Saúde mental: jovens mareenses e o cuidado para salvar vidas

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco


Neste especial, falaremos sobre saúde mental para que todas as pessoas saibam que não estão sozinhas — seja cuidando de si, acompanhando algum familiar ou amigo no cuidado psicológico, ou ainda atuando no território, contribuindo para a melhoria da saúde da população, tratando suas questões psicológicas. Os textos foram, primeiramente, publicados no jornal "Maré de Notícias", em setembro de 2023, recebendo autorização da autora para reprodução.

Autoria: Thaís Cavalcanti

O Setembro Amarelo[editar | editar código-fonte]

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), “saúde mental é um estado de bem-estar no qual o indivíduo é capaz de usar suas próprias habilidades, recuperar-se do estresse rotineiro, ser produtivo e contribuir com a sua comunidade. A saúde mental implica muito mais que a ausência de doenças mentais”.

O Setembro Amarelo é uma campanha que nasceu em 2014 no Brasil, lançada pelo Centro de Valorização da Vida (CVV), o Conselho Federal de Medicina e a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). O mês foi escolhido por ser o 10 de setembro o Dia Mundial de Prevenção do Suicídio.

Por isso, essa é a hora e o espaço para mostrar a importância do cuidado psicológico e da prevenção ao adoecimento mental. Não só fisicamente, todos nós estamos suscetíveis ao adoecimento mental em algum momento da vida. Por isso, precisamos falar sobre isso com amigos, familiares, com pessoas de confiança e profissionais de saúde. Para garantir esse suporte, os serviços públicos de apoio psicológico têm que estar acessíveis e disponíveis.

Durante a pandemia de covid-19, a OMS se preocupou com as questões de saúde mental que surgiram em todo o mundo. A saúde mental no Brasil é um direito previsto em lei. Mas durante a pandemia a postura negacionista do então governo Bolsonaro e a falta de investimentos em saúde impediram a continuidade de serviços públicos voltados para a saúde tanto física como mental.

No território, a pronta ação de projetos e coletivos fez a diferença nesse período. Um estudo divulgado na revista online BMJ Global Health mostrou como o projeto Conexão Saúde: De Olho na Covid desempenhou um papel importante na diminuição das taxas de mortalidade e de letalidade da doença na Maré.

Houve uma redução de 46% na taxa de mortalidade e, com a testagem em massa, aumento em 23% dos casos notificados de covid-19 no território (possibilitando tratamento rápido para os moradores) em comparação a outras favelas.

A iniciativa, que durou de junho de 2020 a março de 2022, envolveu testes rápidos, atendimento médico e psicológico online, orientação para isolamento domiciliar seguro e ações de comunicação no território, com ênfase no combate à desinformação.

Já são três anos desde o início da pandemia, e precisamos buscar o tempo de cuidado perdido. O Setembro Amarelo é o mês da prevenção ao suicídio e é a maior campanha antiestigma do mundo, reforçando que o cuidado com a saúde mental pode salvar vidas — ela não é fraqueza ou “coisa de rico”.

Doenças como depressão, ansiedade, estresse e as síndromes de Burnout (esgotamento emocional motivado por trabalho excessivo) e do pânico são muito comuns em moradores de favelas. Então, vamos falar sobre isso? Acompanhe as próximas publicações sobre: lutas cotidianas para lidar com a saúde mental; juventude mareense e saúde mental; e onde encontrar apoio psicológico.[1]

Força comunitária transformando realidades[editar | editar código-fonte]

A população de favela vive desigualdades e sofrimentos cotidianos, muitas vezes motivados pela violência. E o agravamento desta realidade se mostrou ainda mais desafiador quando o inimigo era invisível.

A pesquisa da organização Movimentos, Coronavírus nas Favelas: a Desigualdade e o Racismo sem Máscaras, mostrou como a pandemia da Covid-19 piorou a ansiedade, a tristeza e a insônia dos moradores dos territórios. O estudo também reforça que não é papel de coletivos e organizações prover a assistência em saúde, e sim um dever do Estado.

A psicóloga Hévelin Vasques, nascida no Parque União, coordena o Espaço Ser, projeto de atendimento psicológico criado com apoio do pastor Sérgio Mota, da 1ª Igreja Batista no Parque União.

Como membro da igreja, ela faz a ponte entre pacientes e psicólogos, que cobram um valor simbólico, para garantir o compromisso do paciente com o serviço e pagar o profissional. “A gente sabe que ainda existe um preconceito muito grande sobre o assunto, mas vejo que as igrejas e as pessoas estão mais abertas. Os líderes estão permitindo falar sobre saúde mental dentro desses espaços. Na Maré, por exemplo, as pessoas são mais abertas para esse assunto, principalmente os adolescentes”, diz.

Embora sala de atendimento seja anexa à Igreja, o projeto é independente e frequentado por pessoas de todas as religiões. “A fé tem um papel importante na vida do ser humano e, ao profissional de psicologia, não cabe o julgamento do paciente”, afirma Hévelin.

A articulação local fez a diferença num conjunto de favelas tão grande quanto a Maré. Quando a tendência de automutilação entre jovens começou a crescer, clínicas da família, o Núcleo de Apoio à Saúde da Maré (NASF) e o Centro de Atenção Psicossocial Infanto Juvenil (CAPSi II) se uniram para apoiar os pacientes.

O Espaço Ser conta com sete psicólogos parceiros e faz cerca de 65 atendimentos todo mês. Os atendimentos começam às 8h e podem terminar às 22h.

Quem chegou como paciente para cuidar da depressão, anos atrás, foi Douglas Santos, morador do Parque União: “Foi bem difícil esse período, eu entendia que era uma doença séria e sabia que não podia negligenciar. Tive que ser corajoso e vi como falar pode ser transformador.”

Também fizeram diferença para ele a medicação, amigos, uma rotina de exercícios físicos, leitura, banhos de sol, sono regulado e alimentação saudável. Quando se formou psicólogo, Douglas voltou ao projeto, agora do outro lado. Há dois meses ele divide sua rotina entre seu trabalho à noite e os atendimentos psicológicos durante o dia: “Minha volta foi muito simbólica, até me emocionei. Hoje estou fazendo algo que no passado fizeram por mim.”

Os problemas mentais são desencadeados por uma situação específica ou por uma combinação de fatores. A violência no território pode ser um agravante, como mostra a Pesquisa Construindo Pontes (2021), realizada pelas organizações Redes da Maré e People’s Palace Project, do Reino Unido.

Um a cada três adultos da favela tem sua saúde mental afetada pelos conflitos armados. Somam-se a este fator o histórico familiar, o racismo, a LGBTfobia, o desemprego, traumas e demais problemas sociais, físicos e psicológicos que aumentam as chances de adoecimento mental. Como consequência deste cenário, há o aumento dos quadros de ansiedade e do uso abusivo de álcool e outras drogas.

Os moradores da Maré não estavam sozinhos para encarar essa realidade durante a pandemia. Marluce da Mata entrou como voluntária na startup social SAS Brasil em 2020 e hoje é coordenadora de Saúde Mental da instituição. Durante dois anos de pandemia ela atendeu, por meio de consultas online, moradores da Maré pelo projeto Conexão Saúde: De Olho na Covid.

“A Maré foi uma comunidade que abriu as portas para nós. A gente via a valorização das pessoas na saúde mental e o nível alto de estresse, ansiedade, depressão e luto — especialmente devido à covid-19”, diz.

A SAS Brasil ofereceu teleatendimentos gratuitos para tratar da saúde física e mental. Só na Maré e em Manguinhos, foram 3.775 atendimentos até o segundo semestre de 2021 — um projeto pioneiro, gratuito e de amplo alcance na favela[2].

Juventude também precisa de cuidados[editar | editar código-fonte]

Cada mudança ou desafio enfrentado tem um impacto importante na vida do jovem morador de favela. A Rede de Jovens Promotores da Saúde (RAP da Saúde), é um projeto da Secretaria Municipal de Saúde que contribui positivamente no apoio a essa transição.

Mais do que pensar ações de conscientização para meses como o Setembro Amarelo, o RAP é uma ponte que liga a unidade de saúde ao jovem, tornando-o protagonista no próprio território.

Micael Dutra é morador do Piscinão de Ramos e professor do grupo Alakazam. Ele conheceu o RAP ainda criança, participando das rodas de leitura oferecidas pelo Centro Municipal de Saúde Américo Veloso.

“Quando cresci, entrei na equipe como multiplicador e depois, virei dinamizador. Mesmo sendo jovem, é importante ter uma formação na promoção de saúde, num espaço onde você é tratado como responsável pelas atividades. Ali, aprendi que saúde não significa ausência de doença. Antes de entrar na Rede, eu não me conhecia totalmente. Saber quem eu sou também é uma forma de saúde”, explica.

Milena Dutra, moradora da Roquete Pinto e articuladora territorial, foi cria do RAP assim como seu primo Micael. Hoje ela é apoiadora do grupo.

“A ideia do RAP é a gente ser capacitado nas instituições da favela e dar informações de saúde para jovens em vulnerabilidade, seja por meio da música, da aula de teatro ou de uma conversa”, diz.

Hoje, 20 jovens selecionados aprendem sobre diversos temas em saúde e multiplicam as informações para mais adolescentes em seus territórios. Milena reforça que “mais do que multiplicar, a ideia é que o jovem entenda o que é saúde, que a gente precisa se cuidar, se amar e como isso pode melhorar a consciência no dia a dia”.

Stallone Abrantes é psicólogo e atende jovens na ONG Luta Pela Paz (LPP) na Maré há quase cinco anos. Ele conta como o vínculo esportivo pode ser um recurso importante para o jovem “colocar para fora” o que está passando. Segundo ele, a família nem sempre é a primeira a saber.

“Garantir a saúde mental envolve o jovem ter emprego e alimentação, e acesso à saúde, ao lazer e às práticas comunitárias. Por exemplo, vi um jovem descobrir que podia perder a visão, um problema físico. Isso o deixou com medo de não conseguir atendimento hospitalar, desencadeando uma questão de saúde mental. Ao fortalecer esses sistemas, vamos diminuir a possibilidade de adoecimento no campo psicológico”, explica Stallone[3].

Você sabia?[editar | editar código-fonte]

O atendimento público é o principal meio através do qual os mareenses obtêm cuidados psicológicos e psicossociais, da primeira consulta ao acesso a medicamentos gratuitos.

No Sistema Único de Saúde (SUS) existe a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), com serviços e espaços que dão apoio integral e gratuito para quem precisa de atendimento psicológico. A rede abrange os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS); os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), os Centros de Convivência e Cultura, as Unidades de Acolhimento (UAs) e os leitos de atenção integral (em hospitais gerais e nos CAPS III).

Trabalhando junto à RAPS, estão organizações locais que contribuem para a redução de danos da população mais vulnerável. Vanda Canuto é cria da Vila do Pinheiro e coordenadora do Espaço Normal — Espaço de Referência sobre Drogas na Maré.

Esse equipamento da Redes da Maré recebe diariamente cem pessoas, em média, e tem como objetivo ser um espaço de convivência (pessoas que estão em situação de rua e que têm questões de saúde mental são acompanhadas por outros equipamentos públicos de saúde).

O espaço não oferece assistência psicológica e funciona na verdade como ponte. A ideia é ampliar os cuidados através do exercício dos direitos da população invisibilizada dentro e fora da Maré, e dar voz e lugar a quem não tem acesso à saúde.

Vanda conta que “tem pessoas que precisam ser encaminhadas para o CAPs. Já outras, a gente entende que a saúde mental envolve a questão socioeconômica, ou que o sofrimento delas é causado pela falta de políticas públicas. Com um atendimento voltado para educação, arte, cultura, trabalho e renda, conseguimos fazer com que a pessoa consiga lidar com o problema de outra forma.”

Ver também[editar | editar código-fonte]

Mobilização e comunicação do projeto Conexão Saúde na Maré: uma experiência de inovação e escuta (relatório)

Coronavírus nas favelas: a desigualdade e o racismo sem máscaras (relatório)

Educação de meninas e Covid-19 no conjunto de favelas da Maré (relatório)

  1. Especial de campanha ao cuidado da saúde mental no Maré de Notícias reforça a importância do debate psicológico. 22 de setembro de 2023.
  2. Especial saúde mental: lutas cotidianas para lidar com a saúde mental. 23 de setembro de 2023.
  3. Especial saúde mental: juventude mareense também precisa de cuidados. 24 de setembro de 2023.