Racismo ambiental deveria ser crime (artigo): mudanças entre as edições
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Edição atual tal como às 22h46min de 30 de dezembro de 2023
Artigo originalmente produzido para o site do Instituto ClimaInfo, no qual a jornalista e pesquisadora Tatiane Matheus entrevista a economista Rita Maria da Silva Passos, doutoranda em planejamento urbano e regional pela UFRJ, acerca dos desafios para uma legislação sobre racismo ambiental.
Autora: Tatiane Matheus (ClimaInfo).
Informações do verbete reproduzidas, pela Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco, a partir do site ClimaInfo[1].
Artigo - Introdução[editar | editar código-fonte]
Para a economista Rita Maria da Silva Passos – que trabalha há 20 anos na área socioambiental – a hegemonia de um ambientalismo branco faz com que impactos ao meio ambiente não estejam sendo racializados. “A gente fala de mudanças climáticas, e alguém diz: ‘viu o que aconteceu na Inglaterra?’. Por que não fala ‘viu o que acontece há anos na África, na Ásia, no Brasil’? Falar de racismo ambiental é politizar o meio ambiente para racializar a questão”, afirma a especialista em sociologia urbana e doutoranda em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ).
Em entrevista para a série Racismo Ambiental Brasileiro, do ClimaInfo, Rita destaca a importância da criação de uma jurisprudência para tipificar como ‘crime de racismo ambiental’ o impacto ambiental desproporcional de uma atividade econômica a povos não-brancos. Ela ressalta também que é preciso cobrar das instâncias públicas projetos de reparação de dano ambiental com base nessa perspectiva.
A Entrevista[editar | editar código-fonte]
ClimaInfo: O que é o racismo ambiental brasileiro?
Rita Maria da Silva Passos: O racismo ambiental brasileiro é marcado pela nossa colonialidade e pelo processo de modernidade. Os grandes conflitos socioambientais têm a ver com o nosso processo de desenvolvimento econômico, que é marcado pelas mesmas atividades econômicas do período colonial: a agricultura, hoje representada pelo agronegócio, e a mineração. O processo é marcado por essa colonialidade que chega ao Brasil pelos homens brancos portugueses para desapropriação de recursos naturais e de corpos não-brancos. Ela perdura até hoje e se confunde com o racismo estrutural pelos danos ao meio ambiente.
ClimaInfo: Discute-se muito sobre apropriação cultural, mas também poderíamos falar de captura de saberes tecnológicos das populações escravizadas?
Rita: A vinda dos negros escravizados para o Brasil não se deu pela força (física) deles, mas pela expertise na agropecuária e na mineração. Eram atividades econômicas já desenvolvidas por eles (na África) e com tecnologias de detecção e extração de ouro. As técnicas de plantio também. Até mesmo a localização da casa grande e da senzala (nas fazendas) é uma expertise não-branca. Tem-se a ideia de que esses já eram espaços dados quando os negros chegaram. Não. Tudo foi construído por eles. Isso tinha a ver com onde seriam a plantação e o lugar de extração. Existia todo um processo de engenharia da construção daquele espaço feito por negros e indígenas escravizados.
ClimaInfo: Como podemos enxergar o racismo ambiental vigente no planejamento das cidades? Os processos migratórios ocorridos também refletem essa questão?
Rita: Se pensarmos o êxodo rural, houve um processo de modernização conservadora que levou a tecnologia para o campo, e as pessoas (que trabalhavam nele) foram obrigadas a vir para a cidade por não serem detentoras da terra e foram para os piores espaços. A lei de terras, de 1850, foi uma das primeiras leis de zoneamento e planejamento, e limitou o acesso às terras apenas aos homens brancos. Esse processo nunca foi questionado. Os baianos, em São Paulo, e os paraibanos, no Rio de Janeiro, foram as primeiras correntes de fluxo migratório fugindo das secas e dessas dificuldades socioambientais. Na perspectiva regional e do planejamento urbano, em geral, os planos diretores, de uso e ocupação do solo e as leis orçamentárias escutam um grupo privilegiado dentro dessas políticas que tendem a dificultar as condições de moradia das populações não-brancas. É fundamental, inclusive, ver como a especulação imobiliária avança sobre esses territórios mais pauperizados em relação à infraestrutura, mas com potencial muito grande em termos ambientais e turísticos e nos quais as terras são mais baratas. Aí têm os processos de desapropriação e (deslocamento) compulsório dessas famílias para áreas ainda mais empobrecidas, com menos infraestrutura e cada vez mais distantes dos centros (urbanos).
ClimaInfo: Por que há uma dificuldade de nomear o racismo ambiental? Parece que há um incômodo de nomeá-lo assim ou é uma impressão minha?
Rita: Não é não. Gosto da (escritora) Grada Kilomba, que diz que falar sobre racismo é falar do indizível. Só dizer racismo, sem adjetivá-lo, já causou um incômodo gigantesco nas estruturas. É algo que não é para ser declarado. Falar do racismo obriga as pessoas a se posicionarem; a branquitude se coloca em uma situação de desconforto. Tem de rediscutir privilégios, inclusive, de mobilidade. A mobilidade de um homem branco pobre é diferente da de um homem negro pobre. No caso do racismo ambiental, fica mais latente, porque existe todo um processo do ambientalismo hegemônico branco que não discute as desigualdades raciais desses impactos. A gente fala de mudanças climáticas, e alguém logo fala: “viu o que aconteceu na Inglaterra?”. Por que não fala “viu o que acontece há anos na África, na Ásia, no Brasil?”? Falar de racismo ambiental é politizar o meio ambiente para racializar a questão.
ClimaInfo: Até que ponto o ESG (Environmental, Social and Governance) pensa em justiça climática?
Rita: Ele é limitado; é o limite do capital. São grandes organizações e empresas que causam vários impactos, sozinhas e em conjunto. No geral, não se vê estas coisas de maneiras integradas. Os nossos estudos ambientais são limitados a apenas uma empresa como se somente ela existisse dentro de um território. A gente pouco fala e faz um estudo real integrado que existe nesses espaços. O ESG entra nessas pol;íticas ambientais de forma a mitigar os impactos que causam ao meio ambiente. O problema está no mitigar. Estamos numa situação em que os eventos climáticos extremos são percebidos em vários lugares no mundo. Obviamente com danos desproporcionais sobre corpos não-brancos. O ESG não dá conta disso. À medida que se fala em mitigação, é sobre uma reparação pontual de um dano que é sistêmico.
Uma coisa importante da justiça climática é a desterritorialização. Determinada atividade pode estar sendo feita em um lugar e (ter seu impacto) sendo sentido em outro. Temos um problema seríssimo do ESG, porque a governança não dá conta de falar realmente e de dar transparência às atividades econômicas de grandes empresas. Se resume a práticas de relatórios de sustentabilidade, e tudo o mais, que são muito “en passant”.
Há a internacionalização dos critérios de justiça ambiental climática em cortes internacionais. Responsabilizar mais essas empresas dentro da internacionalização é fundamental. A COP26 foi nesse caminho, mas não criou mecanismos para que isso pudesse ser feito. Criou algumas diretrizes para as empresas se tornarem mais responsáveis, mas não diz exatamente como. Precisamos de mecanismos de controle sobre essas grandes corporações, porque elas são responsáveis pelos grandes impactos ambientais. Criar uma jurisprudência. Já estamos, aqui no Brasil, falando com alguns juristas nos termos de racismo ambiental, como já temos com o de racismo recreativo. Não dá para brincar com determinados termos. O racismo ambiental é sentido antes, durante e depois do dano ambiental. Após o dano ambiental, as pessoas não-brancas são as últimas a serem reparadas pelos danos sofridos. (A cidade de) Mariana é um exemplo.
ClimaInfo: O que seria essa jurisprudência de racismo ambiental?
Rita: Precisa tipificar como crime um impacto desproporcional de uma atividade econômica a povos de cor e ser considerado como crime de racismo ambiental. Tipificar como crime para que essa reparação do dano tenha essa conotação. Por mais que a gente tenha a noção de que (o rompimento das barragens em) Brumadinho e Mariana tiveram a maior parte da população não-branca impactada e saiba que é racismo ambiental, não é criminalizado como racismo ambiental. Não é uma questão de criminalizar tudo, mas a gente precisa falar sobre o que, em tese, não tem reparo legal. Porque não existe legalmente. Nos EUA, desde 1994, existe uma jurisprudência sobre racismo ambiental. Aqui no Brasil estamos ainda tateando.
ClimaInfo: Na sua visão, o que deve ser feito para haver um combate real ao racismo ambiental?
Rita: As pessoas sentem isso na pele. A gente precisa tomar conhecimento dele. É importante falar sobre (o racismo ambiental). O segundo ponto é cobrar das instâncias públicas projetos de reparação de dano ambiental com base nessa perspectiva de racismo ambiental e que eles sejam responsabilizados. Pois, no momento em que o estado dá licença para (a instalação de) um empreendimento tóxico e nocivo às comunidades, ele também é corresponsável, junto com a empresa que pode cometer crime ambiental. Precisamos avançar em estudos que apontem essas estratégias para que se possa compreender, organizar e evitar. Ter observatórios olhando esses territórios, fortalecer os movimentos dos atingidos e fazer um processo de internacionalização da luta. Isso acontece aqui no Brasil, em Guiné Bissau, em Moçambique, na Índia, na Austrália. Fazer esse processo de aquilombamento.
'(*) Tatiane Matheus é jornalista e pesquisadora em Justiça, Equidade, Diversidade e Inclusão no Instituto ClimaInfo.'