Vivendo com os pés no esgoto

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Vivendo com os pés no esgoto expõe o sofrimento de moradores de São Gonçalo com falta de saneamento básico e enchentes sucessivas.

Autoria: Larissa Moura, Maria Eduarda Mariano e Maria Raiane de Oliveira[1]

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Esgoto aberto, em São Gonçalo. Foto: Larissa Moura.
Esgoto aberto, em São Gonçalo. Foto: Larissa Moura.

Por mais de duas décadas, em quase todos os verões, o aposentado Rubem Moura carregava baldes de água da chuva para fora de casa. Sempre que chovia, a casa no bairro da Trindade, periferia de São Gonçalo, ficava alagada.  Em fevereiro deste ano, em mais uma das chuvas torrenciais, Rubem, aos 80 anos, cansou dos baldes. Sem forças nos punhos, passou a viver com os pés na água turva. Logo depois, começou a sentir fortes dores no peito e mal-estar. Levado ao hospital, morreu poucos dias depois. A família suspeita de leptospirose, uma doença transmitida pelo contato com a urina de ratos e que ocorre em locais de infraestrutura e saneamento básico precários.

A neta de Rubem, estudante de Nutrição da UFRJ Brenda da Silva, 22 , diz que os moradores do bairro vivem em sobressalto diante da ameaça de enchentes: “Está tudo bem até a próxima chuva.” A preocupação da jovem reflete o sentimento de boa parte da população de São Gonçalo. Segundo o SNIS, Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, 66,3% da população gonçalense afirma que não é atendida com o serviço de esgotamento básico. Além disso, de acordo com o Instituto Trata Brasil, São Gonçalo é a quinta pior cidade do país em acesso a saneamento.

Brenda conta que o avô, doente e sem forças, não conseguiu mais tirar a água da chuva. “Até agora, a casa dele está com água parada, água de enchente. Ele estava vivendo com os pés na água de esgoto.” Brenda diz que a família suspeita da existência de um ninho de rato próximo à residência, o que reforça a possibilidade de o idoso ter contraído leptospirose e a doença não ter sido identificada pelos médicos. No dia em que o aposentado foi levado ao hospital, com dores no peito e mal-estar, sintomas de leptospirose,  não foi realizado um teste para descartar a possibilidade do aposentado ter contraído a doença.

No dia 1º de março, a prefeitura de São Gonçalo publicou nota destacando os dados divulgados pela Secretaria Municipal de Saúde e negando a ocorrência de um surto de leptospirose no município. Segundo a nota, apenas três casos da doença foram contabilizados, e oito pessoas estavam internadas aguardando o resultado do teste. O Rampas procurou a prefeitura de São Gonçalo para saber sobre o resultado dos testes, mas não houve resposta.

Entre estes casos citados na nota oficial da prefeitura,  está o do adolescente Guilherme Valentim, de 15 anos, que morreu após contrair leptospirose. O adolescente morava em um conjunto da Companhia Estadual de Habitação do Rio de Janeiro localizada no bairro Vila Lage. Sua casa foi alagada, e Guilherme acabou entrando em contato com água contaminada. Paula Fernanda, assistente social da ONG Projeto de Luz, onde Guilherme estudava, afirmou ao G1 que o adolescente contraiu a doença depois de ajudar a sua mãe a tirar a água de chuva de dentro da sua casa e, em poucos dias, começou a sentir dor de cabeça e diarreia.

O técnico de enfermagem José Renato, 56, conta que todos os anos sofre com a sua casa alagada em períodos de chuva. Ele mora há mais de 50 anos na Travessa Batista, no bairro Barro Vermelho, e afirma que a prefeitura tem ciência de que a rede de esgoto é muito antiga, precisa urgentemente de reparos, mas não consegue atender a comunidade. José denuncia também que a água potável não chega para todos os moradores do bairro..

Em meio à lama, José conta que foi até a prefeitura buscar uma solução - mas uma atendente disse que ele mesmo deveria resolver o problema. De acordo com a Lei no 11.445/2007 (marco legal do saneamento básico, estabelece diretrizes para o setor), o saneamento é um direito previsto pela Constituição Federal. Toda a população brasileira deve ter acesso a infraestrutura e a instalações operacionais de: abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana, drenagem urbana e manejo de resíduos sólidos e de águas pluviais.

Sem soluções por parte do poder público, os moradores de São Gonçalo encaram por conta própria os problemas trazidos pelas enchentes e pela falta de saneamento. Valéria Paiva, 55 anos, e seus vizinhos, moradores do bairro Vila Lage, tiveram que tirar do próprio bolso para arcar com os custos de uma obra para aumentar o nível da calçada. “Já moro há vinte e cinco anos nessa casa e sempre que chove muito, entra água. A prefeitura não resolve nada. Aqui na rua Coronel Lourenço Inácio, tivemos que aumentar a calçada das primeiras casas, incluindo a minha. Além do prejuízo de perder os nossos móveis, tivemos que fazer essa obra ”, afirmou Valéria.

No dia 14 de fevereiro, o prefeito de São Gonçalo, Capitão Nelson (PL), anunciou o pagamento do Auxílio Habitacional Temporário de R$600 às famílias que perderam suas moradias por causa das chuvas. Para os que tinham casa própria, o auxílio tem a duração de 12 meses, porém, para os que moravam de aluguel, apenas três meses. Mesmo sendo constantemente afetadas pelas chuvas, Brenda e Valéria não receberam o benefício, uma vez que ele foi destinado apenas às famílias que tiveram as casas interditadas pela Defesa Civil municipal.

As fortes chuvas no período do verão são previstas por meteorologistas e confirmadas pela recorrência anual. O último Plano Municipal de Saneamento Básico de São Gonçalo, feito em 2015, traz informações detalhadas sobre a situação de cada bairro, além de indicações sobre políticas públicas capazes de proteger os moradores contra os danos provocados pelas fortes chuvas. Entretanto, para o estudante Guilherme Valentim e o aposentado Rubem Moura, nada disso foi o suficiente.

Ver também[editar | editar código-fonte]

  1. Publicado originalmente no RAMPAS UERJ - Jornalismo em Movimento.