Novos sacrifícios por amor: as esferas do mercado e da dádiva no mundo do futebol.: mudanças entre as edições

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Dessa forma, entendo que mesmo com a crescente atual de mercadorização do mundo do futebol, não é possível compreender todas suas dinâmicas apenas por essa via, sendo necessário também compreender as esferas do sentimento e da dádiva e, além disso, como todas essas categorias que costumam ser postas como coisas separadas em trabalhos analíticos da ciências sociais se relacionam entre si no cotidiano dos torcedores, jogadores e dirigentes do clube.
Dessa forma, entendo que mesmo com a crescente atual de mercadorização do mundo do futebol, não é possível compreender todas suas dinâmicas apenas por essa via, sendo necessário também compreender as esferas do sentimento e da dádiva e, além disso, como todas essas categorias que costumam ser postas como coisas separadas em trabalhos analíticos da ciências sociais se relacionam entre si no cotidiano dos torcedores, jogadores e dirigentes do clube.


==== '''Bibliografia''' ====
=== '''Bibliografia''' ===
Calazans, Pedro. Torcida do Fluminense bate meta e arrecada R$ 230 mil para festa na final da Libertadores. GE, 2023. Disponível em: <https://ge.globo.com/futebol/times/fluminense/noticia/2023/10/17/torcida-do-fluminense-bate-meta-e-arrecada-r-230-mil-para-festa-na-final-da-libertadores.ghtml>. Acesso em: 11 de nov. de 2023.
Calazans, Pedro. Torcida do Fluminense bate meta e arrecada R$ 230 mil para festa na final da Libertadores. GE, 2023. Disponível em: <https://ge.globo.com/futebol/times/fluminense/noticia/2023/10/17/torcida-do-fluminense-bate-meta-e-arrecada-r-230-mil-para-festa-na-final-da-libertadores.ghtml>. Acesso em: 11 de nov. de 2023.



Edição atual tal como às 21h36min de 18 de setembro de 2024

Transformações na forma de se torcer[editar | editar código-fonte]

Torcida do Flamengo na Geral do Maracanã
Fonte: Diário do Rio, (anterior a 2005)
Torcida do Flamengo no Atual Maracanã
Fonte: Fla Resenha, 2016.

A revitalização do antigo Maracanã e outros estádios para os padrões FIFA, principalmente na época dos preparativos para o Pan-americano de 2007, a Copa do Mundo em 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, gerou um amplo debate sobre as novas formas de torcer e, até mesmo, de ser torcedor. Isso porque, além das mudanças estruturais, essas reformas trouxeram consigo um forte impacto para as torcidas. Entre as mudanças constava o fim de setores populares, que possibilitavam a ida de torcedores de classes mais baixas ao estádio e viver, para muito além de simplesmente assistir, a experiência de um jogo do seu time de coração. Conhecidos como “geral”, nesses espaços não haviam cadeiras numeradas e sim arquibancadas de concreto nas quais as pessoas ficavam de pé, sendo retiradas em nome de um maior conforto aos visitantes do estádio.

Além disso, outras questões como a diminuição da capacidade dos estádios (exemplo do próprio Maracanã que já chegou a comportar mais de 199 mil pessoas na final da Copa do Mundo em 1950 e diminuiu sua capacidade para 78.838) e o aumento do valor dos ingressos trouxeram uma transformação no público que tem acesso aos estádios, principalmente quem pode frequentá-los assiduamente e quem pode estar presente nos grandes jogos.

A partir dessas mudanças se solidificou uma diferenciação entre o torcedor raiz/de verdade - que seria o verdadeiramente apaixonado e fanático, que faz sacrifícios pelo time, que apoia e ajuda o clube independente da fase que esteja, sempre acreditando nele e que canta o jogo intero - e o torcedor modinha - que não teria essa mesma dedicação e engajamento emocional com o clube, sendo vinculado mais fortemente a esse novo modelo comercial de futebol e que é diretamente afetado pelos resultados em campo.

Outra preocupação que se intensificou com as reformas no Maracanã foi a mercadorização do futebol e o receio de que os torcedores passassem a serem vistos e tratados como meros consumidores, o que deixaria de lado os fatores emocionais e culturais aos quais esse esporte sempre esteve ligado. Os programas de sócio-torcedor, onde as pessoas pagam uma mensalidade ao clube e em troca de alguns benefícios e facilidades, como, por exemplo, comprar antecipadamente os ingressos ou descontos em materiais do clube e de parceiros - variando entre os clubes e do valor pago mensalmente; e a popularização do Pay-per-view (PPV), pelo qual se paga um valor para assistir os jogos que não passam nos canais abertos de televisão e parte desse valor é revertido ao clube, também foram sistemas que incrementaram essa preocupação e que, hoje se vê, que mudaram as formas de se torcer.

O documentário Geraldinos, dirigido por Renato Martins e Pedro Asbeg, mostra de forma muito clara essa mudança ao acompanhar a história de torcedores dos maiores times do Rio de Janeiro - Flamengo, Fluminense, Vasco e Botafogo - no momento em que a geral do Maracanã estava prestes a acabar, em 2005, e depois de alguns anos do seu fim. A maior parte deles relatou uma grande tristeza com o fim do setor principalmente por razões afetivas, se referindo aquele espaço como sua casa no estádio e que era ali que sentiam que o Maracanã realmente era deles. Eles também mencionaram que tiveram que ou deixar de ir ou diminuir muito a sua frequência nos estádios por causa do alto custo do valor do ingresso, denunciando que esse de se gerir o futebol faz um recorte sobre quais os torcedores são bem vindos, no qual os geraldinos (pessoas em maioria de classes mais baixas que frequentavam a geral) não estão incluídos.

Dádiva, mercado e novas formas de sacrifício[editar | editar código-fonte]

Apesar dessa nova forma de se tratar o futebol, agora muito mais envolvida nas lógicas mercadológicas e empresariais, não é possível excluir as relações de afetividade desse sistema. Dessa forma, cabe o questionamento sobre de que forma as dinâmicas do mercado se entrelaçam com a ordem da paixão para os torcedores e como suas formas de expressar esse sentimento são modificadas por essa nova gerência do futebol.

Partindo do ponto que o torcedor “de verdade” é considerado aquele engajado emocionalmente com o time e que faz sacrifícios por ele, e tendo como sacrifício as formas mais explícitas dele - como, por exemplo, viagens para assistir o time jogar foda de casa, a espera em longas filas para comprar os ingressos, ter que enfrentar brigas na torcida, a princípio o programa de sócio torcedor aparece como uma contradição, uma vez que ele diminui a necessidade da realização esses sacrifícios através dos benefícios oferecidos.

Contudo, em primeiro lugar, é importante ter em vista que, apesar de diminuir a necessidade, o programa não tem a capacidade de extinguir completamente esses sacrifícios já que parte deles está vinculado a uma questão extra-clube, como viagens, problemas de transporte e de segurança pública. Além disso, outras pesquisas mostram que, na prática, os torcedores veem a assinatura do sócio-torcedor mais como uma forma de sacrifício e de prova de amor pelo clube do que como uma mera relação comercial.

O pesquisador Fábio Daniel Rios apontou essa questão em seu artigo "Nação Rubro-Negra: emoção e mercado entre sócios-torcedores do Flamengo", onde ele buscou analisar as principais motivações dadas pelos torcedores para a assinatura do programa de sócio-torcedor do Flamengo. Durante a pesquisa a maior parte dos entrevistados relatou que essa vontade surgiria de um desejo de ajudar o time e vincula seu consumo ao clube, que extrapolam o programa de sócio e também incluem a ida aos estádios, a participação de programas de doação como o “Anjo Rubro-Negro” a compra de materiais originais e a assinatura do PPV, como provas de amor a ele.

Dessa forma, segundo os discursos dos torcedores entrevistados o que teria surgido com o programa de sócio, principalmente aqueles que financeiramente não são tão vantajosos para os torcedores, seria mais uma forma de sacrifício pelo clube, e não a extinção dessa dimensão da vida do torcedor. Fabio Daniel também aponta nessa relação uma dimensão própria da dinâmica da dádiva (Mauss, 1974), onde a relação de troca mútua acontece para criar, manter e reforçar os laços sociais.

Essa aproximação acontece porque, mesmo fazendo de espontânea vontade e não a encarando como uma relação mercadológica de compra, os torcedores relatam um incômodo sobre a não retribuição dessa doação, sentindo que sua devoção não é reconhecida por um sistema que só beneficia quem paga mais, e não quem é engajado e emocionalmente envolvido com o time, sendo diferenciados pela frequência no estádio em dias de jogos de menor relevância. Dessa forma, atualmente as dimensões de dádiva, mercado e sacrifício se entrelaçam nessa nova dinâmica de se torcer e de se administrar o futebol, sem que nenhuma delas possa ser desconsiderada.

Libertadores da América: uma final que extrapolou as quatro linhas[editar | editar código-fonte]

Essas relações entre consumo, sacrifício e dádiva também se tornam muito marcantes nos grandes jogos, finais e clássicos, em que os times participam. Neles, as torcidas se empenham para produzir grandes festas, com mosaicos, bandeiras, faixas, bandeirões 3D, sinalizadores e comparecem em peso, buscando mostrar ao adversário a força e magnitude de seu clube e empurrar seu time para a vitória. Para a realização dessas festas se faz necessário um grande investimento que na maior parte das vezes vem dos próprios torcedores que, da mesma forma que no sócio torcedor, enxergam essa doação como uma ajuda e um incentivo ao time de coração.

Na última final da Taça Libertadores da América, competição de extremo prestígio realizada pela CONMEBOL (Confederação Sul-Americana de Futebol), sendo considerada a mais importante da América do Sul, aconteceu entre Fluminense e Boca Juniors no dia 4 de novembro de 2023 e, subvertendo a lógica da final única em campo neutro instituído pela CONMEBOL desde 2019, foi sediada no Maracanã (estádio que desde 2019 é administrado por Fluminense e Flamengo). Com isso, torcedores de ambos os times colocaram a cidade do Rio de Janeiro em festa antes mesmo do grande dia chegar.

Visão externa da torcida do Fluminense na Final da Libertadores 2023
Fonte: GE, 2023

Foram organizados eventos específicos para os torcedores, como a Fan Zone, e em todos os cantos das áreas centrais da cidade se encontravam cartazes sobre a final ou vendas de materiais relacionados ao times. A cidade ficou lotada e, segundo dados do HotéisRio, a taxa de ocupação na rede hoteleira da cidade ficou em 90% na semana da decisão. Muitos desses torcedores não conseguiram nem ingresso para ver o jogo no estádio, mas como um sacrifício e uma prova de amor ao seu time, vieram para a cidade para a festa e para tentar impulsionar os jogadores.

Visão de Dentro da Torcida do Fluminense na Final da Libertadores de 2023
Fonte: Desconhecida , 2023

A torcida do Fluminense em especial estando em casa trabalhou para deixar muito bem claro que, apesar da divisão igualitária dos ingressos entre os argentinos e os tricolores, o estádio daquela final tinha dono. Para isso, eles planejaram uma festa com direito a faixas que cruzavam a torcida, 20 mil bandeirolas, sinalizadores, pó de arroz e um mosaico 3D.

Para a construção dessa festa foi necessária uma mobilização da torcida com doações e compartilhamento da campanha pela internet. Com a ajuda das torcidas organizadas e de torcedores influencers a campanha chegou em famosos tricolores como o rapper Xamã, que também ajudou na divulgação, e a apresentadora Ana Clara, além das esposas de alguns jogadores, como Rocio Otero, Giovanna Costi e Alejandra Ayala (esposas de Germán Cano, Paulo Henrique Ganso e John Arias respectivamente) e de ex-jogadores do time como o Richarlison.

Assim, em apenas quatro dias eles conseguiram uma arrecadação histórica de quase R$230 mil, segundo os organizadores da festa. Esse feito foi muito comemorado entre os torcedores e serviu como mais uma prova de quanto eles se dedicam e são apaixonados pelo clube. Isso porque, olhando apenas por um lado mercadológico, que tanto tenta se impor sobre o futebol, não seríamos capazes de compreender a dimensão desses sacrifícios.

O torcedor que faz a doação não faz esperando algo diretamente em troca, mas para reforçar seu amor e seu compromisso pelo clube. Com sua vitória e o ganho de títulos, como foi o caso do Fluminense nesse dia, o torcedor sente que o time em campo retribuiu todo o seu esforço e honrou a camisa. Então ele se vê motivado a retribuir novamente com mais uma grande comemoração, como a que aconteceu no dia 12 de novembro de 2023 onde os tricolores se reencontraram no centro do Rio de Janeiro.

Isso tudo ocorre sem que seja necessário uma obrigação explícita mas nas entrelinhas das regras da vida social que nos estimulam a isso. Dentro dessa relação está implícito também a noção de que se um lado interrompe suas doações os conflitos dão lugar ao que era uma relação harmoniosa. Por exemplo, se o time começa a ir mal nos campeonatos e a perder muitos jogos, as festas são interrompidas e se iniciam as cobranças entre torcida e jogadores, treinador e/ou direção do clube.

Dessa forma, entendo que mesmo com a crescente atual de mercadorização do mundo do futebol, não é possível compreender todas suas dinâmicas apenas por essa via, sendo necessário também compreender as esferas do sentimento e da dádiva e, além disso, como todas essas categorias que costumam ser postas como coisas separadas em trabalhos analíticos da ciências sociais se relacionam entre si no cotidiano dos torcedores, jogadores e dirigentes do clube.

Bibliografia[editar | editar código-fonte]

Calazans, Pedro. Torcida do Fluminense bate meta e arrecada R$ 230 mil para festa na final da Libertadores. GE, 2023. Disponível em: <https://ge.globo.com/futebol/times/fluminense/noticia/2023/10/17/torcida-do-fluminense-bate-meta-e-arrecada-r-230-mil-para-festa-na-final-da-libertadores.ghtml>. Acesso em: 11 de nov. de 2023.

Garcia, Gustavo; Neves, Marcello. Drama, fé e festa: as reações da torcida do Fluminense na conquista da Libertadores. GE, 2023. Disponível em: <https://ge.globo.com/futebol/times/fluminense/noticia/2023/11/05/drama-fe-e-festa-as-reacoes-da-torcida-do-fluminense-na-conquista-da-libertadores.ghtml>. Acesso em: 12 de nov. de 2023.

GERALDINOS. Direção: Pedro Asbeg, Renato Martins. Brasil. Palmares Produções e Jornalismo, Jackeline Filmes, 2015. Youtube. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=95YndskxXH8>. Acesso em: 09 de nov. de 2023

GONÇALVES, Julio Cesar de Santana ; CARVALHO, Cristina Amélia. A mercantilização do futebol brasileiro: instrumentos, avanços e resistências. Cadernos EBAPE.BR, v. 4, n. 2, p. 01–27, 2006. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/cebape/a/XmxfDtmDMKgKt9M5LzL7KDj/#>. Acesso em: 10 de nov. de 2023

RIOS, Fábio Daniel . Nação Rubro-Negra: emoção e mercado entre sócios-torcedores do Flamengo. In: 43 Encontro Anual da ANPOCS, 2019, Caxambu - MG. ANAIS do 43 Encontro Anual da ANPOCS, 2019.

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a Dádiva. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo, 1974.

O Maracanã: História. Maracanã, [S. A.]. Disponível em: <https://estadiomaracana.com.br/maracana/historia>. Acesso em: 08 de nov. de 2023.

PALHARES, Vitor Coelho. Argentinos à vista! Prefeitura do Rio monta operação especial para a final da Libertadores. Lance, 2023. Disponível em: <https://www.lance.com.br/libertadores/argentinos-a-vista-prefeitura-do-rio-monta-operacao-especial-para-a-final-da-libertadores.html>. Acesso em: 12 de nov. de 2023.

VIEIRA, Christian Matheus Kolanski. O padrão FIFA e os “estádios brasileiros”. Ludopédio, São Paulo, v. 70, n. 9, 2015. VIEIRA, Christian Matheus Kolanski. Estádios x Arenas. Ludopédio, São Paulo, v. 64, n. 1, 2014.