Escutemos Marielle (artigo): mudanças entre as edições
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Edição das 16h58min de 30 de dezembro de 2023
O artigo "Escutemos Marielle" foi escrito por Marielle Franco e apresenta reflexões sobre sua atuação política e as disputas narrativas em torno de seu legado após sua execução. Destaca a importância de ouvir as falas de Marielle e reconhecer as diversas dimensões de sua luta, especialmente em relação às mulheres negras e faveladas. O texto ressalta a necessidade de perpetuar o processo de luta no qual Marielle estava inserida, buscando interpretações que contribuam para avanços políticos e sociais.
Artigo reproduzido do Blog Outras Palavras.
Introdução
Por Marielle Franco, com introdução de Daniel Guimarães
Ainda sinto um baque e uma tristeza ao pensar em Marielle, mesmo após duas semanas de sua execução. Escuto com frequência os efeitos desse assassinato nas falas das e dos pacientes que recebo na Clínica Pública de Psicanálise, mas também no consultório não-público. Marielle se fez presente para sempre e sinto saudade do futuro quando penso nela. Saudade das lembranças que temos do futuro, formulação do histórico babalaô Agenor Miranda Rocha 'sobre o desejo. Marielle seria cada vez mais, no nosso jargão esquisito de esquerda, um grande quadro. Um perigo mesmo, para as forças conservadoras e para o mercado que dirige o Estado brasileiro.
Desde então, uma série de disputas narrativas entraram de canela para controlar os destinos do grande afeto social que reverberou a partir de Marielle. A direita mais inteligente e com um projeto de sociedade lançou mão de táticas semelhantes às de junho de 2013. Esvaziar o conteúdo da luta de Marielle, ao ponto de instrumentalizá-la a favor do que Marielle era contra, a favor das forças que anteciparam os gatilhos da arma que a matou. Entre o amplo campo da esquerda uma série de vetores também entrou em ação para reivindicar a legitimidade de definir os motivos pelos quais ela teve sua vida interrompida e reputação atacada.
Pensamos então em postar na página da Clínica Pública de Psicanálise vídeos e textos com falas dela. Ela falando sobre si, sobre o que fazia, sobre o que pensava. Atribuir a ela sua própria fala, nesse momento que, por muitos motivos, tendemos a manter apenas sua imagem e falar por sobre ela, em nome dela. Uma parte significativa dessas falas vêm do artigo “A emergência da vida para superar o anestesiamento social frente à retirada de direitos: o momento pós-golpe pelo olhar de uma feminista, negra e favelada”, do livro Tem saída? Ensaios críticos sobre o Brasil, da editora Zouk, agora publicado aqui no Outras Palavras.
Assim, talvez, tenhamos ainda em Marielle uma grande aliada a elucidar sua execução, fruto da autorização para violência contra os pobres, cada vez mais acentuada. Mais: quem sabe, encontremos interpretações que podem nos fazer seguir adiante, com ela, num caminho que, se não sintetizar todas as lutas de esquerda que ela encarnava, ao menos pode contribuir para que as ponha em diálogo. Muito longe de tornar Marielle uma mártir, podemos perpetuar o processo de luta no qual ela estava inserida. Podemos elaborar politicamente e psiquicamente um luto que permanece luta. Podemos ter medo. O medo, dizia Freud, é um momento no qual já temos um objeto com o qual identificamos o perigo. O risco que corríamos estaria perto da inibição melancólica. Parece que isso não aconteceu. Muito pelo contrário.
Marielle era em seu corpo e história síntese de muitas lutas. Por isso fez acender, dentro do próprio campo amplo de esquerda, muitas disputas sobre o corpo dela mesma. Disputas sobre os direitos de herança de sua luta. Confesso não me preocupar com isso. Me parece um bom sinal. Um bom primeiro sinal, ao menos. Sinal de que, através do corpo de Marielle, muitas comunidades de pessoas podem se manifestar abertamente. Exigir não só visibilidade, mas protagonismo. Atrevo a arriscar que desse processo sairão mais organizações com pautas comuns do que divergentes. O debate sobre as partes excluídas pelo capitalismo pode fazer com que elas voltem a se reencontrar. Marielle proporciona isso. Ela é uma espiral dialética contínua e cheia de potência. Executaram um quadro do futuro. Anteciparam o futuro. Marielle produziria muita força social transformadora. Por isso seguirá produzindo força social transformadora. A mulher negra, favelada, pobre, que ocupava a rua e a instituição; que fazia discurso para multidões, em palanques, e participava de rodas pequenas de conversa; que chamava o golpe de golpe, lutando contra ele pela via do Estado, enquanto apostava nas já atuantes redes de solidariedade de mulheres na periferia, para as quais demandava atenção da esquerda… Escutemos Marielle.
Seus amores e pessoas próximas merecem todo nosso cuidado, cuidando de Marielle. Cuidando dos nossos passos nessa conjuntura desfavorável. Utilizando toda nossa estratégia, toda força a favor do mundo que Marielle desejava, para que sua gente pudesse circular sem riscos e mais, pudesse expressar seu desejo de viver. Como cantaram na Maré em um ato em sua memória e pela continuidade daquela luta “se a cidade fosse nossa, Marielle tava viva.”
Quais as formas de encurtar o caminho para que a cidade seja nossa? Quais as ciladas que podem nos afastar dela? Como seria nossa cidade? Seguimos, com Marielle. (Daniel Guimarães)
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Mulheres, negras, pobres: sujeitos para uma cidadania ativa
Por Marielle Franco[1]
O impeachment sofrido recentemente pela primeira presidente mulher brasileira foi uma ação autoritária, ainda que tenha se utilizado de todo arcabouço legal como justificativa. De um lado a presidenta, mulher, vista por parcela significativa da população como de esquerda. De outro lado um homem, branco, visto por parcela expressiva como de direita e socialmente orgânico às classes dominantes. A conjuntura brasileira, determinada pelo cenário do golpe, marca-se, para além da correlação de forças políticas, favorável às classes dominantes e seus segmentos mais conservadores. Principalmente por alterações sociais significativas na esfera do poder do Estado e no imaginário. Trata-se de um período histórico no qual se ampliam várias desigualdades, principalmente as determinadas pelas retiradas de direitos e as que são produto da ampliação da discriminação e da criminalização de jovens pobres e das mulheres, sobretudo as negras e pobres.
Este é um momento que asfixia o processo de democratização, aberto no fim da ditadura militar, e abre um novo cenário de crise, colocando desafios profundos para as esquerdas.
Ao ser priorizado neste artigo analisar as condições das mulheres no contexto do golpe, é necessário que fiquem registrados os seguintes elementos: a) as mulheres possuem diferenças em toda a cidade, com estéticas múltiplas, visões de mundo e ações sociais, políticas e humanas em geral e condições territoriais profundamente distintas; b) há desigualdades que marcam as mulheres faveladas e negras em relação às mulheres que estão em outros grupos sociais, como a classe média e as que não vivem do seu próprio trabalho. Nesse sentido, para além de analisar as condições das mulheres, há nessa abordagem uma centralidade de identificar as condições das que sofrem, para além do machismo institucional da formação social brasileira, os impactos do racismo estrutural que segue hegemônico no Brasil; c) finalmente, chama-se atenção para as diferenças das mulheres que vivem do trabalho em condições de mais pobreza e profunda precarização dos contratos. Predominam, nas favelas e na periferia, mulheres com essas características que, no entanto, são potência de criatividade, inventividade e superações das suas condições, nas formas de vida e nas organizações sociais em seus territórios e alcançam, em seus múltiplos fazeres, centralidade na cidade.
Há vários aspectos que são consequências das especificidades das mulheres faveladas e que cabem destacar para se ter noção das diferentes escalas de desigualdades sociais, econômicas e culturais: 1) local de moradia com poucos equipamentos do Estado e sem realidade de transportes em tempo e condições com menos investimentos, independente se afastados das localidades que agrupam o maior número de equipamentos de estudo, artes e trabalho, o que gera impacto nos tempos utilizados para estudo, trabalho, lazer e vida familiar; 2) a diferença de condições na classe, pois, ainda que sejam todas trabalhadoras, vivem efeitos e consequências diferenciadas impulsionadas por precários direitos trabalhistas e contratos de trabalho; 3) a exposição a situações de violência letal e de discriminação, com grande impacto de estigmatizações; 4) a potência criativa e inventiva, motivada pela necessidade de superar as condições objetivas e para conquistar espaços distintos de convivência na cidade que se materializam no campo das artes, da educação, em atuações políticas e em formas de trabalhos diversos para suas subsistências.
Construir uma análise, com base nessa complexa condição objetiva, com vários elementos subjetivos que impactam a disputa ideológica, as narrativas e a institucionalização do poder dos discursos dominantes, trata-se de um exercício fundamental para entender e atuar no contemporâneo.
Após essa breve clivagem da categoria mulher favelada, é preciso evidenciar como essas mulheres vivenciam, sentem e atuam em seus cotidianos frente aos efeitos do golpe. A emergência da vida sempre foi extremamente presente para essas mulheres. Elas sempre viveram as consequências da imposição do Estado por menos direitos e o predomínio de políticas do Estado voltadas para a interdição e a dominação. Momentos de “bem-estar social” foram passagens da história do País, mas marcam-se, fundamentalmente, por conquistas e não por concessões do poder dominante.
Ainda que o machismo histórico e institucional seja uma das bases da formação social brasileira, as mulheres negras e faveladas reúnem vários outros aspectos de interdição, dominação e restrição de direitos frente às demais mulheres da cidade. Mas o golpe, protagonizado pelo endurecimento do lastro estadocêntrico e da presença central de um homem branco, autoritário e conservador, aprofunda tais características. mulheres, negras, pobres assumam o papel de sujeitos para uma cidadania ativa
Ainda que essa realidade das desigualdades, que pavimenta a história brasileira, tenha maior impacto em toda a periferia, principalmente nas favelas, as mulheres desse amplo território não são marcadas pela carência, como aparece no discurso predominante da imprensa e do poder hegemônico. Assumiram papel de centralidade de ações criativas e de conquistas de políticas do Estado que atuaram no caminho inverso das desigualdades, ampliando direitos em várias dimensões humanas. Conquistaram, assim, alterações em seus territórios com força para disputar, na cidade, novas localizações no imaginário popular e para as relações humanas.
Das artes às várias práticas sociais ou políticas nos territórios da periferia, marcam-se ações de superações das condições e se constroem condições de emergências que registram a presença dessas mulheres em toda cidade. Vale destacar: as periferias, as favelas são parte da cidade e não lugar à parte das cidades. São de territórios marcados pelas organizações das pessoas, o que os diferencia de outras partes da cidade, para além dos baixos investimentos do Estado em que vivem.
Tratando-se dessas mulheres que vivem nos territórios de periferias, e principalmente do maior grupo que as compõe ‒ as negras (pretas e pardas) ‒, a trajetória impulsionada pelas mesmas marca-se pelo instinto primário da sobrevivência (delas e de suas famílias). Nesse sentido, articulam-se em relações de solidariedade para manutenção da vida e para ampliação da dignidade.
De um lado, são as que vivem maiores consequências do impacto do poder dominante, principalmente na formação social brasileira, mas são também as que produzem meios que alteram condições de vida para ampliação da mobilidade em todas as suas dimensões. Nesse sentido, elas serão as mais penalizadas nesse contexto atual de um golpe de Estado, ao mesmo tempo que ocupam centralidade como personagens na ação para superação das condições impostas.
Registra-se que o termo sobrevivência aqui utilizado vai além da manutenção da vida, mesmo frente à grande onda de feminicídio existente, no ano de 2015, por exemplo, em que 65,3% das mulheres assassinadas eram negras. Ou seja, a sobrevivência aqui apresentada diz respeito também às condições de morar, alimentar-se, viver com saúde, vestir-se, ter acesso às escolas, condições de trabalho, mobilidade corporal e condições de acesso a diversões e artes. Sobreviver, portanto, ultrapassa qualquer visão economicista do termo e alcança as múltiplas dimensões da vida. Cabe ressaltar, portanto, dois elementos que devem percorrer toda essa reflexão: a) os corpos das periferias ocupam o lugar principal de representação da exploração, da interdição e do controle imposto pela ordem capitalista no processo de produção, substituindo assim o que antes chamava-se de “corpo da fábrica”; b) nesse contexto, as mulheres, negras, das periferias, com ênfase nas favelas, são representações estratégicas para avanços democráticos e de convivência com as diferenças e superação das desigualdades, por conta do peso do machismo e do racismo e do crescimento da ideologia xenofóbica.
As mulheres negras, moradoras das periferias e favelas, são ativas nos cenários políticos, culturais e artísticos da cidade. Ainda que a luta/ativismo/militância por elas protagonizada seja inicialmente relacionada às questões locais e intimamente “linkada” às condições objetivas e subjetivas das suas vidas no território, conquistam dimensões fundamentais para avançar as condições locais, alcançando impacto em toda a cidade. Nesse sentido, há várias mulheres faveladas que se destacam e ultrapassam, em ações e representações, o ambiente que predominam em suas vidas. Tal fenômeno, por sua vez, não é determinado por questões estritamente individuais, por serem iluminadas ou especiais, mas por uma questão de trajetórias, encontros, percepções de si, do outro, oportunidades, articulação e inserção nas questões sociais. E, com ênfase afirmativa, tal fenômeno, que se encontrava em ascensão no momento pré-golpe, traz, para a esquerda, o desafio de manter esse crescimento para superar a onda conservadora que predomina hoje no País.
Contudo, um considerável número de mulheres faveladas não vê com simpatia a participação na sociedade política e muito menos reúne facilidade para aproximação dos corpos que alcançam os espaços institucionais do poder do Estado, que, para a maioria, sem grandes distinções, são enxergados como poderosos e poderosas. Esse quadrante se amplia, com o êxito das classes dominantes, nesse cenário de golpe, ao alargar a visão hegemônica de que o principal problema do Brasil é a corrupção e não as desigualdades. Ao mesmo tempo que tal visão ganha força no imaginário, cresce também uma rejeição à participação política e uma identificação de que os principais corruptos são “os políticos”.
Não há predomínio de ações que beneficiem os pobres na história do Brasil, com poucas exceções. Isso por sua vez só amplia a hegemonia dominante do medo, do não envolvimento com as decisões políticas ‒ o que faz ampliar o ambiente autoritário e rebaixa o nível de participação, inclusive no voto (basta ver o crescimento dos votos brancos e nulo e das abstenções). A desconfiança com a classe dirigente sempre existiu; um certo sentimento de que nada é durável, tudo é muito temporário e com prazo muito curto, mas tal sentimento amplia-se no imaginário e se firma como obstáculo necessário a ser superado para que se avance em relações democráticas no contemporâneo.
O desemprego ou o emprego precário sempre foram predominantes na realidade vivida nas periferias. A solidariedade, no entanto, também pavimentada nesses territórios, criou condições para superação dessas desigualdades. Para além da certeza de que nunca se pode parar e que a vida é uma luta permanente, constrói-se um ambiente com repertórios para se ir além dos próprios territórios e maiores escalas de conquistas. Embora o avanço nos últimos anos, em conquistas de direitos que agora estão sendo ameaçados e retirados a toque de caixa, não se pode permitir o crescimento da ideia de que nada mudou e tudo permanece igual com sempre foi. Ainda que se vivam realidades nas quais se destaquem a baixa oferta de vagas nas creches e nas escolas; a procura, na primeira fase da juventude, de uma vaga no mercado de trabalho; o baixo acesso às artes, ao estudo de línguas, a ambientes que ampliem conhecimentos acumulados na história da humanidade, pode-se identificar que as periferias se marcam pela criação de múltiplas inteligências e as mulheres ocupam localização estratégica nesse processo. Portanto, ações de esquerda no século XXI precisam atuar para ampliar tal potência e construir narrativas que elevem a liberdade, a participação e o ativismo emancipatório das mulheres negras e faveladas.
A dificuldade com a iminência do fim do Bolsa Família já prenuncia uma volta aos portões das igrejas em busca de auxílio (em sua maioria nas católicas e/ou centros espíritas). Esse risco, mais intenso hoje com o golpe, do crescimento da sensação de que não há horizonte, de uma ausência de perspectiva, cria ambiente para ampliar o pessimismo e a indisposição de pensar um futuro muito distante do amanhã. Coloca-se assim, como desafio da esquerda no século XXI, registrar as ações das mulheres negras e faveladas que são marcas de conquistas e pigmentações de ações transformadoras, inventivas e potencialmente revolucionárias. Disputar o olhar, sentimentos e pensamentos para um mundo que vive mudanças todo o tempo e situar as ações existentes das mulheres negras, nesses territórios, superando em suas vidas o impacto do racismo institucional, é uma ação estratégica para esquerda no contemporâneo e ganha ênfase no cenário do golpe imposto no Brasil.
Quando a flor rompe o asfalto
Na contramão de um caminho pavimentado pela descrença ou pela mesmice, nesse período de golpe, outros elementos pulsam na cidade carioca com caracterizações distintas da que predominam na ordem nacional. A eleição histórica, com 46 mil votos, de uma vereadora favelada, negra e feminista, que assume posição política de esquerda, é uma contradição no ambiente do golpe. Isso, por sua vez, repercute significativos sinais da importância de ocupação dos espaços de poder do Estado, principalmente os institucionais, por meio das eleições e mesmo na disputa da autoritária meritocracia, cindindo ao máximo a concentração masculina e branca que toma tais ambientes.
Os estereótipos associados ao que é ser uma mulher e as expectativas sobre como devemos nos comportar são facetas do discurso institucional e hegemônico ainda profundamente conservador e reacionário. Registra-se que tal movimento ganha força no momento atual; basta olhar, por exemplo, para o resultado das eleições nos EUA e no plebiscito do Reino Unido, entre outros exemplos possíveis. Em escala internacional, guerras, interdições, perseguições, separações voltam a aparecer e se marcam como impedimentos e controles cada vez maiores do outro, da outra, do corpo que não compõe o grupo social de poder, que tende a ser “colocado para fora”, ou “impedidos”, pelas classes dominantes de conviver com suas “diferenças” na cidade. Com a falácia da narrativa de “crise econômica”, busca-se derrubar os direitos conquistados e, uma vez feito, serão as mulheres negras e pobres, moradoras das periferias, principalmente das favelas, que estarão ainda mais vulneráveis à violência e ao racismo institucional impregnado nos poros da formação social brasileira. Trata-se, portanto, de construir um bom senso e ações que superem as condições colocadas e alterem a correlação de forças, tornando-as mais favoráveis à vida, aos direitos e à dignidade humana. Conquistar tal ambiente é fundamental para avanços democráticos, principalmente no momento atual.
O governo ilegítimo, autoritário e conservador amplia as forças das elites políticas e econômicas que predominaram no poder. Há, portanto, nesse momento, uma intensificação da repressão policial frente às manifestações populares, assim como o crescimento do discurso da guerra às drogas que impactam o coração das periferias. As contrarreformas trabalhistas e da previdência são outros exemplos de investidas para destruir com os direitos. Tais ações impõem forte impacto às mulheres, principalmente as que vivem dos seus trabalhos e em condições nas quais o ofício de suas famílias são os meios de manutenção de suas sobrevivências. Quadro esse que marca a vida das mulheres negras e faveladas em escala nacional.
Nessa conjuntura, com condições favoráveis para ambientes bonapartistas e crescimento em progressão máxima do autoritarismo e das várias dimensões do conservadorismo, questões fundamentais se colocam para a esquerda construir uma visão contemporânea no século XXI: a) avançar em ações contundentes imediatas, ampliando forças para bandeiras que emergem nesse momento, como as “diretas já” e “nem um direito a menos”; b) defender a vida, com momentos contra a violência letal e pela ampliação da dignidade humana; c) construir proposições de políticas públicas, para enfraquecer as estratégias do capital no Brasil; d) fortalecer a narrativa pela convivência plena na cidade, com as múltiplas diferenças, para conquistar no imaginário predominante o desafio fundamental de superar as desigualdades como eixo fundamental da luta; e) ampliar a centralidade dos corpos da periferia como atores centrais das ações sociais, entre os quais destacam-se as mulheres negras e mais pobres, com ênfase as faveladas em todo o território nacional.
Construir insumos que contribuam para potencializar que mulheres, negras, pobres assumam o papel de sujeitos para uma cidadania ativa com vistas a conquistar uma cidade de direitos é ação fundamental para a revolução no contemporâneo.
- ↑ Marielle Franco é cria da favela da Maré. É socióloga formada pela PUC-Rio e mestra em Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Sua dissertação de mestrado teve como tema: “UPP: a redução da favela a três letras”. Trabalhou em organizações da sociedade civil, como a Brasil Foundation e o Centro de Ações Solidárias da Maré (Ceasm). Coordenou a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), ao lado de Marcelo Freixo. Tem 39 anos e foi eleita Vereadora da Câmara Municipal do Rio de Janeiro pelo PSOL. Mulher, negra, mãe, favelada, Marielle Franco foi a quinta vereadora mais votada no Rio de Janeiro nas eleições de 2016, com 46.502 votos. Iniciou sua militância em direitos humanos após ingressar no pré-vestibular comunitário e perder uma amiga, vítima de bala perdida, num tiroteio entre policiais e traficantes no Complexo da Maré. Ao se tornar mãe aos 19 anos, de uma menina, Marielle também começou a se constituir como lutadora pelos direitos das mulheres e debater essa temática na periferia. As questões do feminismo, da luta contra o racismo, bem como a defesa dos direitos humanos nas favelas do país modulam o perfil de seu mandato e seus projetos em busca de um modelo de cidade mais justo para todos e todas.