Favelas Chapéu-Mangueira e Babilônia: mudanças entre as edições
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<p style="text-align: justify;">FLEURY, Sonia; POLYCARPO, Clara; KABAD, Juliana; FERNANDES, Felipe. Políticas, ''pacificação'' e acessos entre bairro e favela na cidade: o caso do Chapéu-Mangueira e Babilônia. ''Relatório da Pesquisa PEEP-EBAPE/FGV'', Fundação Getúlio Vargas, 2015.</p> <p style="text-align: justify;">POLYCARPO, Clara. "Afinal, quem são os inimigos urbanos?" Uma análise das representações sociais das camadas médias urbanas da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro e as atuais políticas públicas de segurança. ''Monografia de Conclusão de Curso em Sociologia'', Universidade Federal Fluminense, 2016.</p> | <p style="text-align: justify;">FLEURY, Sonia; POLYCARPO, Clara; KABAD, Juliana; FERNANDES, Felipe. Políticas, ''pacificação'' e acessos entre bairro e favela na cidade: o caso do Chapéu-Mangueira e Babilônia. ''Relatório da Pesquisa PEEP-EBAPE/FGV'', Fundação Getúlio Vargas, 2015.</p> <p style="text-align: justify;">POLYCARPO, Clara. "Afinal, quem são os inimigos urbanos?" Uma análise das representações sociais das camadas médias urbanas da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro e as atuais políticas públicas de segurança. ''Monografia de Conclusão de Curso em Sociologia'', Universidade Federal Fluminense, 2016.</p> | ||
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Edição das 14h24min de 18 de agosto de 2023
Autoria: Clara Polycarpo.
As favelas Chapéu-Mangueira e Babilônia localizam-se na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro e foram, nos últimos anos, favelas estratégicas para diversas intervenções públicas.
À sua volta estão os bairros do Leme e de Botafogo, com vista para o Atlântico, por um lado, e o Morro da Urca, por outro. Contabilizadas a partir do último Censo de 2010, as duas favelas, em conjunto, possuem área de 1,1797 km², densidade demográfica de 3379,62 hab/km² e população em torno de 3.987 habitantes, com um total de domicílios de 1.178.
O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) da Unidade de Desenvolvimento Humano (UDH) em questão é 0,684, em 2010. Esse valor situa a UDH na faixa de Desenvolvimento Humano Médio (IDHM entre 0,600 e 0,699). A dimensão que mais contribui para o valor do IDHM da UDH é Longevidade, com índice de 0,809, seguida de Renda, com índice de 0,688, e de Educação, com índice de 0,574. A área está a menos de 200 metros da praia e também está próxima do monumento natural do Pão de Açúcar. A comunidade Chapéu-Mangueira está localizada na encosta do Morro da Babilônia, pertencente a uma Área de Proteção Ambiental (APA dos Morros da Babilônia e São João).
Em junho de 2009, as favelas Chapéu-Mangueira e Babilônia receberam a quarta Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) do Estado do Rio de Janeiro enquanto parte do projeto de pacificação implementado na agenda dos megaeventos na cidade.
Dados socioeconômicos
Índice de Desenvolvimento Humano Municipal e seus componentes - Chapéu Mangueira / Babilônia - RJ | ||
IDHM e componentes |
2000 |
2010 |
IDHM Educação |
0,411 |
0,574 |
% de 18 anos ou mais com ensino fundamental completo |
37,42 |
52,13 |
% de 5 a 6 anos frequentando a escola |
75,17 |
97,66 |
% de 11 a 13 anos frequentando os anos finais do ensino fundamental |
54,63 |
77,74 |
% de 15 a 17 anos com ensino fundamental completo |
29,35 |
40,48 |
% de 18 a 20 anos com ensino médio completo |
13,27 |
25,02 |
IDHM Longevidade |
0,762 |
0,809 |
Esperança de vida ao nascer (em anos) |
70,71 |
73,51 |
IDHM Renda |
0,659 |
0,688 |
Renda per capita (em R$) |
482,36 |
580,41 |
Com base no levantamento comparativo de 2000-2010 com o principal bairro do seu entorno, o bairro do Leme, é possível observar que houve um crescimento populacional numa taxa média anual de 0,10% da população do bairro do Leme, enquanto, de forma a levar em consideração, a população das favelas Chapéu-Mangueira e Babilônia cresceu numa taxa média de 0,53% na década. O nível de distribuição de renda e a taxa de desigualdade também se fazem importantes como análise: enquanto que no Leme teve um aumento significativo de renda per capita de R$ 2.698,34, a população das favelas teve um aumento per capita de apenas R$ 98,05, recebendo, em 2010, em torno de R$ 580, 41 (em comparação aos R$ 6.522,52 dos moradores do Leme) – considerando também que esta última realidade passou por um crescimento populacional mais intenso. Ou seja, mesmo com políticas como o Bolsa Família e aberturas de facilidade do crédito, em vigor a partir do governo em atuação na década aqui analisada, o nível de renda e de acumulação de capital econômico foi apenas considerável para as camadas da cidade que já estavam assim incluídas no que se considera como “classe média” – tais categorias serão melhor analisadas no próximo capítulo. Um outro dado interessante para esta comparação é a taxa de vulnerabilidade social, na variável da pobreza: no Chapéu-Mangueira/Babilônia, mesmo que em decréscimo na última década, 21,48% estão vulneráveis à pobreza; no Leme, apenas 0,58%.
De alguma forma – mesmo que não generalizante –, há nesta base de observação estatística uma tendência a considerar uma distância social, mesmo que em proximidade espacial, da relação bairro-favela. O território/espaço, porém – e sua população territorializada –, é feito de redes, de modos de circulação e acessibilidade, transterritorialidades.
Isto posto, se uma favela invade um bairro de classe média alta, como o bairro do Leme, na Zona Sul carioca, duas situações se tornam possíveis: a) traçar-se-á um perímetro que englobe ambas as áreas, delimitando-se assim uma única área; b) traçar-se-á duas áreas, uma dentro da outra, ambas tendentes à segregação (VILLAÇA, 2001:150). E, neste caso, a relação do espaço intra-urbano entre bairro e favela é um aspecto importante da realidade carioca.
Com a combinação do processo de urbanização da cidade, também se faz presente, enquanto demanda, a inserção e integração dessas populações aos usos da cidade e a seus bens e serviços públicos, como moradia, transporte, saúde, saneamento etc, trazendo novas disputas interclassistas e inter-étnicas. De acordo com os projetos e planejamentos dessa cidade, os interesses e agenda de políticas destes territórios segregados se tornam cada vez mais conturbados - um exemplo disso são as diversas interveções públicas nas áreas de urbanização, habitação e segurança que passaram as favelas de Chapéu-Mangueira e Babilônia no período da agenda de realização dos megaeventos na cidade do Rio de Janeiro.
As favelas Chapéu-Mangueira e Babilônia, além de favelas localizadas na Zona Sul da cidade, no entorno do bairro do Leme, em pontos de orla e apropriação diferenciada do espaço urbano, também possuem importante relação ecológica, visto que seu território – principalmente o território da Babilônia, propriedade de militares do Exército durante décadas – está na extensão do Morro da Babilônia, importante área de preservação ambiental (APA) da cidade do Rio de Janeiro. Toda a história de sua ocupação, como já bem documentada, passou pela disputa deste território durante a ditadura e que, até hoje, vem resistindo a processos de apropriação. A favela do Chapéu-Mangueira, por outro lado, mesmo também marcada pela presença do Exército a partir da fronteira do Forte Duque de Caxias, representa uma favela moderna, de ocupação mais recente por trabalhadores urbanos, de resistência política frente à ditadura e às constantes ameaças de remoções.
A questão urbana – e fundiária – nas favelas do Chapéu-Mangueira e Babilônia se pauta, em seu campo e contexto, em ao menos três pontos: 1) a proximidade e dominação do Exército, através da localização do Forte Duque de Caxias, no Leme, que, desde o início do século, é responsável por contenções territoriais, privilegiando um discurso contra a expansão por questões de “segurança” do Forte – com isso, inclusive, contribuíram para a implementação da UPP, em sua nova intervenção urbanística; 2) a presença da Área de Proteção Ambiental (APA), no alto do Morro da Babilônia, responsável por “separar” os territórios, mas que, por esse caso, passou a ser um elemento importante da luta pela proteção vinculada aos moradores da comunidade , enquanto que, por outro lado, em alinhamento com o próprio Exército, sustenta um discurso de preservação; 3) as remoções realizadas no contexto da política pública de habitação e urbanização, Morar Carioca, a partir de 2010, como veremos mais especificamente adiante, dentro do que é denunciado por muitos, incluindo moradores e gestores das próprias comunidades, como processo de “gentrificação” da favela.
Portanto, a mudança no espaço urbano de ambas as comunidades, frente às diversas intervenções do poder público em atendimento e serviços, inclusive, encontra uma disputa por diferentes interesses, visto a atuação de diversos agentes em associação com lideranças locais em ambas as comunidades. Muitos programas e projetos em implementação nas últimas décadas, por exemplo, tiveram proeminência na diversidade histórica e política da Babilônia, visto seu reconhecido alinhamento com o governo e partidos e participação particular de atores chave, em contraposição ao Chapéu-Mangueira, historicamente reconhecido como oposição.
Mito de origem e formação social da favela
A favela da Babilônia é considerada a mais antiga, ainda possuindo traços rurais, e é marcada por uma população oriunda especialmente do Norte e Nordeste do país, que tem uma condição socioeconômica mais pobre e que está associada a uma memória de afinidade política com o Exército e o período da Ditadura Militar brasileira. Já Chapéu-Mangueira é representada coletivamente como o extremo oposto: representa uma favela moderna, de ocupação mais recente por trabalhadores urbanos, de resistência política frente à ditadura e às constantes ameaças de remoções, construção de associação de moradores ligados a partidos políticos comunistas e construção de bens públicos sobreviventes até os dias atuais.
Entre fatos, documentos e memórias, há uma disputa de versões discursivas sobre o surgimento das favelas da Babilônia e do Chapéu-Mangueira, situadas no Morro da Babilônia, bairro do Leme. Fontes bibliográficas indicam que as primeiras moradias no Morro da Babilônia surgiram ainda no período colonial, em 1776, com a chegada dos militares e a instalação do Forte Duque de Caxias, mais conhecido como Forte do Leme, antigo Forte do Vigia. Até final do século XIX, o Leme abrigava apenas algumas instalações militares que visavam a proteção da costa brasileira, acessados pela Ladeira do Leme, que foi durante muito tempo uma das únicas ligações diretas entre Botafogo e Copacabana .
De acordo com os moradores mais antigos de ambas as comunidades, os primeiros habitantes ocuparam o morro a partir da segunda metade do século XIX, na região onde é atualmente a área da Babilônia, em sua parte mais alta. Essa versão coincide com registros documentais, que indicam concessões de títulos a militares, tal como o decreto de 1934: [...] aexistência de documentos que comprovam a concessão, a título precário, em 1872 e 1889, a ex-praças do exército, de tratos de terras, na zona em questão, demostra que, sempre que se tornou oportuno, fez o Ministério da Guerra valer os seus direitos (Decreto Nº 24.515 de 30 de Junho de 1934) .
Até o início do século XX, a área de Copacabana e do Leme era conhecida como um recanto de pescadores. Copacabana se beneficiou dos investimentos realizados durante a Reforma Passos, que transformou o centro da cidade entre 1904 e 1908. Os novos bairros se consolidaram, ajudados por investimentos da Prefeitura dentro da política de “embelezamento” e melhorias das áreas nobres. O executivo municipal chegou a revogar a legislação que permitia a construção das casas rústicas, que inicialmente ocupavam a área, para garantir um alto padrão de moradias e evitar o acesso de classes de renda inferior ao bairro.
A abertura da Avenida Beira Mar facilitou a ligação com o centro e, em 1906, as aberturas do Túnel do Leme (atual Túnel Novo), pela Companhia Jardim Botânico , e da Avenida Atlântica, completaram a integração – espacial – do bairro com a cidade. Em 1907 a imprensa carioca denunciava a existência de diversas habitações irregulares no Morro da Babilônia. A ocupação vizinha, do Chapéu-Mangueira, estaria ligada a esta nova demanda de trabalho, tendo, portanto, uma origem mais recente . Desde o início, desenvolveu-se na parte mais baixa do morro, voltada aos fundos dos lotes da Rua Gustavo Sampaio, por estar mais ligada a estas novas famílias de trabalhadores do que ao exército.
Com a abertura dos túneis que transformaram o acesso aos novos bairros, a consequente ligação por bondes e o crescimento de construções, a presença de moradias provisórias destes trabalhadores foi estimulada, enquanto durassem as obras. No entanto, no século XX, com a evolução do bairro, tais instalações se tornaram permanentes, entre outros motivos, pela necessidade de serviços domésticos nas casas das famílias abastadas que foram pouco a pouco substituindo o trabalho nas obras.
Há relatos históricos de que apenas na década de 1910 a favelização dos morros ganhou força, e em 1907, há notícias na imprensa carioca da existência de moradias no morro da Babilônia. O Censo populacional de 1920 constata a existência de seis favelas no Rio de Janeiro. Contabilizava-se à época, 839 domicílios e seis casas de negócios no Morro da Providência, 190 casebres no Morro do Salgueiro, seis no Morro da Arrelia, 16 no Morro do Cantagalo, 59 no Morro da Babilônia e 63 no Morro de São João (STORINO, 2000). Ainda na década de 1920, a expansão das favelas tornou-se um fenômeno incontrolável. Mesmo sem uma sistematização confiável de dados, é possível estimar, de acordo com Goulart (1957), que na Babilônia houve um crescimento de 59 casas em 1920 para 73 em 1933.
Até meados do século XX a ocupação avançou basicamente através de três acessos, que se tornaram condutores de seu desenvolvimento. O primeiro pela Ladeira do Leme e o acesso ao posto dos telégrafos. O segundo, através do qual a favela Babilônia se expandiu pela encosta oeste, voltada para a Avenida Princesa Isabel, o acesso era feito a partir de uma escadaria de serviço, que existiu até a década de 1940 na entrada do Túnel Novo. E o terceiro se formou a partir de caminhos provenientes da área do Forte, que possuíam ramificações em direção às instalações militares na Praia Vermelha e a pequenos núcleos de ocupação no topo da Pedra do Urubu e no caminho da Pescaria. A ocupação, portanto, se organizava a partir da sua localidade mais alta, se estendendo pelos caminhos oriundos dos extremos opostos do morro. Foi apenas em meados do século XX que a ocupação se deslocou em direção a Ladeira Ary Barroso (MARQUARDT, 2003), que atualmente consiste no principal acesso utilizado pelos moradores, mas não o único.
É interessante qualificar a situação particular de “integração” espacial do bairro do Leme com as favelas Chapéu-Mangueira e Babilônia. Os acessos, abertos no decorrer do século XIX, principalmente, e a localização específica do bairro do Leme como sendo a última “ponta” da baía, graças ao Morro da Babilônia ao fundo, fazem com que o bairro, e consequentemente as favelas, não se caracterizem como “pontos de passagem” e sim “pontos de chegada". Tais acessos – que se resumem à Ladeira Ary Barroso, a uma escadaria, conhecida como Beco do Zé, construída entre prédios da Rua Gustavo Sampaio, na altura entre as Ruas Aurelino Leal e Martim Afonso, e a uma pequena estrada, em meio à mata, com acesso através dos fundos do Shopping Rio Sul, em Botafogo, na Rua Lauro Müller – convivem diretamente com o núcleo dos bairros de camadas médias e altas da Zona Sul, principalmente depois de sua expansão.
Junto ao Morro da Babilônia, ainda no século XIX, ficava a Chácara de Torquato Couto, depois alugada a Chaves Faria. Também residiu nela a família de Wilhelm Marx, pai do paisagista Roberto Burle Marx, que adquiriu uma casa no sopé do Morro. Naquela época, o bairro era um recanto bucólico entre o mar e a encosta do morro, ainda totalmente coberto pela mata de vegetação nativa. Embaixo se ligava à antiga Rua Araújo Gondim, atual General Ribeiro da Costa, onde os padres dominicanos fundaram a Igreja Nossa Senhora do Rosário, construída entre 1927 e 1931, sendo inaugurada em 1939.
Na década de 1930, apesar do pequeno número de casebres, a Babilônia já era considerada uma favela consolidada, que a imprensa da época dizia estar entre as maiores da cidade. A partir de 1934, a ocupação das encostas do Morro da Babilônia aumentou consideravelmente, dando origem às Comunidades da Babilônia e do Chapéu-Mangueira. A ocupação experimentou um grande desenvolvimento a partir de meados da década de 1930 , atingindo 200 moradias em 1948. Com o novo afluxo e respaldada pela visibilidade agora encoberta pelos edifícios de apartamentos reduzidos, conjugados e quitinetes voltados a uma classe menos abastada, que surgiam na Avenida Princesa Isabel, a encosta oeste voltou a ser ocupada .
Observou-se que dois fluxos migratórios marcaram a ocupação nas comunidades: um entre as décadas de 1930 e 1950, que se deslocou mais para o Chapéu-Mangueira e a segunda entre 1980 e 1990, que se espalhou entre ambas, em um período em que direitos de habitação haviam sido conquistados. Tais fluxos advieram de regiões distintas do país, e ganharam força na medida em que as famílias se consolidaram nas comunidades. Na Babilônia há uma predominância de família que possuem suas origens na Paraíba, Ceará, Pernambuco, Pará, Maranhão e Bahia, entre outros estados do nordeste e norte. Já no Chapéu, existe uma predominância de mineiros, capixabas e de pessoas advindas de municípios do Estado do Rio .
Na memória da população existe um discurso predominante sobre a origem do nome “Babilônia”, que é a de que, como a ocupação se deu na parte mais alta do morro e que tem uma vista muito bonita para a orla da praia e o morro do Pão de Açúcar, o local foi apelidado primeiramente pelos primeiros moradores militares como uma alusão aos Jardins Suspensos da Babilônia. Não foram encontradas outras histórias no campo, apenas indicações de que essa é a versão mais contada. Com relação ao nome “Chapéu-Mangueira”, ocorre o mesmo, em que se conta que a origem se deu pois no local seria construída uma fábrica de chapéus, do tipo mangueira, e, portanto, lá havia uma placa “Breve neste local, Fábrica de Chapéus Mangueira” . A fábrica não foi construída e no local a comunidade se fundou. Essa memória é reafirmada também pelo poder público atualmente quando tratam da história de ambas as comunidades, como se verifica, por exemplo, na página virtual da Unidade de Polícia Pacificadora .
Com a intensificação do controle realizado pelo exército, em meados de 1950 a população da Babilônia parou de crescer, exatamente em um período de grande expansão nas outras favelas da cidade, e, a partir da década de 1970, após a drástica retirada ocorrida em 1968 que atingiu a parte oeste e a superior do morro , a ocupação se consolida nas áreas intermediárias da encosta, parcialmente encoberta pelos prédios da Avenida Princesa Isabel e da Rua Gustavo Sampaio. Os caminhos pelo alto são abandonados, permanecendo como único acesso ativo a escadaria no topo da Ladeira Ary Barroso.
Em meados da década de 1980, a ocupação se distancia do controle do Exército, transformando a relação da comunidade com o espaço construído. Se o novo período significava maior liberdade, esta transformação ocorreu em um momento que a organização política do morro já estava bastante desenvolvida e consolidada. Esta constatação levou a uma valorização do espaço existente e ao desenvolvimento de um movimento de resistência ao processo de transformação e crescimento que ambas as favelas nitidamente vivenciavam.
Além de movimentos associativos, encontramos na história e memória das comunidades a presença de movimentos culturais, esportivos e pedagógicos. No morro Chapéu Mangueira, a presença da artista plástica Celeida Tostes foi decisiva na vida de muitos moradores, inclusive, da comunidade como um todo, ao reunir um grupo de mulheres em prol da favela. O encontro entre duas mulheres: a artista plástica Celeida Tostes, uma das mais importantes ceramistas brasileiras, falecida em 1995, e Maria Augusta do Nascimento Silva, Dona Augustinha, nordestina, migrante, moradora da comunidade desde 1955, uma importante liderança comunitária.
Também existiu o jornal O Chapéu, criado pelo Grupo Jovem, cujo objetivo era relatar periodicamente a vida política, social e cultural do local. E, ainda, existiam os times de futebol: o Flamenguinho, o Unidos do Leme, Cruzada, Triunfo, Nacional, Eco, Embalo (o único existente até os dias atuais) e seu rival Cacto. Em 1978, Bola constata a falta de espaços de lazer nas comunidades e funda com um amigo, o Aventureiros do Leme, uma agremiação para oferecer opções de lazer dentro da comunidade.
O samba e o futebol são retratados como elementos fundamentais para a união dos moradores, especialmente dos jovens, do Chapéu-Mangueira e Babilônia e com o entorno. Através das rodas de samba, dos blocos de carnaval e das peladas de sábado as rivalidades políticas eram colocadas em segundo plano. A praia é eventualmente colocada como um fator que aproximou favela e bairro, desde sempre, por parte dos moradores mais antigos aos mais jovens. Em ambas as comunidades as associações, tanto da Babilônia quanto do Chapéu-Mangueira são retratadas como apoiadoras das iniciativas e projetos culturais e de lazer ao longo do tempo.
A favela da Babilônia já serviu de cenário em 1959 para o longa franco-brasileiro Orpheu Negro, ganhador do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1960. De lá para cá o interesse pela região só cresceu, e as visitas ao morro foram aumentando. No Réveillon de 2010, muitos turistas assistiram à tradicional queima de fogos de artifício carioca do alto da favela. A Associação de Moradores também organizou trilhas ecológicas e feiras de arte, com almoços de comidas típicas. Além disso, vários outros projetos sociais estão em andamento, com destaque para o reflorestamento feito pela Copbabilônia, que recupera áreas de Mata Atlântica. Em 2015, a favela Babilônia foi referenciada em uma telenovela da Rede Globo de Televisão sob o homônimo “Babilônia”, o que reflete em um crescimento do turismo e empreendimentos na comunidade e seu entorno.
Atualmente, tem-se dados de que, em 2015, houve um “boom turístico” no Morro da Babilônia, com o crescimento de 20 hostels, inclusive construídos por turistas estrangeiros já alocados nas comunidades , e recentemente, incluída em sua atividade turística, foi inaugurada a primeira galeria de arte, a 1500 Babilônia, empreendimento originário de Nova Iorque . A valorização turística e imobiliária , e sua relação com a implementação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), em 2009, é também um tema que foi desenvolvido por diversas pesquisas, como a pesquisa “Reordenamento das Relações entre Estado, Mercado e Comunidade”, coordenada pela Prof.ª Sonia Fleury, no PEEP-EBAPE/FGV, entre 2012-2015.
Sociabilidades, associativismo e luta por direitos
Além disso, marcações temporais importantes da relação entre o Estado e as favelas redefinem os papéis das Associações ao longo do tempo, apesar das particularidades de cada comunidade. Antes da década de 1980, as favelas que possuíam energia, luz ou outro serviço básico, os garantiam por meios alheios ao poder público. A partir de então, serviços básicos foram consentidos pelo Estado, mas as Associações passaram a ser responsáveis pela distribuição dos mesmos. Após os anos de 1990 que se iniciam as intervenções urbanísticas em favelas de acordo com o planejamento da cidade em sua consideração e, no período mais recente, o Estado assume a administração e o controle da distribuição dos serviços básicos nesses territórios.
No início da década de 1960, é fundada a Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG) hoje Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ), por estímulo do Governo Militar. Na Babilônia, a Associação de Moradores foi criada por volta dos anos 1960 – sem exatidão precisa sobre sua data –, por Sebastião dos Santos, conhecido como uma personalidade emblemática. Há relatos de que essa entidade foi criada para que as lideranças da forte, expoente e vizinha Associação do Chapéu-Mangueira, fundada no início da mesma década, não entrassem politicamente na Babilônia.
Nascido na comunidade, Sebastião era tido como braço direito do Exército para a defesa dos interesses militares, inclusive para o cumprimento de remoções e perseguição de moradores que desobedeciam às ordens. Existem histórias que o remetem como “capitão do mato”, em referência a negros que serviam aos senhores de escravos no período colonial brasileiro. Conforme as entrevistas realizadas, a Associação foi repassada entre famílias e gerações afins, sem disputas e rivalidades. A única eleição em que houve uma oposição evidente foi realizada no último ano de 2012, através de uma chapa montada pelos jovens que pretendiam retirar a diretoria que está há 20 anos à frente da associação, do grupo da Tia Percília, contudo, a tentativa se frustrou.
Sebastião esteve à frente da Associação por 24 anos, até ser assassinado em 1984 por um traficante que pretendia dominar o morro, já que ele era considerado o principal empecilho, devido sua relação com o Exército. Conforme alguns relatos colhidos durante pesquisa[Notas 2], até esse período, existiam o que os moradores chamam de “malandragem”, que era o traficante que usava e vendia maconha, que ajudava a comunidade, considerado “cria” (nascido e criado na favela) e que não amedrontava os moradores. Contudo, a morte de Sebastião é considerada um fator que facilitou a instalação do Comando Vermelho na Babilônia, que trazia traficantes de outras regiões e uma lógica de comercialização de drogas e de armas, diferente dos hábitos dos antigos malandros. Do ponto de vista daqueles que vivenciaram esse período de transição, o fato de muitos “meninos” entrarem para o Comando, como são até hoje chamados os traficantes que são “crias” da favela, facilitava o relacionamento e o vínculo dos chefes com os moradores. Observa-se, contudo, que essa é uma questão de pouco acesso na Babilônia, mesmo porque durante o trabalho de campo a comunidade estava vivenciando um período de retorno de conflitos armados entre traficantes e policiais. Contudo, sabe-se que o Comando Vermelho se instalou primeiro na Babilônia, e posteriormente, a facção Amigos dos Amigos entrou no Chapéu-Mangueira, com a morte de outra liderança – Lafayete José Medina. Apesar das divergências políticas e associativas entre ambas as favelas, um discurso comum observa-se nas lideranças e personalidades políticas e nos moradores como um todo: política e tráfico sempre foram atividades separadas nas comunidades, em grande parte atribuída à influência da personalidade de Lúcio Bispo, sobre o qual será tratado adiante.
Desde a década de 1990 foi a Tia Percília, como sempre fora conhecida por todos na comunidade, que esteve à frente da Associação, com variações na diretoria, entre ela, seu filho e alguns parentes e aliados políticos. Ela faleceu em abril de 2013. Todos, mesmo quem se opusera politicamente a ela, possuem extremo respeito à sua importância, especialmente no que se refere à educação. Percília, que desde nova se associou a Sebastião, foi a primeira educadora na Babilônia e quem alfabetizou basicamente todas as crianças. Além disso, viabilizava arrecadações de roupas e alimentos dos moradores do entorno para a favela, vínculo filantrópico com as igrejas do Leme e de Copacabana e apesar das rivalidades procurava se aproximar da Associação do Chapéu-Mangueira.
Desde a entrada de Percília Silva, a Associação da Babilônia passou a realizar parcerias com entidades externas, especialmente ligadas à Igreja e ao terceiro setor, nacionais e internacionais, com diversas mediações. A Associação dos Moradores da Lauro Muller representa a parceria de longa data, aliados pela causa ambiental na proteção do cume do morro da Babilônia e da área de proteção ambiental, decretada legalmente apenas na década de 1990.
Já no Chapéu-Mangueira, a construção da vida associativa se deu de modo particular do da Babilônia. Antes da fundação da Associação de Amigos do Chapéu Mangueira, em 1960, a comunidade era praticamente administrada pelo Exército. Segundo os antigos moradores, qualquer problema que acontecia na área era resolvido através de uma escolta enviada pelo Comando do Posto de Observação, no alto do Morro da Babilônia. Algumas construções de barracos eram permitidas, como também eram destruídas, de acordo com a sua conveniência. A Lei Leão XIII (o que dizia??) era rigorosamente exigida pelo Tenente, autoridade maior do PO.
A Associação dos Amigos do Chapéu Mangueira era composta por uma diretoria de 12 membros, todos eleitos democraticamente, sendo uma das primeiras entidades a se associar à Associação de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG). Os cargos eram divididos em Administração, Controle de Luz, Posto Médico, Escola Maternal e Jardim, Departamento Feminino, Setor de Obras, Relações Públicas e Divulgação, Departamento Jurídico, Urbanização, Contato Interior e Exterior, Água e Esgoto e – posteriormente –Galpão de Arte.
No início da década de 1960, também foi fundada a Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG), hoje Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ). Por estímulo do Governo Militar, para manter os moradores sob controle, muitas outras associações de favelas foram criadas. Durante a primeira eleição, em 1966, havia uma D.P.O do Exército supervisionando as movimentações no morro, e quando eram feitos os pleitos, o tenente junto com a assistente social e o administrador regional apuravam os resultados, marcando a posse da nova diretoria. Para consolidar as organizações, eles entravam em contato com as outras comunidades, através da FAFEG, no intuito de evitar qualquer tipo de remoção dando reconhecimento às áreas. O apoio da Igreja Católica e de advogados, como Sobral Pinto e Bento Pires Rubião, foram muito importantes frente às autoridades.
No período entre a fundação e regulamentação da Associação, foi instalada a canalização de água com auxílio da Mercedes Bens e Cruzada São Sebastião, em 1962, no governo de Lacerda. Até então, buscavam água nas minas, inclusive no bicão que ficava ao fundo do edifício Montese.
Alguns atores externos à comunidade atuaram no apoio à fundação da Associação do Chapéu-Mangueira. Dentre eles, a Associação de Amigos do Leme e a Igreja, que, através da Ação Social Dominicana, assistia à Comunidade. Constituída de Padres da ala progressiva da Igreja Católica, a Ação Social encarregou a francesa Renèe de Lòrme de ajudar na organização do Chapéu-Mangueira. Outros nomes da Igreja, porém, foram juntamente com Dona Renèe, decisivos na organização da comunidade. Entre eles figuram Dom Helder Barros Câmara, Frei João Cherry e Frei Marcos.
Nos anos de 1950, a missionária Renée de Lorne, que era enfermeira, passou a ser voluntária junto à população do Chapéu-Mangueira e liderou grandes mutirões de urbanização no morro, logo, formaram o comitê do Chapéu Mangueira, em 1957, que viabilizou as reivindicações dos moradores, como a chegada da água encanada, luz e esgoto. Além disso, comandou a construção do primeiro Posto Médico e ajudou a organizar os moradores e a fundar, no dia 6 de junho de 1960, a Associação dos Amigos do Chapéu-Mangueira.
Segundo o morador e ex-presidente da Associação de Moradores, Gibeon, o posto médico foi o balizador das lutas, pois era o referencial daquilo que era necessário à população. De um ponto de vista higienista, era o posto médico que determinava o que era prioritário para a Associação, independente da principal luta dos moradores, a luta por moradia no contexto das remoções lacerdistas.
A representação institucional beneficiou a comunidade com melhorias urbanísticas, instalações elétricas e hidráulicas. No entanto, apesar da atuação da Associação de Moradores, foram os dominicanos, com a prática dos mutirões e a organização comunitária, os responsáveis pelas melhorias na favela, segundo relatos. Dona Marcela, junto com Renée, se destacou no processo urbanístico e principalmente social da comunidade. Contribuiu para a construção da creche que hoje carrega seu nome em homenagem. Foi professora da escolinha que, atualmente, é do município e ocupa o prédio da Associação de Moradores. Antes das grandes construções, já lecionava em pequenos barracos e alfabetizou muitas pessoas na favela. Foi fundamental sua participação na criação do posto de saúde. Ela e a dona Renée “não deixavam ninguém dentro de casa, botavam todo mundo para trabalhar”. As duas cuidavam e levavam remédios às pessoas, fizeram diversos partos, além de muitas outras contribuições no convívio do morro .
Sobre a presença da Igreja, o dominicano frei Marcos de Mendes Farias até hoje é lembrado pelo seu trabalho: “Ele ajudava católicos, crentes, evangélicos, ricos, pobres. Lembro que uma vez ele deixou uma embaixatriz no fim da fila junto com os moradores da favela. Ele não fazia distinção", conta Lia Darcy de Oliveira, braço direito do frei de 1972 até sua morte, em 2013. “Ele criou um fundo para urbanização das duas favelas e ajudou a construir as primeiras casas de alvenaria nos anos 70. Tudo era feito com doações de amigos ricos”, diz Lia, coordenadora da obra social da Igreja Dominicana do Leme.
O líder comunitário Lúcio Bispo, primeiro presidente da associação de moradores do Chapéu-Mangueira, confirma a atuação do frei Marcos na urbanização da favela. “Sempre trabalhamos junto com os dominicanos. O frei foi uma figura bastante atuante na comunidade. E quando acontecia qualquer arbitrariedade no morro a gente logo entrava em contato. Ele fazia um tipo de mediação com o asfalto”, completa.”
Na década de 1940, Seu Lúcio de Paula e Bispo conheceu a Babilônia e o Chapéu-Mangueira, frequentando os forrós a convite dos seus companheiros de trabalho. Antes de morar no Chapéu-Mangueira já havia vivido uma experiência de remoção. Em 1946, construiu casas com seus amigos utilizando a madeira que tinham acesso em seu trabalho na construção civil, num lugarejo atrás do Pinel. No ano seguinte, a favela foi removida pelas Forças Armadas. Caso a pessoa desmanchasse seu próprio barracão, eles davam as condições adequadas para o desapropriado voltar ao seu terreno e, caso não o tivesse, era paga sua passagem de volta ao seu local de origem.
Seu Lúcio tinha comprado em 1947 um terreno em Vilar dos Telles, mas, naquele momento foi despejado perto de onde hoje é a refinaria de Petróleo. Construíram e sanearam o local tornando-o um anexo à favela da Alegria. Em 1949, fez um acordo com a Polícia Especial, que, em contrato, lhe permitia morar no terreno de Vilar dos Telles onde ficou até o fim do ano, quando foi morar definitivamente no Chapéu Mangueira, em 1950. Mudou-se com toda a família para a casa cujas paredes eram feitas de caixotes de bacalhau, enquanto o telhado era revestido com pedaços de latas de 20 litros. A luz era apenas com lampiões e apenas para quem os podia pagar. Houve um período em que a organização procedia informalmente até que, em 1960, resolveram fundar a Associação dos Moradores da comunidade e em 1966, Lúcio se tornou o primeiro presidente dela, legalmente eleito e registrado. Ele é lembrado com frequência em situações emblemáticas, como quando, por exemplo, o Exército iria remover uma família e então ele se colocou à frente e disse que só se passasse por cima dele. Foi levado à prisão, e então, uma multidão clamou pela sua liberdade até ser solto. Sua secretária era a Benedita da Silva, que dava assistência às mulheres. O tesoureiro era o Bola. A partir de então começou toda a organização necessária para se comunicarem com as autoridades políticas e institucionais.
Lúcio permaneceu à frente da Associação por 10 anos, mas sempre esteve na vida associativa. Muitas chapas e grupos diversos ocuparam a associação, o que marca a intensidade da vida política no Chapéu-Mangueira. Ele se declarava ligado ao Partido Comunista Brasileiro e adepto ao Brizola, mas sua chapa era formada por pessoas que viriam a ser conhecidas personalidades no Partido dos Trabalhadores. O grande rival de Lúcio, constantemente lembrado pelos moradores, era Lafayette José Medina, que era um defensor do Exército e da ditadura militar, mas que sempre foi minoria nos votos para pleitear a diretoria da associação. Com a entrada da facção Amigos dos Amigos, em meados da década de 1990, após a morte de Lafayette, Lúcio sempre defendeu a posição de separação entre política e tráfico, para que a Associação não perdesse sua função de diálogo entre os interesses da comunidade e do Estado que serviria de interesse de todos, independentemente sendo ou não traficantes. Lúcio Bispo faleceu há mais de 10 anos e até hoje é lembrado com muita reverência por todos, como memória viva de resistência e luta por direitos, especialmente pelos mais jovens. Existe inclusive a criação de um fórum que leva seu nome, o Fórum Lúcio Bispo, em sua homenagem. Sua família é considerada influente no comércio e na política local, e habita áreas privilegiadas na favela.
Benedita da Silva, que já foi deputada federal pelo Partido dos Trabalhadores, nasceu na favela da praia do Pinto, no bairro do Leblon. Ainda criança, sua família mudou-se para o morro do Chapéu-Mangueira, no Leme. Começou a trabalhar na infância, tendo sido, entre outras atividades, professora da escola comunitária no Chapéu-Mangueira. Foi eleita em 1976 presidente da Associação, onde participou também do movimento de mulheres. Foi fundadora do departamento feminino da Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ) e do Centro de Mulheres de Favelas e Periferia (CEMUF). Em 1980 participou da fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), sendo eleita vereadora por esta legenda, no Rio de Janeiro em 1982. Marcou sua campanha eleitoral com o slogan “negra, mulher e favelada”, afirmando suas origens populares e levantando a bandeira de luta contra as discriminações racial, de gênero e social. Casou-se em 1983 com Aguinaldo Bezerra dos Santos, conhecido como Bola, também líder comunitário no morro do Chapéu-Mangueira, fundador da FAFERJ e militante do PT.
Além desses movimentos associativistas, encontramos na história e memória das comunidades a presença de movimentos culturais, esportivos e pedagógicos. No morro Chapéu-Mangueira, a presença da artista plástica Celeida Tostes foi decisiva na vida de muitos moradores, inclusive, da comunidade como um todo, ao reunir um grupo de mulheres em prol da favela. O encontro entre duas mulheres: a artista plástica Celeida Tostes, uma das mais importantes ceramistas brasileiras, falecida em 1995, e Maria Augusta do Nascimento Silva, Dona Augustinha, nordestina, migrante, moradora da comunidade desde 1955, uma importante liderança comunitária, foi de grande importância para o desenvolvimento e organização culturais do Chapéu-Mangueira.
No início da década de 1960, Celeida Tostes já era uma artista consagrada e desenvolvia um trabalho reconhecido na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, inicialmente ligada à “Oficina de Artes do Fogo e Transformação de Materiais”, sob direção do artista plástico Rubens Gerchman, quando a Escola era vinculada ao Departamento de Cultura da Secretaria de Ciência e Cultura do Estado do Rio de Janeiro/FUNARJ. Dona Augustinha, por sua vez, era empregada doméstica e fazia cerâmica nos momentos de lazer reunindo-se com mulheres nordestinas e migrantes como ela, recordando técnicas aprendidas em suas famílias de origem rural. Casada com Seu Coracir, mudou-se para o Chapéu-Mangueira numa época em que as casas eram de madeira ou pau-a-pique e muito distantes uma das outras. Os caminhos não existiam, era mato e trilha, com luz de lamparina, lampião. Ao falar de sua vida, sua história “esbarra” em sua relação com Celeida: “eu só me descobri nos anos 1980. Foi aí que eu descobri o que era lazer e o que era viver. Eu descobri que eu tinha valor através da Celeida Tostes”.
No âmbito dos movimentos culturais, também existiu o jornal O Chapéu, criado pelo Grupo Jovem, cujo objetivo era relatar periodicamente a vida política, social e cultural do local. E, ainda, existiam os times de futebol: o Flamenguinho, o Unidos do Leme, Cruzada, Triunfo, Nacional, Eco, Embalo (o único existente até os dias atuais) e seu rival Cacto. Em 1978, Bola constata a falta de espaços de lazer nas comunidades e funda com Gibeon, o Aventureiros do Leme, uma agremiação para oferecer opções de lazer dentro da comunidade. Gibeon, em entrevista, recorda dos saraus e encontros musicais na Casa Amarela, que era o encontro da juventude da favela na época, para ouvir o que havia de novidade no jazz, rock, blues e soul. Ele atribui essa influência ao surgimento do funk na favela. Além desses encontros, havia um intenso encontro de rodas de samba e de organização comunitária em prol do carnaval. O Bloco Aventureiros do Leme se tornou durante décadas um importante bloco que desfilou nas ruas do Leme, mas que se encerrou por problemas financeiros.
No que aqui nos interessa, as redes associativas dos moradores de ambas as favelas se fortaleceram na luta por direitos (e na resistência) através da mobilização e avaliação de políticas públicas de habitação e urbanização, sendo estas percebidas como a linha de frente da relação entre os moradores das favelas do Chapéu-Mangueira e Babilônia e o Estado, por direitos de moradia e melhores condições sanitárias. Embora a narrativa dominante trate esses locais como territórios onde o “Estado não chega” – ou até mesmo como resultado de sua ausência –, ainda assim, suas idas e vindas e intervenções são constituídas forte e permanentemente pela mediação do Estado (DAS; POOLE, 2004; ROLNIK, 2015), principalmente por uma particularidade: a relação do território com o Exército e a variabilidade e conflito de interesses em um mesmo território, “dividido” em duas favelas e políticas distintas.
Por esse histórico de disputas até mesmo dentro do próprio território como, em um primeiro momento, a aliança com o Exército, fortalecida na favela da Babilônia, e a resistência política, com o descaso do governo em relação às demandas do Chapéu-Mangueira, os moradores das favelas do Chapéu-Mangueira e Babilônia representam um importante espaço de construção e avaliação das políticas públicas focadas em áreas de interesse da cidade, como a Zona Sul, até mesmo nos últimos anos da década de 2000, quando, para além das políticas de urbanização e habitação, o Estado implementou um novo modelo de política de segurança, tendo como eixo central as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). Este novo projeto e sua nova agenda atualizaram e transformaram a sociabilidade das favelas, trazendo novas formas de luta e resistência enquanto identidade (já representativa) e conflitos internos.
Referências
BURGOS, M. T. B.; PAIVA, A. A Escola e a Favela. 1. ed. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2009.
DAS, Veena and POOLE, Deborah (eds). Anthropology in the margins of the state. Santa Fé/Oxford: School of Americn Research Press/James Currey, 2004.
FLEURY, Sonia. Militarização do social como estratégia de integração - o caso da UPP do Santa Marta. Sociologias, Porto Alegre, ano 14, no 30, mai./ago. 2012, pp. 194-222.
ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015.
SIQUEIRA, Vera Beatriz. Espaços da Arte Brasileira - Burle Marx. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
STORINO, Gylcilene Ribeiro. Participação Cidadã na Gestão Pública: estudo de caso do programa Favela-Bairro do Município do Rio de Janeiro. Dissertação de mestrado em Administração Pública Defendida na Escola Brasileira de Administração Pública da FGV, 2000.
VALLADARES, Lícia do Prado. A invenção da favela. Rio de Janeiro: FGV, 2005.
VILLAÇA, Flávio. Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo: Editora da FAPESP, 2011.
Fontes
FLEURY, Sonia; POLYCARPO, Clara; KABAD, Juliana; FERNANDES, Felipe. Políticas, pacificação e acessos entre bairro e favela na cidade: o caso do Chapéu-Mangueira e Babilônia. Relatório da Pesquisa PEEP-EBAPE/FGV, Fundação Getúlio Vargas, 2015.
POLYCARPO, Clara. "Afinal, quem são os inimigos urbanos?" Uma análise das representações sociais das camadas médias urbanas da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro e as atuais políticas públicas de segurança. Monografia de Conclusão de Curso em Sociologia, Universidade Federal Fluminense, 2016.
- ↑ Fonte: PNUD, Ipea e FJP. Disponível em http://www.atlasbrasil.org.br/2013/pt/perfil_udh/24937.
- ↑ Dados obtidos pelo Programa de Estudos da Esfera Pública (PEEP-EBAPE/FGV), em pesquisas como “Cidadania e Discriminação como Critérios de Análise de Políticas Públicas”, financiada pelo CNPq (2011-2013) e “Reordenamento das Relações entre Estado, Mercado e Comunidade em Territórios Pacificados”, um Projeto de Pesquisa Aplicada da Fundação Getulio Vargas em desenvolvimento desde 2015, sob orientação da Prof.ª. Dr.ª Sonia Fleury.