Travessias do beco - a educação pelas quebradas

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco


O ensaio explora a ideia de "rolê" pelas periferias como uma experiência de pensamento, relacionando a aprendizagem da sobrevivência nas periferias urbanas com uma pedagogia da crueldade. O texto destaca como essa experiência se estende à escola, revelando elementos desprezados e materiais infames que desafiam a lógica pedagógica convencional, promovendo uma invenção conceitual necessária à construção de uma lógica do aberrante.

Autoria: Fabiano Ramos Torres[1]

Sobre[editar | editar código-fonte]

Este ensaio propõe o rolê pelas periferias como experiência de pensamento. Periferias da cidade, da escola, do desejo e do saber. Compreendido como prática de se deslocar, dar uma volta, um passeio descompromissado pela cidade, o rolê é prática aberta aos riscos e perigos do caminho. O que se propôs neste trabalho foi uma travessia dos signos e acontecimentos de uma outra aprendizagem presente nas periferias da cidade, onde o aprendizado da sobrevivência diz respeito a uma espécie de pedagogia da crueldade que relaciona o sofrimento e a alegria na resistência das invenções cotidianas. Nessa travessia, a experiência do rolê é desdobrada também no interior da escola, considerando que esta possui seus becos e vielas, suas periferias de onde emergem os restos, as sobras, o que ficou de fora, o torto, o estranho, o esquisito, o sem sentido, o ilógico, o monstro e a aberração pedagógica. A travessia do beco, apresenta-se, deste modo, como alegoria da sobrevivência e é compreendida como a via periculosa em que o corpo é convocado a explorar suas potências. Para tanto, foram elaborados para essa pesquisa, dispositivos de escuta do acontecimento e da produção aberrante - esta, compreendida como materiais e matérias infames, elementos desprezados seja no cotidiano da escola ou da cidade. Assim, os signos e acontecimentos, presentes na vida dos jovens e adolescentes das periferias, como as jornadas de junho, o rolezinho, o fluxo do funk e ocupações de escola, bem como as pichações escolares, os blocos sonoros inarticulados, os desenhos, as frases, assinalam saberes insurrectos e instituintes que relacionam, agonisticamente, as periferias da cidade e a escola formal. A ficção pedagógica produzida na experiência de pensamento do rolê figura, então, como fabulação operante na elaboração das produções aberrantes, possibilitando capturar o indizível no dizível, o invisível naquilo que é visto e o impensado nisso tudo que nos atravessa na travessia dos becos. Isso nos permite escutar uma outra história da educação escolar e da cidade, entendendo a relação entre o insignificante, o inexplicável, o absurdo e outras tensões muitas vezes insuportáveis, tanto para o corpo escolar como para a cidade. A cartografia desta produção é uma cartografia do processo desejante que abre janelas para o devir das instituições escolares e dos estratos da cidade, estabelecendo vias de comunicação com o fora, colocando a subjetividade em questão e mostrando como é possível a invenção de novos processos de constituição de si e do viver-junto. Tal como os errantes das cidades recusam a submissão ao controle total dos planos urbanísticos, assim também os alunos recusam os planejamentos da arquitetura do saber: o que se identificou durante o rolê pelas periferias da escola, foi que junto ao não constantemente proferido pelo jovem e ao jovem, está presente o sim e a afirmação da vida marcada pela agonística das sobrevivências: de um lado, a falta, de outro, a produção. O aprendizado que o rolê pelas periferias proporcionou enquanto experiência de pensamento foi o da invenção conceitual necessária à construção de uma lógica do aberrante.

  1. Professor de filosofia, nascido e criado as periferias, doutor em educação pela USP, trabalha como professor universitário e como professor do ensino médio em áreas periféricas. A seguir o resumo da tese de doutorado "Travessias do beco: a educação pelas quebradas".