Manifesto das periferias e o levante periférico por direitos e voz política

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Autoria: Encontro das Periferias de São Paulo Capital

Contexto Histórico

1.1. O Encontro das Periferias surge em um momento político de várias manifestações da crise do Capital: avanço da fome, do desemprego, da questão climática, crise política, econômica, guerras, racismo e machismo, cujos efeitos atingem as populações empobrecidas e mais vulneráveis, os territórios e os sujeitos periféricos. Tal contexto, somado à ascensão da extrema direita no mundo, ao fundamentalismo religioso e ao crescimento das Fake News, coloca em risco a própria manutenção da democracia burguesa.

1.2. A formação do Brasil em seu período colonial e imperial foi baseado na exploração do trabalho escravo, que durou 350 anos. Milhões de seres humanos foram arrancados da África, vindos nos navios negreiros, sendo que a maioria destas pessoas sequer chegaram no Brasil, sendo mortas nos porões dos navios e atirados no mar. Com a abolição da escravatura em 1888, e a falta de ações do Estado no início do século XX, levaram as populações afro-indígenas a serem excluídas da formação das cidades, tanto em termos de moradia, quanto das relações de trabalho. Com este processo de exclusão formarem-se os cortiços, favelas e comunidades marginalizadas.

1.3. Na segunda metade do século XX, as grandes cidades do Brasil, em especial, a cidade de São Paulo, sofreram os impactos do chamado êxodo rural, o qual levou grandes populações habitantes de áreas rurais para o ambiente urbano. Em 1950, aproximadamente 36% da população vivia nas cidades, e hoje chega a 85%.

A exclusão social formou os cortiços, favelas e comunidades marginalizadas

1.4. Este crescimento populacional acelerado, impulsionado pelo processo de industrialização, levou a uma expansão urbana que não reconheceu as necessidades das periferias. Na verdade, o planejamento urbano excluiu a classe trabalhadora periférica, formando as chamadas periferias urbanas, na qual se concentraram os conjuntos habitacionais, as moradias populares, as ocupações irregulares e as favelas. A cidade foi pensada para excluir o sujeito periférico, o que é uma contradição, pois cada prédio e construção dessa cidade teve o envolvimento da mão de obra dos trabalhadores periféricos, como os imigrantes nordestinos, que tiveram papel fundamental na construção das rodovias, prédios, e toda infraestrutura urbana.

1.5. Em plena ditadura militar, nas periferias urbanas iniciou-se um processo de luta por direitos. Quando em 1973, surgiu o movimento contra a carestia, nos clubes mães, organizadas pela Igrejas Progressistas, da Zona Sul e se expandiu para toda a Capital, e tinha como bandeira de luta a reforma agrária, salário justo e congelamento dos preços dos produtos de primeira necessidade. Em 1977, surgia na Zona Leste e se expandia para toda a Capital, o movimento das favelas, que tinha como bandeiras de luta, a posse da terra, regularização da água e da luz. Estes movimentos foram embriões da luta pela Democracia e o fim da ditadura, mostrando que a Periferia sempre foi vanguarda nas lutas pelas transformações sociais.

1.6. Com o passar dos anos, ao longo do processo de democratização do país, nas décadas de 1980 a 2000, a falta de infraestrutura urbana, saneamento básico, acesso à moradia e aos direitos sociais se tornaram temas gritantes nas periferias de São Paulo. Movimentos populares foram criados e políticas sociais foram implementadas, a partir, das lutas sociais e da ação dos governos democrático-populares, a nível municipal.

1.7. Em 2002, com a chegada de Lula à presidência e a nova fase da política no Brasil, diversos avanços foram conquistados. O combate à fome, a inclusão do pobre no orçamento, a ampliação das políticas públicas, principalmente na saúde, educação e moradia, retomada da geração de emprego, a valorização do salário-mínimo, foram avanços que melhoraram o nível de desenvolvimento do Brasil. Este período político foi interrompido pelo Impeachment de Dilma Roussef, democraticamente eleita em 2014 e derrubada em 2016.

1.8. Posteriormente, com a ascensão de governos neoliberais e de extrema direita, de Temer e Bolsonaro, diversos avanços conquistados pelas periferias foram atacados, com a eliminação de políticas sociais, em níveis federal, estadual e municipal.

A ascensão da direita e do fascismo no poder, levaram a retrocessos nas políticas sociais e diversos outros avanços conquistados pelas periferias

1.9. Durante a pandemia da Covid 19, quando tivemos o ápice do apagamento dos governos na promoção de políticas sociais para as periferias, estes territórios sofreram o impacto das mais de 700 mil mortes, graças a debilidade do atendimento à saúde, do agravamento da pobreza e da miséria extrema. Foi exatamente nesse contexto de descaso, abandono, morte generalizada e desalento, em meio aos ataques do fascismo a nossa Democracia, que os movimentos populares se organizaram e se uniram no enfrentamento à catástrofe sanitária e econômica. Assim, milhares de ações de solidariedade eclodiram em toda a cidade, visando tanto o combate à fome quanto à proteção de trabalhadores da saúde.

Democracias em crise

2.0. Vivemos tempos catastróficos. No Brasil, a crise econômica, política e social tem afetado de forma desproporcional as comunidades periféricas. A pobreza, o desemprego, a violência e a falta de acesso a serviços básicos são a realidade cotidiana de milhões de brasileiros. Além disso, a pandemia de COVID-19 aprofundou ainda mais essas desigualdades, expondo a vulnerabilidade das periferias.

2.1. Os impactos da crise ambiental atingem preferencialmente a população periférica. É necessária uma prática política mais ousada que combata seu avanço, mas que, essencialmente, aponte-a como racismo ambiental e consequência das degradações criminosas do capitalismo e proteja a população periférica de seus efeitos.

Catástrofes climáticas, sanitárias e econômicas colocam a vida humana em risco, em especial da população periférica

2.2. A ascensão da extrema direita, a proliferação de mentiras e do fundamentalismo religioso chegam nas periferias anunciando falsas soluções, falsos messias, desacreditando a ciência e reprimindo a democracia. Estes ataques ao Estado Democrático de Direito, as tentativas de destruição das instituições, a criminalização da política, a perseguição aos partidos democráticos e populares, nos obriga a defender a Democracia Burguesa, mesmo com suas limitações, contradições e que inclusive não avança no combate às desigualdades. Conjunturalmente, alguns dos seus princípios precisam ser defendidos para garantia de acesso à direitos básicos, liberdade política e de ação, para planejar meios de construir uma conscientização de classe da população periférica.

2.3. O fascismo, com seu discurso e sua política do ódio, que julgávamos ser uma página virada da história, ressurge sob novas formas. Atualmente, ele se manifesta no autoritarismo, na censura, no fundamentalismo religioso, e a promoção da política a morte (necropolítica), na militarização da educação, e na criminalização dos movimentos sociais, culturais e de religiões de matriz africana. Em um mundo em que o fascismo ganha terreno, nossa resistência deve ser firme e organizada. As periferias precisam viver uma democracia efetiva, rompendo com a violência estatal, com o racismo institucional e a marginalização do povo empobrecido, pois é assim que o fascismo se manifesta todos os dias, com o intuito de exterminar a população periférica. O preço dos alugueis, o valor comercial de imóveis e a especulação imobiliária tem sido instrumentos de exclusão sistemática das populações empobrecidas das regiões centrais da cidade. Além disso, o sofrimento mental, que atinge praticamente 25% da população, tem gerado uma verdadeira pandemia de pessoas que perdem suas dignidades e sua saúde e passam a morar nas ruas.

2.4. No cenário global, assistimos a uma onda conservadora que se espalha como um vírus. Governos autoritários e políticas regressivas ameaçam os direitos humanos e as conquistas sociais das últimas décadas, como exemplo, temos os genocídios em curso contra os povos Palestino e a algumas nações africanas vítimas de uma política colonial, xenófoba e racista. A intolerância religiosa, a xenofobia, o capacitismo, a lgbtqiapn+fobia, a gordofobia, o etarismo e o machismo se fortalecem, alimentados por discursos de ódio e pela desinformação. Isso ecoa nas periferias, capturando também o nosso povo para essa agenda de ódio, tornando o próprio oprimido um agente usado pelo opressor. As (guerras atuais) que ameaçam nossa estabilidade, impactam diretamente os preços de alimentos, alastrando a fome, especialmente aos mais pobres. É necessário um clamor pela paz mundial.