Mutirão da Laje: mudanças entre as edições
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Edição das 17h09min de 12 de abril de 2020
Autor: Pablo das Oliveiras.
Mutirão da laje
“Virar a laje” ou “bater a laje” são expressões populares com origem no trabalho coletivo e solidário de parentes, vizinhos e amigos, que corresponde à armação de escoras, “bater” e “esticar” o concreto fresco. Além dos instrumentos: pás, enxadas e baldes, juntam-se também facas, colheres, conchas e panelas; conforme os campos de ações de homens e mulheres. No Conjunto Habitacional Cidade de Deus - CDD, a laje foi um elemento introduzido pelo morador-construtor em sistema de mutirão, para ampliar a casa construída, originalmente, com telhado de madeira e telhas de barro. Os Conjuntos Habitacionais no Rio de Janeiro trazem marcas do processo autoritário e violento do Estado, como descreve Maria de Lourdes Silva no Verbete Drogas em Cidade de Deus: “a remoção compulsória de favelas e outras regiões da cidade do Rio de Janeiro, promovida sob o uso criminoso de invasões de domicílio, despejo e até incêndios para realocar populações inteiras em conjuntos habitacionais que não contavam com infraestrutura de água encanada e potável e rede de saneamento básico, numa região distante dos locais de emprego e ocupação dessas populações”, ainda hoje, impactam sobre os serviços, a compreensão e tratamentos dispensados às favelas e seus moradores. O programa de remoção de favelas pretendeu inserir as camadas mais pobres da população no SFH-Sistema Financeiro de Habitação, principalmente moradores das favelas situadas nas áreas mais valorizadas e cobiçadas pela especulação imobiliária, do Rio de Janeiro. Foram seus órgão governamentais: o BNH - Banco Nacional de Habitação (1964); a CHISAM - Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio (1968-1973), no programa de remoção; a Companhia de Habitação Popular - COHAB-GB (Guanabara, 1962) Companhia Estadual de Habitação - CEHAB-RJ (assim nomeada após a fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, 1975). Foram seus financiadores: o BNH, com recursos do FGTS - Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (a partir de 1967); USAID - United States Agency for International Development (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional), através do Acordo do Trigo e da Aliança para o Progresso (década de 1960), financiaram programas político econômico e social na América Latina, com inúmeras críticas de setores liberais, de esquerda e da opinião pública latino-americana às deficiências de de programa e suas metas, como instrumento a serviço dos interesses econômicos e estratégicos dos EUA no hemisfério.
Na sequência dos governos de Carlos Lacerda (1960-1965); Negrão de Lima (1965-1971) e Chagas Freitas (1971-1974), entre os anos de 1962 a 1974, temos um balanço contundente do programa de remoções, ao contabilizar 80 favelas; 26.193 barracos e 139.218 habitantes removidos compulsoriamente (VALLADARES, 1978, p.39).
Nesse contexto, a laje e seu mutirão tornam-se práticas populares de intervenção nos espaços da casa e arquitetônico da CDD, por interação socioafetiva entre moradores e orientações de pedreiros, como agentes articuladores de conhecimentos e técnicas, adquiridas em trabalho operário nos canteiros da construção civil e em contexto de solidariedade junto a sua vizinhança.
A laje residencial pode ser descrita como elemento de estrutura plana e contínua de concreto armado, destinada ao serviço de cobertura, forro, ou piso, com cargas constantes sustentadas por vigas [cintas], e desta para os pilares [colunas] (SILVA, 2006). Pode ser maciça, pré-moldada ou por concreto usinado A laje maciça é precedida pelo suporte de madeiramento: escoras e tábuas alinhadas em forma de assoalho, onde se armam os vergalhões em malha dupla, interligada e estendida pela extensão da futura laje, sobre a qual se coloca o concreto fresco (areia, cimento e brita misturada com água). Após a cura e secagem do concreto obtém-se a laje maciça. Vale destacar a importância da cura neste processo, que consiste em manter o concreto molhado nos primeiros 7 dias, no mínimo, a fim de evitar que fatores climáticos, como altas temperaturas, baixa umidade e ventos interfiram negativamente na reação entre o cimento e a água usada na massa, por liberação de calor excessivo causando aparecimento de fissuras ou trincas. O pré-moldado otimiza e reduz custos, tempo de construção e o peso total da laje. Tem venda regular em loja de materiais de construção civil, regulada por m2, num conjunto de vigotas de concreto e de lajotas de cerâmica ou placas de isopor. Sua colocação é realizada sobre o madeiramento para alinhamento intercalado das vigotas em união com as lajotas; sobre esse conjunto de peças coloca-se o concreto fresco, então chamado de capa, que segue os mesmos cuidados na cura e secagem.
O concreto usinado ou bombeado são termos populares para o concreto produzido por empresas concreteiras, através de controle e monitoramento das reações dos materiais utilizados (areia, brita, cimento e aditivos) conforme classificação e especificidade de seu uso. Sua venda é realizada por metro cúbico (m³), transportado ao local da obra por caminhão betoneira e aplicado por profissional qualificado, no despejo direto ou jato calibrado por bomba de pressão, no local da laje. Mesmo com produção e aplicação otimizada, esse concreto ainda é pouco consumido pelo morador – construtor das favelas, principalmente, pelo seu alto custo e difícil acesso de entrada do caminhão betoneira. Em Cidade de Deus, a aplicação desse concreto em lajes é inexpressivo e quando ocorre elimina o encontro para o trabalho festivo do mutirão. A laje na autoconstrução, ou seja, moradia edificada pelo proprietário ou pedreiro contratado, sem projeto de arquitetura, exige um pedreiro hábil e experiente nas técnicas da concretagem para orientar e acompanhar sua execução. No jargão da engenharia civil, a laje é uma etapa procedimental na construção do imóvel, dita “coroamento”, porém quando em mutirão, sobre a casa do morador – construtor é possível dizê-la “coroação”; como na tradicional festa da cumeeira.
No mutirão da laje distinguem-se dois grupos de trabalhos, um exercido por homens, do lado de fora da casa, outro realizado por mulheres, na cozinha, no interior de casa. O domingo, dia consagrado ao descanso, é quando acontece o encontro para esses trabalhos festivos e celebrados com comidas e bebidas. O mutirão da laje (maciça ou pré-moldada) constitui uma práxis com expressão de trabalho de ajuda mútua, cooperativo, e festivo, por constituir exceção às normas e valores do mercado de trabalho formal e institucional; possui saberes adquiridos e transmitidos na observação de modelos, ou seja: alguém que sabe como fazer, pela memória de ter visto alguém que sabia fazer; por agregar valores de liderança e prestígio, no conhecimento do ofício e pelos laços de amizades na comunidade; por reproduzir divisão sexual de papéis sociais sem segregar os trabalhos de ambos; por celebrar e confraternizar festivamente os trabalhos de homens e mulheres, até então segmentados. Por todas essas expressões, o mutirão da laje é um encontro que consolida e renova a produção de bens e valores socioculturais e afetivos, a ampliação do espaço de habitação e renova e reforça os vínculos entre vizinhos, afirma identidades e o sentido de pertencimento no grupo.
Os laços de “consideração” são fundamentais na arregimentação e união dos mutirantes de laje. A “consideração” que o sujeito recebe de seus pares credencia o convívio ordinário, adquirida dia-a-dia na comunidade, onde se inscrevem, coletivamente, trajetórias individuais, em acordo e integradas na rede das relações locais. Onde, também, é preciso encontrar um equilíbrio entre o convívio da proximidade em lugares públicos e a distância necessária da vida privada. Nessa “política da boa vizinhança”, os participantes do mutirão desenvolvem táticas próprias capazes de regular os conflitos que se apresentarem, como no consumo de bebida alcoólica. Esse consumo apresenta situações diversas; o antropólogo Pierre MAYOL aponta que o “prazer de bem beber tende sempre para o limite do beber em demasia” (p. 135, 1996). O consumo de bebida alcoólica é das preocupações nos encontros para “bater” a laje, pelas possibilidades de acidente no trabalho.
No ambiente deste trabalho festivo, entre os praticantes do mutirão da laje, as “piadas” de uns para outros, são táticas de provocar o riso durante a dura jornada. As piadas ou chistes é um juízo lúdico, uma forma de expressão do inconsciente (como os sonhos) e, conforme seus propósitos podem ser inocentes ou tendenciosos (hostis / obscenos), como descrito por Freud (1905). Os chistes inocentes possuem brevidade verbal, nisso reside, por assim dizer, a graça da situação e provoca o riso que pode ajudar a descarregar uma agressividade reprimida. O riso, principal finalidade da piada, é considerado extremamente saudável, pois melhora o humor. A percepção dos efeitos prazerosos da prática do riso, em si e nas relações de grupo, é taticamente usada para animar e dinamizar os trabalhos repetitivos e extenuantes na batida da laje
Com a laje pronta, sem telhado por forração, a casa tem seu espaço ampliado e aberto aos significados que se renovam conforme seus usos. Essa ampliação potencializa uma área “livre” ou para mais um andar de moradia, por expansão horizontal e/ou vertical, que nem sempre edifica o prédio como unidade estrutural, mas representa uma sobreposição ou conjunto de áreas construídas, por vezes com acessos individualizados ao exterior, para múltiplas finalidades. Na construtiva da casa popular, em Cidade de Deus e demais favelas, observa-se um tipo de edificação recorrente, que utiliza materiais da construção civil entre outros arranjos (refugo de obras, lona plástica, compensado, chapa de carro e etc) e por possuir expressões formais e funções de usos tão diversos ganhou denominação própria e singela: “puxadinho”, isto é, construção que estende o imóvel para além da planta original, conforme oportunidade de espaço (vertical-horizontal) e condições materiais para sua edificação.
Esta e outras ações “informais” e paliativas concorrem no movimento socioeconômico do núcleo familiar e da comunidade, ampliando a oferta de moradias, para uso próprio ou comércio e geração de renda. Uma visão reducionista sobre a arquitetura popular não permite ver em seus fazeres, proliferações disseminadas de re-criações anônimas do espaço fundiário, que potencializam o cenário social, político e econômico da cidade. Na perspectiva histórica da casa na favela, Bruno Coutinho aponta no verbete Moradia, um processo construído e marcado por "desigualdades socioestruturais, tendo se consolidado ora mais, ora menos no espaço urbano, de acordo com a orientação das políticas de “desenvolvimento e reforma urbanos” e sua imbricação com os interesses relacionados de mercado – mais explicitamente o imobiliário – e políticos."
Em diferentes favelas a laje performa papéis que possibilitam soluções às situações cotidianas, estejam elas localizadas em áreas planas ou pelos morros, como descreve Bianca Freire–Medeiros, no Verbete: Laje e Turismo, sobre usos das lajes, contíguas ou não, como “verdadeiras ruas suspensas, as quais prescindem, obviamente, traçados prévios” para transporte de geladeiras, sofás e “nos extremos de pontes invisíveis e precárias quando as crianças perseguem suas pipas pulando com rapidez entre lajes”. Vale citar Gilberto Gil: A refavela / Revela o salto / Que o preto pobre tenta dar / Quando se arranca / Do seu barraco / Prum bloco do BNH (...) A refavela / Revela o sonho / De minha alma, meu coração / De minha gente / Minha semente / Preta Maria, Zé, João (...). A poética e sínteses sociológicas de Gil nesta obra musical, para além do Conjunto Habitacional, revela a REFAVELA pelo éthos que nela se constrói.
Os trabalhos realizados pelas mulheres encontram-se intimamente ligados aos realizados pelos homens, pois o convite para “virar” a laje está vinculado ao desfrute da comida que será servida aos participantes, principalmente, depois da laje posta, quase sempre, com fartura. Por pertencer ao mundo da casa, as tarefas das mulheres possuem pouca ou nenhuma visibilidade, quando iniciado no dia anterior ao mutirão, por seguir na intimidade da cozinha, durante o preparo dos alimentos e sua fervura; trabalho paralelo ao dos homens “batendo o concreto” na rua, às vistas públicas. Tais habilidades e valores explícitos e implícitos reafirmam a divisão sexual de papéis sociais existente no cotidiano dos sujeitos envolvidos nesse mutirão.
As mulheres, em trabalho à parte dos homens, mostram suas habilidades na “boa cozinha”, em preparo do prato único, quer seja feijoada; mocotó; rabada, entre outros pratos substanciosos. As tarefas femininas (e seus resultados) estão intimamente ligadas ao trabalho da laje, como uma espécie de prêmio, recompensa pelo esforço empreendido. A comida oferecida ao final do trabalho de “bater” a laje corresponde às preferências dos participantes e às condições de cada morador construtor. Celebrar e comer são ações sociais de longínquas datas e presentes ao final do mutirão, ações que sutilmente confere status à moradora e ao morador donos da laje, por retribuírem com o seu melhor.
O mutirão da laje, como trabalhos coletivo e solidário, em dia de descanso - o domingo -, cria “verdadeiras ruas suspensas" ao reunir vizinhos, amigos e parentes; homens e mulheres em ações que se voltam umas às outras, complementares e harmônicos em suas finalidades. A culminância festiva é celebrada ao comer e beber. Neste momento, a comida pronta e servida aos peões do mutirão materializa o conjunto de trabalhos realizados pelas mulheres e pelos homens, onde o desejo e a repetição do “prato” são notórios elogios e os comentários socializados relembram os chistes nas diversas etapas dos trabalhos. Os momentos significativos do dia, os fatos inusitados, risos despertados e os desafios vencidos se inscrevem em histórias, para serem rememoradas e comemoradas no próximo mutirão; pelo êxito na ampliação do espaço desejado, pelo concreto e o simbólico da laje.
Referência bibliográfica
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SILVA, Fernando Batista da, ‘Lajes mistas e pré-moldadas’ Universidade de Anhembi Morumbi. SP. 2006. (Monografia)
VALLADARES, Lícia do Prado.: ‘Passa-se uma casa’. 1ª edição, Rio de Janeiro: Zahar.1978.
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LOPES. João Marcos de Almeida; RIZEK, Cibele Saliba. O mutirão autogerido como procedimento inovador na produção da moradia para os pobres: uma abordagem crítica. In: “Procedimentos de Gestão Habitacional para População de Baixa Renda” Coletânea HABITARE Vol. 5. 2006.Porto Alegre
http://alexabiko.pcc.usp.br/Colet%C3%A2nea%20Habitare_Volume%205_PRELO.pdf
OLIVEIRA, Jefferson (Don); HERSZENHUT Débora. Documentário: Depois rola o mocotó. DOCTV IV, 51’:52”, Rio de Janeiro, 2009
http://www.youtube.com/watch?v=Y15MMSzbmbk