Mapeamento no Preventório: mudanças entre as edições
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Isso não quer dizer, no entanto, que sugerimos uma romantização da precarização e da vulnerabilidade desse território. Na verdade, a ideia de trabalhar com potências vem de uma reafirmação de um discurso mais positivo diante de uma comunidade, geralmente retratada pela mídia e no senso comum apenas pela perspectiva de um local marginalizado. Não queremos, aqui, insinuar que a falta de saneamento básico, por exemplo, tem “seu lado bom” – ou que qualquer outra ausência tenha. Acreditamos que as políticas públicas ainda continuam sendo responsabilidade do Estado e que sua negligência é sintomática. | Isso não quer dizer, no entanto, que sugerimos uma romantização da precarização e da vulnerabilidade desse território. Na verdade, a ideia de trabalhar com potências vem de uma reafirmação de um discurso mais positivo diante de uma comunidade, geralmente retratada pela mídia e no senso comum apenas pela perspectiva de um local marginalizado. Não queremos, aqui, insinuar que a falta de saneamento básico, por exemplo, tem “seu lado bom” – ou que qualquer outra ausência tenha. Acreditamos que as políticas públicas ainda continuam sendo responsabilidade do Estado e que sua negligência é sintomática. | ||
Ainda sobre as Tecnologias, fizemos uma ''antropofagia'' – que referencia o Movimento Antropofágico ocorrido no Brasil, no início do século XX – a partir da metodologia estrangeira, que apontava ferramentas não brasileiras para a realização do mapeamento. Inicialmente, essas diferenças culturais e linguísticas foram uma barreira a ser contornada, até acharmos nosso jeitinho brasileiro. É bom destacar que não utilizamos a expressão com caráter pejorativo, muito pelo contrário. Pensamos que, além de improvisos, o jeitinho brasileiro a que nos referimos também diz respeito ao seu caráter nacional (e, claro, local), já que o projeto teve que lidar com diferenças culturais ao longo dos seus três anos de existência. | Ainda sobre as Tecnologias, fizemos uma ''antropofagia'' – que referencia o Movimento Antropofágico ocorrido no Brasil, no início do século XX – a partir da metodologia estrangeira, que apontava ferramentas não brasileiras para a realização do mapeamento. Inicialmente, essas diferenças culturais e linguísticas foram uma barreira a ser contornada, até acharmos nosso ''jeitinho brasileiro''. É bom destacar que não utilizamos a expressão com caráter pejorativo, muito pelo contrário. Pensamos que, além de improvisos, o jeitinho brasileiro a que nos referimos também diz respeito ao seu caráter nacional (e, claro, local), já que o projeto teve que lidar com diferenças culturais ao longo dos seus três anos de existência. | ||
Nosso primeiro propósito foi mapear o Morro do Preventório através da plataforma Open Street Maps (OSM). O mapeamento online foi realizado de forma bastante rápida, por um dos membros da equipe, Kayky. No entanto, para o refinamento dele e, mais tarde, a validação dos dados, foi necessário ir a campo. Neste sentido, reproduzimos, de forma “ao vivo” um método de uma segunda plataforma, o HOT Tasking Manager, que acontece de maneira virtual. | Nosso primeiro propósito foi mapear o Morro do Preventório através da plataforma Open Street Maps (OSM). O mapeamento online foi realizado de forma bastante rápida, por um dos membros da equipe, Kayky. No entanto, para o refinamento dele e, mais tarde, a validação dos dados, foi necessário ir a campo. Neste sentido, reproduzimos, de forma “ao vivo” um método de uma segunda plataforma, o HOT Tasking Manager, que acontece de maneira virtual. | ||
Esta plataforma funciona como um gerenciador, a fim de que vários mapeadores possam cobrir o mapeamento de um determinado território ao mesmo tempo. Ele utiliza os dados do OSM e, ao trabalhar no HOT, estamos também colaborando diretamente com a plataforma OSM. A vantagem é, então, que o trabalho não é duplicado e há a facilidade na divisão de tarefas. Ao acessar a plataforma, encontrávamos o território dividido como mostra a figura abaixo. | Esta plataforma funciona como um gerenciador, a fim de que vários mapeadores possam cobrir o mapeamento de um determinado território ao mesmo tempo. Ele utiliza os dados do OSM e, ao trabalhar no HOT, estamos também colaborando diretamente com a plataforma OSM. A vantagem é, então, que o trabalho não é duplicado e há a facilidade na divisão de tarefas. Ao acessar a plataforma, encontrávamos o território dividido como mostra a figura abaixo. | ||
[[Arquivo:Print HOT Urbelatam.png|centro| | [[Arquivo:Print HOT Urbelatam.png|centro|1000x1000px|Mapeamento do Preventório na plataforma HOT.|alt=Mapeamento do Preventório na plataforma HOT.]]Usamos a ideia de divisão do território em pedaços — quadrados ou retângulos — para imprimir partes da ortofoto fornecida pela Prefeitura de Niterói e, desta forma, conseguir validar os dados ou acrescentar novos ao trabalho já feito. | ||
[[Arquivo:Representação de como dividimos o mapa.png|centro|miniaturadaimagem|500x500px|Morro dividido em pedaços e, à caráter de ilustração, sua área correspondente na ortofoto.]] | |||
[[Arquivo:Mapa Impresso.png|centro|miniaturadaimagem|500x500px|Parte da ortofoto, impressa para validação presencial dos dados, e comentários dos mapeadores.]] | |||
Neste processo, utilizamos uma terceira ferramenta, o Kobo. Sua maior vantagem é funcionar de forma offline, já que a cobertura telefônica no morro não é homogênea. É possível georreferenciar pontos específicos e acrescentar, nesses pontos, informações a partir de um formulário customizável pelo usuário. | |||
Então, a antropofagia dessas tecnologias apresentadas resultou na criação de uma nova tecnologia, uma que fizesse sentido para o território e para o nosso trabalho dentro dele. | |||
As quatro dimensões do mapeamento compõem uma metodologia criada a partir do fazer diário, das adversidades e das urgências da comunidade, com os choques culturais, políticos e ideológicos dentro do projeto. Ela mesma é, então, uma tecnologia, adaptada de um modo de fazer estrangeiro. | |||
Queremos apontar aqui, em especial, a diversidade de modos de se fazer que cada território pode apresentar. A maior descoberta que fizemos ao longo da aventura de mapear o Morro do Preventório foi perceber a potencialidade que a produção de um mapa pode trazer a um território. Além disso, incentivamos enormemente que cada comunidade encontre o seu próprio jeito de fazer seu mapa, já que consideramos que esse processo é, além de único, rico e poderoso. |
Edição das 10h30min de 8 de julho de 2022
Introdução: verbete se faz convidando as pessoas
A história dos mapeamentos que estamos fazendo no Morro do Preventório surgiu por causa do projeto Urbelatam (https://urbe-latam.cos.ufrj.br/sobre/). Explicar um projeto complicado e complexo como o Urbelatam não é nada trivial, mas, em “resumo”, o projeto é formado por pesquisadoras e pesquisadores das mais diversas disciplinas (ciências sociais, engenharias, ciências da terra, além de líderes comunitários, ativistas políticos e educadores populares), que estão separadas geograficamente em quatro países (Brasil, Colômbia, Inglaterra e Escócia), falando três línguas (português, espanhol e inglês) e que trabalham em instituições completamente heterogêneas entre si (ONGs, Universidades, Centros de Pesquisa e Agências do Governo). Línguas diferentes, culturas diferentes, disciplinas diferentes. Entenderam o porquê do complicado e complexo?
As Quatro Dimensões
Após quase dois anos de projeto, formalizamos uma metodologia de trabalho a partir de uma oficina. Ela foi ministrada a pedido do Projeto Tamo Junto, do Dicionário de Favelas Marielle Franco, em 2021. A metodologia conta com quatro dimensões a serem levadas em consideração no ato de mapear: Legitimidade; Planejamento Comunitário; Mapeamento e Ações Locais; e Tecnologias. Elas estão interligadas, de modo que, ao tratarmos de uma dimensão, é impossível não tratarmos das outras ao mesmo tempo.
Tomamos como Legitimidade o reconhecimento, pelo território, do trabalho de líderes comunitários. Desta forma, a legitimidade nasce na confiança entre as pessoas do Morro do Preventório e quem realizou o mapeamento — que contou com o protagonismo de líderes comunitários, tal como Marcos Rodrigo, Neném e Wanderson. Essa relação de confiança é fruto de trabalho de base e, principalmente, um olhar atento e cuidadoso às pessoas e suas necessidades.
A legitimidade é importante para o processo do mapeamento porque ela é uma dimensão que valida o nosso trabalho, desde a sua concepção até seu fim, de maneira que ele seja reconhecido por aqueles que vivem o território.
É bom destacar que o verbo “viver”, neste caso, adquire sentido mais amplo. Não está restrito apenas a moradores, mas a qualquer um que esteja dentro do território, que se considere parte dele ou que interaja com ele. Vivenciar o território, portanto, é interagir com ele, em maior ou menor grau.
Assim, o mapeamento ganha sentido tanto para quem o realiza quanto para aqueles que usufruem dele, já que não parte de um agente totalmente externo da comunidade. Este seria o caso se o projeto atuasse sem nenhum morador ou líder comunitário dentro de sua equipe e se não fosse capitaneado por algum desses agentes.
Já a dimensão do Planejamento Comunitário diz respeito ao trabalho no dia a dia da equipe, na qual a prioridade ao atendimento de necessidades do território é maior perante a própria realização do mapeamento em si. Isto porque as urgências da comunidade são diferentes da universidade e, por se tratar de uma equipe que é formada por líderes comunitários, a necessidade de seus colegas, amigos, vizinhos, etc., é mais importante que seguir um cronograma totalmente estático.
Durante certo tempo, a mudança diária no planejamento gerou desconforto, em especial, nos acadêmicos e estrangeiros que participaram do Urbelatam. A dinâmica do Preventório — assim como a de tantas outras favelas — não é a mesma que a dinâmica mais cartesiana da universidade. No entanto, ao invés de nos adequarmos a essas expectativas, entendemos que este é o modus operandi do nosso trabalho.
Diante da premissa de que o que importa é cuidar das pessoas da comunidade, replanejar as atividades do projeto em função do atendimento a essas urgências não é mais do que fortalecer a dimensão da Legitimidade e, por conseguinte, a validação do mapeamento. Afinal, não haveria sentido na sua produção se aqueles que usufruíssem dela fossem colocados em segundo plano.
Planejamento Comunitário (ou Errático) é o nome que demos ao tipo de planejamento que é adequado ao cotidiano do mapeamento, em contraposição com o planejamento tradicional ou ortodoxo, que pressupõe o cumprimento de tarefas baseado em datas de entrega e num cronograma preestabelecido, sem muita margem para flexibilidade. Esta dimensão, portanto, conversa intimamente com a Legitimidade, pois acontece em função dela e, ao mesmo tempo, é também seu resultado direto.
A dimensão do Mapeamento e Ações Locais destaca a relevância de prezar pelo bem estar dos moradores e frequentadores do território. Essa dimensão resgata ensinamentos de uma líder comunitária já falecida, Dona Graça, uma das fundadoras do Banco do Preventório. Nas palavras de Marcos Rodrigo:
Dona Graça foi uma líder comunitária importante dentro do Preventório. Fundou a primeira associação de mulheres em 1987, participou de movimentos, na época, (...) fazendo trabalho comunitário. Era uma pessoa que estava sempre muito de bom humor, criou uma geração lá (...). E quando ela veio a falecer, eu fui visitar ela na última semana no Hospital do Fundão, e ela disse isso: "faz tudo devagar e cuida das pessoas, que é o mais importante". Então ela estava bem ruim mesmo quando eu fui visitar ela, ela fez um tratamento no hospital e ela morreu de coração grande. Ela tinha um coração grande e ela morreu disso. Uma pessoa que ajuda muito a entender a forma como é o trabalho comunitário. E, realmente, esse atropelo não é bom (...). Então, ela fala essa coisa de andar devagar, é dar continuidade, que é mais importante do que a pressa. É mais importante do que o prazo, vamos dizer assim. (...) É o que eu costumo dizer: as pessoas têm tempos diferentes, né? E quando a gente vai para a universidade, aprende que isso é antologia. Mas a gente não quer respeitar o tempo do outro, a gente quer que as coisas sejam no nosso tempo e realmente não vão ser, né?
Considerando que o Banco Comunitário faz parte do projeto e é um dos seus principais engajadores, as palavras de Dona Graça apontam para o caminho do modo de se fazer do mapeamento: devagar e cuidando das pessoas. Ela ilustra o cuidado, atenção, delicadeza, estima e responsabilidade que os líderes comunitários têm com os moradores do Morro do Preventório. Novamente, dimensão muito ligada à Legitimidade.
Por último, a dimensão Tecnologias aborda as adaptações feitas a partir das ausências — de políticas públicas ou serviços públicos e privados, derivados da marginalização de territórios como esse. A falta de dados oficiais do Preventório é um exemplo, mas há vários outros, como a carência dos serviços mais básicos: coleta de lixo e esgoto, distribuição de água, rede de drenagem, etc.
O Urbelatam tem um olhar otimista em relação às ausências, de forma a transformar uma falta em uma possibilidade. Falamos então em potências que se criam a partir das ausências. Assim, a própria elaboração do mapa é visto como uma potência, que surgiu da ausência dele, em primeiro lugar.
Isso não quer dizer, no entanto, que sugerimos uma romantização da precarização e da vulnerabilidade desse território. Na verdade, a ideia de trabalhar com potências vem de uma reafirmação de um discurso mais positivo diante de uma comunidade, geralmente retratada pela mídia e no senso comum apenas pela perspectiva de um local marginalizado. Não queremos, aqui, insinuar que a falta de saneamento básico, por exemplo, tem “seu lado bom” – ou que qualquer outra ausência tenha. Acreditamos que as políticas públicas ainda continuam sendo responsabilidade do Estado e que sua negligência é sintomática.
Ainda sobre as Tecnologias, fizemos uma antropofagia – que referencia o Movimento Antropofágico ocorrido no Brasil, no início do século XX – a partir da metodologia estrangeira, que apontava ferramentas não brasileiras para a realização do mapeamento. Inicialmente, essas diferenças culturais e linguísticas foram uma barreira a ser contornada, até acharmos nosso jeitinho brasileiro. É bom destacar que não utilizamos a expressão com caráter pejorativo, muito pelo contrário. Pensamos que, além de improvisos, o jeitinho brasileiro a que nos referimos também diz respeito ao seu caráter nacional (e, claro, local), já que o projeto teve que lidar com diferenças culturais ao longo dos seus três anos de existência.
Nosso primeiro propósito foi mapear o Morro do Preventório através da plataforma Open Street Maps (OSM). O mapeamento online foi realizado de forma bastante rápida, por um dos membros da equipe, Kayky. No entanto, para o refinamento dele e, mais tarde, a validação dos dados, foi necessário ir a campo. Neste sentido, reproduzimos, de forma “ao vivo” um método de uma segunda plataforma, o HOT Tasking Manager, que acontece de maneira virtual.
Esta plataforma funciona como um gerenciador, a fim de que vários mapeadores possam cobrir o mapeamento de um determinado território ao mesmo tempo. Ele utiliza os dados do OSM e, ao trabalhar no HOT, estamos também colaborando diretamente com a plataforma OSM. A vantagem é, então, que o trabalho não é duplicado e há a facilidade na divisão de tarefas. Ao acessar a plataforma, encontrávamos o território dividido como mostra a figura abaixo.
Usamos a ideia de divisão do território em pedaços — quadrados ou retângulos — para imprimir partes da ortofoto fornecida pela Prefeitura de Niterói e, desta forma, conseguir validar os dados ou acrescentar novos ao trabalho já feito.
Neste processo, utilizamos uma terceira ferramenta, o Kobo. Sua maior vantagem é funcionar de forma offline, já que a cobertura telefônica no morro não é homogênea. É possível georreferenciar pontos específicos e acrescentar, nesses pontos, informações a partir de um formulário customizável pelo usuário.
Então, a antropofagia dessas tecnologias apresentadas resultou na criação de uma nova tecnologia, uma que fizesse sentido para o território e para o nosso trabalho dentro dele.
As quatro dimensões do mapeamento compõem uma metodologia criada a partir do fazer diário, das adversidades e das urgências da comunidade, com os choques culturais, políticos e ideológicos dentro do projeto. Ela mesma é, então, uma tecnologia, adaptada de um modo de fazer estrangeiro.
Queremos apontar aqui, em especial, a diversidade de modos de se fazer que cada território pode apresentar. A maior descoberta que fizemos ao longo da aventura de mapear o Morro do Preventório foi perceber a potencialidade que a produção de um mapa pode trazer a um território. Além disso, incentivamos enormemente que cada comunidade encontre o seu próprio jeito de fazer seu mapa, já que consideramos que esse processo é, além de único, rico e poderoso.