. “O projeto foi uma beleza. Eu fico muito feliz de ter feito algo que tenha marcado tanto a minha história. Lembro como se fosse hoje cada oficina que a gente realizou”, conta.

Ruth relata a impressão que tinha durante as oficinas e de como era ver pessoas que a viram crescer, compartilhando as suas histórias, que eram histórias de todos. “Quando eu via nas oficinas, as primeiras que geraram os livros e o material que usamos depois nas escolas e nos projetos, cada pessoa orgulhosa de contar sua história, de lembrar como era o Borel quando eles chegaram aqui eu ficava muito emocionada também”, diz.

O projeto foi realizado entre os anos de 1999 e 2006 no Morro do Borel, e algumas favelas da Grande Tijuca, no Rio de Janeiro. Através do resgate da memória a iniciativa visava construir representações positivas sobre o morador desses espaços, como contraponto às imagens correntes ligadas ao tráfico de drogas e violência urbana.

Em 2002, uma das 20 mulheres que melhoram o Brasil[editar | editar código-fonte]

No ano de 2002, acumulando o trabalho como agente comunitária a atuação como educadora de saúde e o trabalho com o projeto Condutores de Memória, Ruth foi reconhecida pela revista Istoé Gente como uma das “20  mulheres que melhoram o Brasil”. Figurando ao lado de mulheres como a ex-ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, a ex-ministra do Supremo Tribunal Federal, Elle Gracie, a cineasta Katia Lund, a ex-primeira-dama Marisa Letícia da Silva, a apresentadora Hebe Camargo e a atriz Fernanda Montenegro, entre outras personalidades.

Perguntada sobre o porquê de uma mulher negra, moradora da favela do Borel figurar entre as selecionadas, Ruth explica. “Foi uma surpresa enorme. Que bacana que você achou isso! Naquela época, o trabalho com as mulheres era uma referência. A gente distribuía preservativos, ouvia os relatos de mulheres, ensinava como se prevenir de doenças sexualmente transmissíveis. A ação era realmente muito eficiente. A gente não tinha posto de saúde no Borel ainda, então se tornava referência. Mas o trabalho foi chegando a outros lugares também. Com a existência do Condutores de Memória, mais ainda. A gente participou de muitas reportagens sobre o projeto, isso deu muita visibilidade. E é emocionante. Você sabe que o trabalho que desenvolveu não foi à toa. É muito especial”, conta.

Depois das lutas, o descanso.[editar | editar código-fonte]

Atualmente Ruth Barros é aposentada e dedica os dias a cuidar das netas, são três, mas duas vivem com ela. “Hoje elas são o meu projeto especial. Eu adoro ficar com elas, vê-las crescer. Depois de criar três filhos homens, vieram as netas, mulheres para que eu revivesse a experiência. É todo dia um desafio, que eu amo”, se diverte.

Ruth também se dedica à igreja com muito afinco. Ela participa como leiga cabriniana da Congregação das Irmãs Missionárias do Sagrado Coração de Jesus Madre Cabrini. Atua na Igreja São Camilo de Lelis, na Usina. “Eu também participo das celebrações na capela Nossa Senhora das Graças, mas hoje o trabalho é mais estabelecido na São Camilo. Eu amo participar e estar nas missas”, conta.

“Muita coisa mudou muito rápido nos últimos anos, a gente viu a UPP chegar, a UPP quase acabar, as pessoas mudaram muito também. Eu sinto falta da solidariedade que a gente tinha aqui, da noção de que tudo era para todo mundo. Antes as pessoas varriam a calçada pensando no vizinho, se ajudavam. Hoje é cada um por si. Isso é triste, porque a nossa vivência vai sendo modificada”, relata.

“Eu tenho muito orgulho de fazer parte da história do Borel e de ter conseguido registrar essa história, de saber que meu trabalho colaborou para alguma coisa. Eu lamento muito que a gente não tenha conseguido finalizar o projeto como a gente sonhava, com um Centro de Memória, mas é assim que é a vida: a gente luta pra conseguir e fica feliz quando vê que os resultados, mesmo sendo diferentes do que a gente sonhou, são bons resultados”.